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Arendt (LM): mal

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

De fato, minha preocupação com as atividades espirituais tem origem em duas fontes bastante distintas. O impulso imediato derivou de eu ter assistido ao julgamento de Eichmann em Jerusalém. Em meu relato, [Eichmann in Jerusalem, Nova York, 1963.] mencionei a “banalidade do MAL”. Por trás desta expressão não procurei sustentar nenhuma tese ou doutrina, muito embora estivesse vagamente consciente de que ela se opunha à nossa tradição de pensamento — literário, teológico ou filosófico — sobre o fenômeno do MAL. Aprendemos que o MAL é algo demoníaco; sua encarnação é Satã, “um raio caído do céu” (Lucas 10:18), ou Lúcifer, o anjo decaído (“O demônio também é um anjo”, Unamuno), cujo pecado é o orgulho (“orgulhoso como Lúcifer”), isto é, aquela superbia de que só os melhores são capazes: eles não querem servir a Deus, mas ser como Ele. Diz-se que os homens maus agem por inveja; e ela pode ser tanto ressentimento pelo insucesso, mesmo que não se tenha cometido nenhuma falta (Ricardo III), quanto propriamente a inveja de Caim, que matou Abel porque “o Senhor teve estima por Abel e por sua oferenda, mas por Caim e sua oferenda ele não teve nenhuma estima”. Ou podem ter sido movidos pela fraqueza (Macbeth). Ou ainda, ao contrário, pelo ódio poderoso que a maldade sente pela pura bondade (“Odeio o Mouro: o que me move é o coração”, de Iago; o ódio de Claggart pela “bárbara” inocência de Billy Budd, um ódio que Melville considerou “uma depravação com relação à natureza humana”); ou pela cobiça, “a raiz de todo o MAL” (Radix omnium malorum cupiditas). Aquilo com que defrontei, entretanto, era inteiramente diferente e, no entanto, inegavelmente factual. O que me deixou aturdida foi que a conspícua superficialidade do agente tornava impossível rastrear o MAL incontestável de seus atos, em suas raízes ou em seus motivos, em níveis mais profundos. Os atos eram monstruosos, mas o agente — ao menos aquele que estava em julgamento — era bastante comum, banal, e não demoníaco ou monstruoso. Nele não se encontrava sinal de firmes convicções ideológicas ou de motivações especificamente más, e a única característica notória que se podia perceber tanto em seu comportamento anterior quanto durante o próprio julgamento e o sumário de culpa que o antecedeu era algo de inteiramente negativo: não era estupidez, mas irreflexão. No âmbito dos procedimentos da prisão e da corte israelenses, ele funcionava como havia funcionado sob o regime nazista; mas, quando confrontado com situações para as quais não havia procedimentos de rotina, parecia indefeso, e seus clichês produziam na tribuna, como já haviam evidentemente produzido em sua vida funcional, uma espécie de comédia macabra. Clichês, frases feitas, adesão a códigos de expressão e conduta convencionais e padronizados têm a função socialmente reconhecida de proteger-nos da realidade, ou seja, da exigência de atenção do pensamento feita por todos os fatos e acontecimentos em virtude de sua mera existência. Se respondêssemos todo o tempo a essa exigência, logo estaríamos exaustos; Eichmann se distinguia do comum dos homens unicamente porque ele, como ficava evidente, nunca havia tomado conhecimento de tal exigência. [Arendt  , Vida do Espírito I O Pensar Introdução]

Foi essa ausência de pensamento — uma experiência tão comum em nossa vida cotidiana, em que dificilmente temos tempo e muito menos desejo de parar e pensar — que despertou meu interesse  . Será o fazer-o-mal (pecados por ação e omissão) possível não apenas na ausência de “motivos torpes” (como a lei os denomina), mas de quaisquer outros motivos, na ausência de qualquer estímulo particular ao interesse ou à volição? Será que a maldade — como quer que se defina esse estar “determinado a ser vilão” — não é uma condição necessária para o fazer-o-mal? Será possível que o problema do bem e do MAL, o problema de nossa faculdade para distinguir o que é certo do que é errado, esteja conectado com nossa faculdade de pensar? Por certo, não, no sentido de que o pensamento pudesse ser capaz de produzir o bem como resultado, como se a “virtude pudesse ser ensinada” e aprendida — somente hábitos e costumes podem ser ensinados, e nós sabemos muito bem com que alarmante rapidez eles podem ser desaprendidos e esquecidos quando as novas circunstâncias exigem uma mudança nos modos e padrões de comportamento. (O fato de que habitualmente se trata de assuntos ligados ao problema do bem e do MAL em cursos de “moral  ” ou de “ética” pode indicar quão pouco sabemos sobre eles, pois moral deriva de mores  , e ética, de ethos, respectivamente os termos latino e grego para designar os costumes e os hábitos — estando a palavra latina associada a regras de comportamento e a grega sendo derivada de habitação, como a nossa palavra “hábitos”.) A ausência de pensamento com que me defrontei não provinha nem do esquecimento de boas maneiras e bons hábitos, nem da estupidez, no sentido de inabilidade para compreender — nem mesmo no sentido de “insanidade moral”, pois ela era igualmente notória nos casos que nada tinham a ver com as assim chamadas decisões éticas ou os assuntos de consciência. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar Introdução]

A questão que se impunha era: seria possível que a atividade do pensamento como tal — o hábito de examinar o que quer que aconteça ou chame a atenção, independentemente de resultados e conteúdo específico — estivesse entre as condições que levam os homens a abster-se de fazer o MAL, ou mesmo que ela realmente os “condicione” contra ele? (A própria palavra “consciência”, em todo o caso, aponta nessa direção, uma vez que significa “saber comigo e por mim mesmo”, um tipo de conhecimento que é atualizado em todo processo de pensamento.) E não estará essa hipótese reforçada por tudo o que sabemos sobre a consciência, isto é, que uma “boa consciência” em geral só é apreciada na condição de regra por pessoas realmente más, criminosas e tais, ao passo que somente “pessoas boas” são capazes de ter uma má consciência? Dizendo de outra maneira e utilizando uma linguagem kantiana: tendo sido aturdida por um fato que, queira eu ou não, “me pôs na posse de um conceito” (a banalidade do MAL), não me era possível deixar de levantar a quaestio juris e me perguntar “com que direito eu o possuía e utilizava”. [Notas sobre metafísica, Kant  ’s handschriftlicher Nachlass, vol. V, in Kant’s gesammelte Schriften, Akademie Ausgabe, Berlim, Leipzig, 1928, vol. XVIII, 5636.] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar Introdução]

Foi portanto o julgamento de Eichmann que despertou meu interesse por esse tema. Mas, além disso, também essas questões morais que têm origem na experiência real e se chocam com a sabedoria de todas as épocas — não só com as várias respostas tradicionais que a “ética”, um ramo da filosofia, ofereceu para o problema do MAL, mas também com as respostas muito mais amplas que a filosofia tem, prontas, para a questão menos urgente “O que é o pensar?” — renovaram em mim certas dúvidas. De fato, tais dúvidas vinham me afligindo desde que terminei um estudo sabiamente intitulado por meu editor A condição humana, mas que eu havia proposto mais modestamente como uma investigação sobre “A vita   activa”. Desde o primeiro momento em que me interessei pelo problema da Ação — a mais antiga preocupação da teoria política —, o que me perturbou foi que o próprio termo que adotei para minhas reflexões sobre o assunto, a saber, vita activa, havia sido cunhado por homens dedicados a um modo de vida contemplativo e que olhavam desse ponto de vista para todos os modos de vida. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar Introdução]

O pensamento, entretanto — ao contrário das atividades cognitivas, que o podem utilizar como um de seus instrumentos —, precisa do discurso não só para ter realidade sonora e para tornar-se manifesto; precisa dele até mesmo para poder ser ativado. E uma vez que o discurso é realizado em sequências de sentenças, o final do pensamento não pode jamais ser uma intuição, nem pode ser confirmado por algum pedaço de autoevidência observado através da contemplação muda. Se o pensamento, guiado pela velha metáfora da visão e compreendendo MAL a si mesmo e à sua própria função, espera “verdade” de sua atividade, tal verdade não é só inefável por definição. “Como as crianças que tentam agarrar a fumaça com as mãos, os filósofos veem muitas vezes o objeto que estava ao seu alcance escapulir diante deles” — Bergson  , o último filósofo a acreditar firmemente em “intuição”, descreveu muito precisamente o que de fato aconteceu com os filósofos daquela escola [An Introduction to Metaphysics (1903), trad. T. E. Hulme, Indianápolis, Nova York, 1955, p. 45]. E o motivo do “fracasso” é simplesmente que nada expresso em palavras pode jamais se ater à imobilidade de um objeto de simples contemplação. Comparado com um objeto de contemplação, o significado sobre o qual se pode falar é fugidio: se o filósofo quer vê-lo e capturá-lo, ele “foge” [Ibidem]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]

O espanto admirativo concebido como ponto de partida da filosofia não deixa lugar para a existência factual da desarmonia, da feiura e, enfim, do MAL. Nenhum diálogo de Platão   trata da questão do MAL; apenas no Parmênides   ele demonstra um real interesse pelas consequências da inegável existência das coisas hediondas e dos atos vis sobre a doutrina das Ideias. Se tudo o que aparece toma parte de uma Ideia visível apenas aos olhos do espírito, e se deriva dessa Forma qualquer que seja a realidade que possa ter na caverna dos assuntos humanos — o mundo da percepção sensorial ordinária —, então tudo o que aparece, e não apenas as coisas admiráveis, deve sua aparição a um ente suprassensível que explica sua presença no mundo. Nesse caso, pergunta Parmênides, o que dizer a respeito dos “objetos corriqueiros e baixos”, como o “cabelo, a lama e a sujeira”, que jamais despertaram admiração em ninguém? Platão, falando por meio da figura de Sócrates  , não usa a justificativa comum, surgida mais tarde, do MAL e da feiura como partes necessárias do todo, que, apenas da perspectiva limitada do homem, aparecem como MAL e como feio. Ao contrário, Sócrates responde que seria simplesmente absurdo atribuir Ideias a tais coisas — “nesses casos, as coisas são exatamente as que vemos” — e sugere que é melhor recuar, “por medo de cair em um poço sem fundo de contrassensos”. (Parmênides, contudo, já um velho no diálogo, aponta: “Isto […] é porque você ainda é jovem, Sócrates, e a filosofia ainda não se apoderou de você de uma maneira tão firme como penso que ela um dia o fará. Então você não desprezará nenhuma dessas coisas; mas hoje sua juventude ainda o faz considerar o que o mundo vai pensar.” [130d, e] Mas a dificuldade não se resolve, e Platão nunca mais levanta a questão.) Só estamos interessados aqui na doutrina das Ideias à medida que se puder demonstrar que a noção de Ideia ocorreu a Platão por causa das coisas belas, e que jamais lhe ocorreria se ele estivesse cercado apenas por “objetos corriqueiros e baixos”. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 15]

Esse é apenas o começo de uma tradição que culminou filosoficamente em Epiteto e que atingiu o clímax de intensidade aproximadamente cinco séculos mais tarde, no final do Império Romano  . Sobre a consolação da filosofia, de Boécio, um dos livros mais populares de toda a Idade Média, e hoje praticamente ignorado, foi escrito em condições tão extremas que Cícero jamais poderia ter dele alguma premonição. Boécio, um nobre romano de alta posição caído em desgraça, encontrava-se na prisão aguardando a execução. Em vista da situação, o livro foi comparado ao Fedon — uma analogia   bastante estranha: de um lado, Sócrates cercado de amigos, depois de um julgamento em que teve permissão para falar longamente em sua defesa, aguardando uma morte tranquila e indolor; do outro lado, Boécio, encarcerado sem ser ouvido, absolutamente só, depois que a sentença de morte foi pronunciada em uma farsa de julgamento, no qual ele não esteve presente e em que muito menos teve oportunidade de se defender, e que agora aguardava a execução por meio de lentas e abomináveis torturas. Embora cristão, foi a Filosofia que veio consolá-lo, e não Deus ou o Cristo. E embora seu “lazer secreto”, na época em que desempenhava altas funções, fosse a leitura e tradução de Platão e Aristóteles  , Boécio consolou-se com raciocínios tipicamente ciceronianos e também estoicos. A diferença é que o que era no “Sonho de Cipião” uma mera relativização agora irá tornar-se violenta aniquilação. Os “imensos espaços de eternidade”, para onde o espírito, quando coagido, deve se dirigir, aniquilam a realidade tal como ela existe para os mortais; o caráter instável da Fortuna aniquila todos os prazeres, pois embora tudo o que ela nos dá (riqueza, honra, fama) seja fonte de prazer, vivemos sempre com medo de perdê-lo. O medo aniquila toda felicidade. Tudo em que você acredita impensadamente desaparece assim que você começa a pensar — isso é o que a Filosofia, a deusa da consolação, diz a ele. E aqui surge a questão do MAL, em que Cícero pouco havia tocado. A linha geral de pensamento sobre o MAL, ainda bastante primitiva em Boécio, já contém todos os elementos que iremos encontrar mais tarde, em uma forma muito mais sofisticada e complexa, ao longo de toda a Idade Média. É a seguinte: Deus é a causa final de tudo o que é; Deus, como “bem supremo”, não pode ser a causa do MAL; tudo o que é tem que ter uma causa; uma vez que há apenas causas aparentes do MAL, mas não uma causa última, o MAL não existe. Os maus, diz a Filosofia, não apenas são impotentes, eles não são. O que você impensadamente considera mau tem seu lugar na ordem do universo. E, nessa medida, é necessariamente bom. Seus aspectos maus são uma ilusão dos sentidos, da qual você pode livrar-se pelo pensamento. É um antigo conselho estoico: o que negamos pelo pensamento — e o pensamento está em nosso poder — não pode nos afetar. O pensamento torna irreal. É claro que, imediatamente, lembramo-nos da glorificação que Epiteto faz daquilo que hoje chamamos de força de vontade. Há inegavelmente um elemento de vontade nesse tipo de pensamento. Pensar assim significa agir sobre si mesmo — a única ação que resta em um mundo onde todo agir tornou-se fútil. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16]

No contexto em que Xenofonte — sempre ansioso por defender seu mestre com seus próprios argumentos vulgares contra acusações igualmente vulgares — menciona a metáfora, ela não faz muito sentido. Mesmo assim, até ele indica que o vento invisível do pensamento se manifestava nos conceitos, virtudes e “valores” com que Sócrates lidava em suas investigações. O problema é que este mesmo vento, sempre que surge, tem a peculiaridade de varrer para longe todas as suas manifestações anteriores: eis por que o mesmo homem pode ser entendido, e entender a si mesmo, ao mesmo tempo como um moscardo e como uma arraia-elétrica. É da natureza deste elemento invisível desfazer e, por assim dizer, degelar o que a linguagem, o veículo do pensamento, congelou como pensamentos-palavras (conceitos, frases, definições, doutrinas), cuja “impotência” e inflexibilidade Platão tão brilhantemente denuncia na Sétima carta. A consequência é que o pensamento tem inevitavelmente um efeito destrutivo e corrosivo sobre todos os critérios estabelecidos, valores, padrões para o bem e para o MAL, em suma, sobre todos os costumes e regras de conduta com que lidamos em moral e ética. Estes pensamentos congelados, Sócrates parece dizer, ocorrem tão facilmente que até dormindo podemos fazer uso deles; mas se o vento do pensamento que agora provoquei sacudiu você do seu sono e deixou-o totalmente desperto e vivo, você verá que pode dispor apenas de perplexidades, e o melhor que se pode fazer com elas é partilhá-las com os outros. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 17]

O que chamei de “busca” do significado aparece, na linguagem socrática, como o amor, no sentido grego de Eros  , não no sentido cristão de agape. O amor, como Eros, é antes de tudo uma falta; deseja o que não tem. Os homens amam a sabedoria e começam a filosofar porque não são sábios. Amam a beleza e fazem o belo, por assim dizer — philokaloumen, como disse Péricles na Oração fúnebre [Tucídides, II, 40] —, porque eles não são belos. O amor é o único assunto do qual Sócrates se diz conhecedor; e essa habilidade guia-o também na escolha de companheiros e amigos: “Embora eu seja inútil para todas as outras coisas, este dom eu tenho: reconheço imediatamente o amante e o amado.” [Lysis, 204b-c] Ao desejar o que não tem, o amor estabelece uma relação com o que não está presente. Para trazer à luz e fazer aparecer essa relação, os homens procuram falar dela — assim como o amante procura falar do amado. É porque a busca empreendida pelo pensamento é um tipo de amor desejante que os objetos do pensamento só podem ser coisas merecedoras de amor — beleza, sabedoria, justiça etc. O MAL e a feiura quase por definição estão excluídos da consideração do pensamento. Eles podem apresentar-se como deficiências, consistindo a feiura na ausência da beleza, e o MAL, kakia, na ausência de bem. Em si, não têm raízes próprias nem essências onde o pensamento possa se firmar. Se o pensamento dissolve conceitos positivos até o seu significado original, então o mesmo processo tem que dissolver tais conceitos “negativos” até a sua ausência de significado original, isto é, até o nada, do ponto de vista do ego   pensante. Eis por que Sócrates acreditava que ninguém pudesse fazer o MAL voluntariamente — o MAL, como diríamos nós, não tem estatuto ontológico: ele consiste em uma ausência, um algo que não é. Demócrito  , que compreendia o logos  , a palavra, como acompanhamento da ação — da mesma maneira como a sombra acompanha todas as coisas reais, distinguindo-as assim da mera semblância —, por isso mesmo desaconselhava a que se falasse dos maus atos: ao ignorarmos o MAL, privando-o de qualquer manifestação na fala, ele se torna uma mera semblância que não projeta nenhuma sombra [Frags.145, 190]. Quando abordamos o espanto admirativo e afirmativo de Platão, encontramos a mesma exclusão do MAL tal como ele se desdobra em pensamento; e a encontramos em quase todos os filósofos ocidentais. Ao que parece, a única coisa que Sócrates tinha a dizer sobre a conexão entre o MAL e a ausência de pensamento é que as pessoas que não amam a beleza, a justiça e a sabedoria são incapazes de pensar, enquanto, reciprocamente, aqueles que amam a investigação e, assim, “fazem filosofia” são incapazes de fazer o MAL. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 17]

Aonde chegamos em relação a um dos nossos principais problemas — a saber, em relação à possível conexão entre a ausência de pensamento e o MAL? Chegamos à conclusão de que apenas as pessoas inspiradas pelo eros socrático, o amor da sabedoria, da beleza e da justiça, são capazes de pensamento e dignas de confiança. Em outras palavras, chegamos às “naturezas nobres” de Platão, as poucas a respeito das quais se pode dizer que “não fazem o MAL voluntariamente”. No entanto, nem mesmo em seu caso é verdadeira a conclusão implícita e perigosa de que “todo mundo quer fazer o bem”. (A triste verdade é que na maioria dos casos o MAL é praticado por pessoas que jamais se decidiram a fazer o bem ou o MAL.) Sócrates, que diferentemente de Platão considerava todos os assuntos e conversava com todas as pessoas, não pode ter acreditado que só os poucos são capazes de pensamento, nem que só alguns objetos de pensamento, visíveis aos olhos da mente bem treinada, mas inefáveis no discurso, conferem dignidade e relevância à atividade de pensar. Se há algo no pensamento que possa impedir os homens de fazerem o MAL, esse algo deve ser alguma propriedade inerente à própria atividade, independentemente dos seus objetos. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]

Sócrates, esse amante das perplexidades, fez poucas afirmações positivas. Entre elas há duas, intimamente ligadas, que tratam do assunto. Ambas ocorrem em Górgias, o diálogo sobre a retórica, a arte de dirigir e convencer os muitos. O Górgias não faz parte dos diálogos socráticos da juventude; foi escrito pouco antes de Platão tornar-se diretor da Academia. Além disso, o próprio tema do diálogo é uma arte ou uma forma de discurso que pareceria perder todo o sentido se fosse aporético. E, apesar disso, ele é aporético, exceto pelo fato de que Platão concluiu-o com um daqueles mitos sobre o além-mundo de recompensas e punições que aparentemente — isto é, ironicamente — resolvem todas as dificuldades. A seriedade desses mitos é puramente política e consiste no fato de eles se dirigirem à multidão. Os mitos do Górgias certamente não são socráticos, mas mesmo assim são importantes, porque revelam, embora de uma forma não-filosófica, o reconhecimento platônico de que os homens voluntariamente cometem atos maus. Isso acarreta a admissão suplementar de que Platão, assim como Sócrates, não sabia como tratar filosoficamente esse fato perturbador. Podemos não saber se Sócrates acreditava realmente que a ignorância causasse o MAL, ou que a virtude pudesse ser ensinada; no entanto é certo que Platão achava mais prudente fiar-se em ameaças. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]

As duas sentenças afirmativas de Sócrates são as seguintes: a primeira, “é melhor sofrer o MAL do que o cometer”. Ao que Cálicles, o interlocutor no diálogo, responde o que todo grego teria respondido: “Sofrer o MAL não é digno de um homem, mas de um escravo, para quem é melhor morrer do que viver, para quem não é capaz de socorrer nem a si mesmo nem àqueles que para ele são importantes.” [Gorgias, 474b, 483a, b] A segunda afirmação é: “Eu preferiria que minha lira ou um coro por mim dirigido desafinasse e produzisse ruído desarmônico, e [preferiria] que multidões de homens discordassem de mim do que eu, sendo um, viesse a entrar em desacordo comigo mesmo e a contradizer-me.” [Ibidem, 482c] Ao ouvir isso, Cálicles responde que Sócrates está “enlouquecido pela eloquência” e que seria melhor para ele e para todos se ele deixasse a filosofia [Ibidem, 482c, 484c, d]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]

Para nós é difícil compreender como deve ter soado paradoxal a primeira afirmação na sua época; após milhares de anos de uso e abuso, ela soa como moralismo barato. E a melhor demonstração de como é difícil para leitores modernos apreender a força da segunda afirmação é o fato de que as palavras-chave “sendo um” (que precedem “seria pior para mim estar em desacordo comigo mesmo do que com multidões inteiras”) frequentemente são ignoradas pelos tradutores. A primeira é uma afirmação subjetiva que significa: é melhor para mim sofrer o MAL do que o cometer. E no diálogo em que ocorre, ela é contestada simplesmente por outra afirmação igualmente subjetiva que, evidentemente, soa muito mais plausível. O que fica claro é que Cálicles e Sócrates estão falando de “eus” diferentes: o que é bom para um é mau para outro. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]

Mas se, por outro lado, encaramos essa proposição do ponto de vista do mundo, que é distinto daquele dos dois falantes, teríamos que dizer: o que conta é que o MAL foi feito; e aí é irrelevante saber quem se saiu melhor — o autor ou a vítima. Na qualidade de cidadãos, nós devemos evitar que o MAL seja cometido, porque está em jogo o mundo em que todos nós — o malfeitor, a vítima e o espectador — vivemos. A cidade foi injuriada. Nossos códigos legais levam isso em consideração, ao distinguir crimes em que a acusação é obrigatória e transgressões que pertencem ao domínio privado dos indivíduos, que podem querer ou não mover uma ação. Poderíamos quase definir um crime como aquela transgressão da lei que exige punição, não importando quem foi injuriado; a vítima pode estar disposta a perdoar e a esquecer, e, se houver a suspeita de que o malfeitor certamente não voltará a fazer o MAL, pode não haver perigo para as outras pessoas. No entanto a lei da terra não permite essa escolha, porque a comunidade como um todo foi violada. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]

Em outras palavras, Sócrates não está falando aqui na pessoa do cidadão, de quem se supõe preocupar-se mais com o mundo do que consigo mesmo; ele fala aqui como um homem devotado principalmente ao pensamento. É como se ele dissesse a Cálicles: se você estivesse, como eu, apaixonado pela sabedoria, e se sentisse a necessidade de pensar sobre tudo e examinar tudo, você saberia que é melhor sofrer o MAL do que o praticar, caso não haja alternativa, caso o mundo seja como você o descreve, dividido entre fortes e fracos, onde “os fortes fazem o que está em seu poder, e os fracos sofrem o que têm que sofrer” (Tucídides). Mas é claro que o pressuposto aqui é: se você está apaixonado pela sabedoria e pelo filosofar; se você sabe o que significa investigar. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]

Para nós, que pensamos em termos de um conceito retilíneo de tempo, com sua ênfase na unicidade do “momento histórico”, a exaltação grega pré-filosófica da grandeza do extraordinário e a importância a ele concedida — “seja para o MAL ou para o bem” (Tucídides), para além de todas as considerações morais, ele merece ser salvo do esquecimento, primeiro pelos bardos e depois pelos historiadores — parecem incompatíveis com o conceito cíclico de tempo dos antigos. Mas até que os filósofos descobrissem a perenidade do Ser, que não tem nascimento e morte, o tempo e a mudança no tempo não constituíam problema. Os “anos circulares” de Homero   forneciam apenas o pano de fundo em que a notável história aparecera e era narrada. Pode-se encontrar indícios dessa visão não especulativa mais antiga em toda a literatura grega; assim, o próprio Aristóteles, em sua discussão sobre a eudaimonia   (na Ética a Nicômaco), está pensando em termos homéricos quando aponta os altos e baixos, as circunstâncias acidentais (tychai) que “voltam muitas vezes na vida de uma pessoa”, ao passo que sua eudaimonia é mais durável, porque reside em certas atividades (energeiai kat’ aretén) que vale a pena lembrar por sua excelência e em torno das quais, portanto, “o esquecimento não cresce” (genesthai  ) [Livro I 1100a33-1100b18]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1]

A relutância em reconhecer a Vontade como uma faculdade do espírito distinta, autônoma, esmoreceu finalmente durante os longos séculos da filosofia cristã, que iremos examinar adiante em mais detalhe. Por maior que fosse a dívida desta filosofia para com a filosofia grega, em especial para com Aristóteles, ela estava fadada a abandonar o conceito cíclico de tempo da Antiguidade e sua noção de eterna recorrência. A história que começa com a expulsão de Adão do paraíso e termina com a morte e ressurreição de Cristo é uma história com acontecimentos únicos, que não se podem repetir: “Cristo um dia morreu por nossos pecados; e, levantando-se dos mortos, Ele não mais morreu.” [Ibidem, cap. 13] A sequência da história pressupõe um conceito retilíneo de tempo; tem um início definido, um ponto decisivo — o ano Um de nosso calendário [Nosso atual calendário, que toma o nascimento de Cristo como o ponto decisivo a partir do qual contamos o tempo para a frente e para trás, foi introduzido no final do século XVIII. Os manuais alegam que a reforma era necessária por razões acadêmicas, para facilitar a datação dos eventos da Antiguidade sem precisar fazer referência ao emaranhado de diferentes contagens de tempo. Hegel  , ao que eu saiba o único filósofo a ponderar sobre a mudança abrupta e notável, viu nela um claro sinal de cronologia verdadeiramente cristã, uma vez que o nascimento de Cristo tornava-se então o ponto decisivo da história do mundo. Parece mais significativo que, no novo esquema, possamos contar o tempo para a frente e para trás, de modo que o passado estenda-se para um infinito passado e que o futuro, do mesmo modo, estenda-se para um futuro infinito. A dupla infinitude elimina todas as noções de começo e de tempo, estabelecendo a humanidade, por assim dizer, em uma realidade potencialmente sempiterna na Terra. Nem é preciso acrescentar que nada poderia ser mais estranho ao pensamento cristão do que uma imortalidade terrena da humanidade e de seu mundo.] — e um fim definido. E foi uma história da máxima importância para os cristãos, embora MAL tenha tocado no curso de acontecimentos seculares: ainda se podia esperar que impérios surgissem e caíssem, como no passado. Além do mais, a vida após a morte do cristão era decidida enquanto ele ainda era um “peregrino na terra”; ele mesmo tinha um futuro além do fim determinado e necessário de sua vida — e foi em uma ligação estreita com a preparação para a vida futura que a Vontade e sua Liberdade necessária foram, em toda a sua complexidade, descobertas primeiramente por Paulo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1]

O primeiro que se recusou consciente e deliberadamente a tratar da não plausibilidade da vontade livre foi Descartes  : “Seria absurdo duvidar daquilo que experimentamos e percebemos interiormente como existente em nós, só porque não compreendemos uma coisa que sabemos ser, pela própria natureza, incompreensível.” [Principles of Philosophy, prin. XLI, in The Philosophical Works of Descartes, op. cit., p. 235] Pois “essas coisas são tais que cada um deve experimentá-las em si mesmo, em vez de persuadir-se delas pelo raciocínio; mas vós […] pareceis não cuidar e não notar a maneira como o espírito age no interior de si mesmo. Não sejais, então, livres, se essa liberdade não vos apraz” (grifos nossos) [Resposta a Objeções à Meditação V, op. cit., p. 225]. Pode ser tentador, aqui, retorquir que o Cogito   cartesiano certamente nada mais é do que “uma ação do espírito no interior de si mesmo”; mas jamais ocorreu a Descartes ou àqueles que levantaram objeções à sua filosofia falar de pensamento ou de cogitare como algo que é pressuposto sem uma prova, como um mero dado da consciência. O que então concede ao cogito me cogitare ascendência sobre o “volo me velle” — mesmo em Descartes, que era um “voluntarista’’? Será que “aprazia” menos aos pensadores profissionais, ao basearem suas especulações na experiência do ego pensante, a liberdade do que a necessidade? Essa suspeita parece inevitável quando consideramos a estranha reunião de teorias conhecidas, teorias que tentam negar completamente a experiência da liberdade “dentro de nós”, ou enfraquecer a liberdade, conciliando-a com a necessidade através de especulações dialéticas que são inteiramente “especulativas”, já que não podem apelar para qualquer experiência. A suspeita é reforçada quando se considera quão estreita é a ligação entre todas as teorias da vontade livre e o problema do MAL. Desse modo, Agostinho   inicia seu tratado De libero arbitrio voluntatis (O livre-arbítrio da vontade) com a seguinte questão: “Diga-me, por favor, se não é Deus o autor do MAL?” Trata-se de uma questão primeiramente proposta em toda a sua complexidade por Paulo (na Epístola aos romanos) e em seguida generalizada para “qual é a causa do MAL?”, com muitas variações que envolvem a existência tanto do dano físico causado pela natureza destrutiva quanto da maldade deliberada produzida pelo homem. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 4]

Todo esse problema atormentou os filósofos; e suas tentativas de resolvê-lo nunca tiveram muito sucesso; via de regra, seus argumentos fogem ao assunto em sua gritante simplicidade. Ou nega-se que o MAL é verdadeiramente real (ele existe apenas como modalidade deficiente do bem), ou se descarta o MAL, com a explicação de que é uma espécie de ilusão de ótica (o problema está em nosso intelecto limitado, que falha em encaixar um particular de forma adequada em um todo que o justificaria) — tudo isso se assumirmos sem discussão a hipótese de que “somente o todo é na verdade real” (“nur das Ganze   hat eigentliche Wirklichkeit  ”), nas palavras de Hegel. O MAL, não sendo, nisso, diferente da liberdade, parece pertencer àquelas “coisas sobre as quais até os homens mais cultos e inventivos não podem saber quase nada” [Duns Scotus  , op. cit., p. 171]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 4]

O ponto de partida das reflexões de Aristóteles sobre o assunto é o insight antiplatônico de que a razão por si só não move coisa alguma [De Anima  , 433a21-24 e Nicomachean Ethics, 1139a35]. A questão, portanto, que orienta sua investigação é a seguinte: “O que é que, na alma, origina o movimento?” [Para essa citação e para o que se segue, ver De Anima, Livro III, cap. 9 e 10] Aristóteles admite a noção platônica de que a razão dá ordens (keleuei) porque sabe o que se deve buscar e o que se deve evitar, mas nega que essas ordens sejam necessariamente obedecidas. O homem incontinente (seu exemplo paradigmático ao longo de toda essa investigação) segue seus desejos independentemente das ordens da razão. Por outro lado, por recomendação da razão, pode-se resistir a esses desejos. Logo, tampouco os desejos têm uma força inerente em si: por si sós, não originam movimento. Aqui Aristóteles está lidando com um fenômeno que, mais tarde, depois da descoberta da Vontade, aparece como a distinção entre vontade e inclinação. A distinção vem a tornar-se a pedra angular da ética kantiana, mas aparece primeiramente na filosofia medieval — por exemplo, na distinção de Mestre Eckhart   entre “a inclinação para pecar e a vontade de pecar, não sendo a inclinação um pecado”, o que deixa a própria questão dos atos maus completamente sem explicação: “Se nunca fiz o MAL, mas apenas tive a vontade do MAL […] trata-se de um pecado tão grande quanto matar todos os homens, embora eu não tenha feito nada.” [Meister Eckhart, Franz Pfeiffer (ed.), Göttingen, 1914, pp. 551-552] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 7]

A descoberta do apóstolo Paulo, que ele descreve com muitos detalhes na Epístola aos Romanos (escrita entre 54 e 58 d.C.), envolve novamente um dois-em-um; mas esses dois não são amigos ou parceiros; estão em permanente luta. Precisamente quando ele “quer fazer o correto (to kalon  )” descobre que “o MAL está ali à mão” (7:21), pois ele “não conheceria a concupiscência se a lei não dissesse: ‘Não cobiçarás.’’’ Portanto, foi a ordem da lei que ocasionou “toda a concupiscência. Porque sem a lei o pecado estava morto” (7:7, 8). [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 8]

Na luta entre o “querer” e o “não-querer”, o resultado só pode depender em um ato — se ações não contam mais, a Vontade nada pode. E uma vez que o conflito se dá entre velle e nolle, a persuasão não tem lugar, como tinha no velho conflito entre a razão e os desejos. Quanto ao fenômeno em si, “Não faço o bem que quero, mas o MAL que não quero, esse eu faço” (Romanos 7:19), ele não é obviamente uma novidade. Encontramos quase as mesmas palavras em Ovídio: “Vejo o que é melhor e aprovo; sigo o que é pior” [Metamorphoses, livro VII, II, 20-21, “Video meliora proboque,/ deteriora sequor”], e esta é provavelmente uma tradução da famosa passagem da Medeia, de Eurípides (linhas 1078-80): “Sei muito bem o MAL que desejo fazer; mais forte porém do que minhas deliberações [boulemata] é o meu thymos [o que faz com que eu me mova], a causa dos maiores males entre os mortais.” Eurípides e Ovídio podem ter lamentado a fraqueza da razão quando confrontada com o impulso passional dos desejos; e Aristóteles pode ter dado um passo à frente quando detectou a autocontradição na escolha do pior, um ato que lhe forneceu a definição do “homem-vil”; mas nenhum deles teria atribuído esse fenômeno à livre escolha da Vontade. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 8]

Paulo sabia como seria fácil deduzir de suas indicações que devemos “permanecer no pecado para que haja abundância de graça” (Romanos 6:1) (“Por que então não praticamos o MAL do qual vem o bem — como alguns injuriosamente dizem que ensinamos?” [Romanos: 3: 8]), embora dificilmente pudesse prever quanta disciplina e rigidez de dogma seriam necessárias para proteger a Igreja contra o pecca fortiter. Ele também sabia bastante bem qual era o maior obstáculo para uma filosofia cristã: a contradição óbvia entre um Deus onisciente e onipotente e aquilo que Agostinho chamou mais tarde de “monstruosidade” da Vontade. Como Deus pode permitir a desgraça humana? Acima de tudo, como pode Ele “ainda se queixar”, uma vez que ninguém “consegue resistir à Sua vontade” (Romanos 9:19)? Paulo era um cidadão romano, falava e escrevia em grego koine e estava bem claramente familiarizado com a lei romana e com o pensamento grego. Não obstante, o fundador da religião cristã (se não da Igreja) permaneceu sendo judeu; talvez não possa haver prova mais contundente disso do que sua resposta para as questões irrespondíveis levantadas pela sua nova fé e pelas novas descobertas de seu próprio interior. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 8]

O conteúdo efetivo da interioridade é descrito, em cada um deles, exclusivamente em termos das incitações da Vontade, que Paulo acreditava ser impotente, ao passo que Epiteto declarava ser todo-poderosa: “Onde está o bem? Na vontade. Onde está o MAL? Na vontade. Onde não estão nem um nem outro? No que não está sob o controle da vontade.” [Discourses, livro II, cap. 16] A princípio, parece que temos aí a antiga doutrina estoica, só que sem qualquer dos suportes filosóficos do estoicismo antigo; não ouvimos de Epiteto nada sobre a bondade intrínseca da natureza, de acordo com a qual (kata physin) o homem deve viver e pensar — isto é, tirar do pensamento todo o MAL aparente, entendendo-o como um componente necessário de um bem completo. Em nosso contexto, o interessante em Epiteto é justamente a ausência, em seus ensinamentos, de tais doutrinas metafísicas. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]

A razão descobre que o que traz a desgraça não é a ameaça externa da morte, mas o medo interior da morte; não a dor, mas sim o medo da dor — “não é a morte ou a dor que aterroriza, mas o medo da dor ou da morte” [Ibidem, livro II, cap. i]. A única coisa certa a se temer é, portanto, o próprio medo; e se os homens não podem escapar à dor ou à morte, podem por outro lado dissuadir-se do medo dentro de si, eliminando as impressões que coisas atemorizantes deixaram em seus espíritos: “Se guardamos nosso medo, não para a morte ou para o exílio, mas para o próprio medo, então deveríamos treinar para evitar o que pensamos de MAL.” [Ibidem, livro II, cap. xvi] (Basta lembrar os inúmeros exemplos que atestam o papel desempenhado, na morada da alma, por um medo avassalador de ter medo; ou imaginar como seria temerária a coragem humana se a dor experimentada não deixasse lembrança — a “impressão” de Epiteto; basta isso para compreendermos o valor psicológico terra-a-terra dessas teorias aparentemente improváveis.) [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]

À primeira vista, essa doutrina da invulnerabilidade e da indiferença (apatheia  ) — como se proteger da realidade, como perder sua habilidade de ser por ela afetado, para o bem ou para o MAL, na alegria ou na tristeza — parece convidar tão obviamente à refutação que fica quase incompreensível a enorme influência argumentativa e emocional do estoicismo em alguns dos melhores espíritos da humanidade ocidental. Encontramos em Agostinho tal refutação em sua forma mais resumida e plausível. Os estoicos, diz ele, descobriram o truque de como fingir que estão felizes: “Não podendo ter o que quer, o homem quer o que pode ter” [“Ideo igitur id vult quod potest, quoniam quod vult nom potest”] [De Trinitate, livro XIII, vii, 10]. Além disso, prossegue, os estoicos pressupõem que “todo homem deseja, por natureza, ser feliz”, sem contudo acreditar em imortalidade, pelo menos não em ressurreição do corpo, isto é, em uma vida futura sem morte, e aí temos uma contradição em termos. Pois “se todo homem deseja de fato ser feliz, deve necessariamente também querer ser imortal. […] Para que possa viver feliz é preciso antes estar vivo” [Cum ergo beati esse omnes homines velint, si vere volunt, profecto et esse immortales volunt. […] Ut enim homo beate vivat, oportet ut vivat] [Ibidem, viii, 11]. Em outras palavras, os mortais não podem ser felizes, e a insistência dos estoicos no medo da morte como a maior fonte de infelicidade atesta isso; o máximo que podem conseguir é ficar “indiferentes”, deixar de ser afetados pela vida ou pela morte. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]

A única força que pode obstruir esse consentimento básico e ativo dado pela vontade é ela mesma. Assim, o critério para a conduta correta é o seguinte: “Queira estar satisfeito, tu contigo mesmo” (“theléson aresai autos   seautó”). E Epiteto acrescenta: “Queira aparecer nobre diante do deus” (Theléson kalos phanénai tó Theó”) [Discourses, livro II, cap. xviii], sendo que o adendo é, na verdade, redundante, já que Epiteto não acredita em um Deus transcendente, mas sustenta que a alma é semelhante a Deus e que o deus está “dentro de ti, tu és um fragmento dele” [Ibidem, livro II, cap. viii]. O ego volitivo acaba, então, não sendo menos dividido em dois do que o dois-em-um socrático do diálogo de pensamento de Platão. Mas, como vimos em Paulo, os dois no ego volitivo estão longe de manter entre si um relacionamento harmonioso e amigável, embora em Epiteto sua relação francamente antagônica não submeta o eu aos extremos de desespero que tanto ouvimos na lamentação de Paulo. Epiteto caracteriza a relação entre os dois como uma permanente “luta” (agón), uma competição olímpica que exige uma suspeita sempre alerta de mim para comigo: “Em uma palavra: [o filósofo, que sempre olha para si para o bem ou para o MAL] mantém a guarda contra si mesmo como a mantém contra seu próprio inimigo [hós echthron heautou], quando está à sua espera.” [The Manual, 51, 48] Basta relembrarmos o insight de Aristóteles (“todos os sentimentos de amizade na relação com os outros são uma extensão dos sentimentos de amizade que uma pessoa tem na relação consigo mesma”) para reavaliarmos a distância percorrida pelo espírito humano desde a Antiguidade. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]

Comecemos pelo interesse inicial de Agostinho pela Vontade, tal como é exposto na primeira parte do tratado, escrita nos primeiros tempos (as duas partes finais foram escritas quase dez anos depois, mais ou menos ao mesmo tempo que as Confissões). A questão principal aí é uma investigação sobre a causa do MAL: “pois sem alguma causa ele não poderia existir”, e Deus não pode ser a causa do MAL porque “Deus é bom”. A questão, comum mesmo naquela época, “tinha[-o] atormentado em excesso desde sua mocidade […] impelindo-o à heresia”, isto é, a aderir aos ensinamentos de Maniqueu [On Free Choice of the Will, livro I, caps. i e ii]. Daí em diante, o que temos estritamente é um raciocínio argumentativo (embora em forma de diálogo), assim como em Epiteto; e a esta altura os pontos significativos soam como um resumo com propósitos didáticos, até que chegamos à conclusão, em que o discípulo é levado a dizer: “Pergunto se o livre-arbítrio […] nos deveria ter sido dado por Aquele que nos fez. Pois parece que não poderíamos pecar se não tivéssemos um livre-arbítrio. E é de temer que dessa maneira Deus também possa ser considerado a causa de nossos maus atos.” Nesse ponto, Agostinho tranquiliza o indagador e adia a discussão [cap. xvi, 117 e 118]. Trinta anos mais tarde, de uma forma diferente, em A cidade de Deus, ele retoma a questão do “propósito da Vontade” como a do “Propósito do Homem”. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]

Finalmente, ainda no rastro das dificuldades descritas porém não explicadas na Epístola aos Romanos, Agostinho vem a interpretar o lado escandaloso da doutrina da graça de Paulo: “Veio a Lei para que crescesse a perdição; mas onde o pecado cresceu, a graça abundou ainda mais.” Partindo-se daí, fica difícil não chegar à seguinte conclusão: “Façamos o MAL para que o bem frutifique.” Ou, de forma mais amena, valeu ter sido incapaz de fazer o bem em virtude da alegria irresistível da graça — como disse uma vez o próprio Agostinho [On Grace and Free Will, cap. xiiv]. Sua resposta, nas Confissões, aponta para os estranhos caminhos da alma até mesmo na falta de qualquer experiência especificamente religiosa. A alma “deleita-se mais com encontrar ou reaver as coisas que ama do que se as tivesse […] possuído sempre. O general vitorioso triunfa […], e quanto maior o perigo no combate, maior gozo no triunfo […]. Um amigo está doente […]. Melhora […]. E embora não tenha recuperado a força anterior, já há tanto júbilo que é como se não existisse o tempo em que ele caminhava com mais força e vigor”. E é assim com todas as coisas; a vida humana está “repleta de testemunhos” disso. “A alegria maior é precedida de uma dor maior” — este é o “modo de ser que cabe” a todas as coisas vivas, do “anjo ao menor verme”. Até Deus, uma vez que Ele é um deus vivo, “sente mais alegria por um pecador arrependido do que por 99 que não precisam arrepender-se”. [Confessions, livro VIII, cap. iii, 6-8] Esse modo de ser (modus  ) é igualmente válido para as coisas vis e para as nobres, para as mortais e para as divinas. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]

Não obstante, isso só pode acontecer porque estar vivo sempre implica um desejo de continuar vivendo: por essa razão, a maior parte das pessoas prefere “ser infeliz a não ser absolutamente nada”. Mas e quanto àqueles que dizem “se eu tivesse sido consultado antes de existir teria preferido não existir a ser infeliz”? Esses não levaram em conta que até mesmo essa proposição é feita com base firme no Ser; se considerassem devidamente o assunto veriam que sua própria infelicidade faz com que eles existam menos do que desejam; ela lhes toma um pouco da existência. “O grau de sua infelicidade é proporcional à distância que mantêm daquilo que existe no grau supremo [quod summe   est]” e, portanto, fora da ordem temporal  , que está cheia de não-existência — “pois as coisas temporais, antes de existir, não têm existência; enquanto existem, passam; tendo passado, jamais existirão novamente”. Todos os homens temem a morte, e esse sentimento é mais verdadeiro do que qualquer opinião   que nos leve a “pensar que deveríamos querer não existir”, pois o fato é que “começar a existir é o mesmo que caminhar para a não-existência”. Em suma, “todas as coisas, pelo simples fato de que são, são boas”, inclusive o MAL e o pecado; e isso não só por causa de sua origem divina e de uma crença no Deus-Criador, mas também porque a sua própria existência nos impede de pensar ou de querer a não-existência absoluta. Nesse contexto, é importante observar que Agostinho (embora a maior parte do que venho citando tenha sido retirada da última parte de De libero arbitrium voluntatis) em nenhum lugar exige, como Eckhart fez mais tarde, que “um homem bom deva submeter sua vontade à vontade divina, de modo a querer aquilo que Deus quer: portanto, se Deus quis que eu pecasse, não devo querer não ter cometido meu pecado; é este o meu verdadeiro arrependimento”. [On Free Choice of the Will, livro III, caps. vi-viii; Lehmann, op. cit., sentença 14. p. 16.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]

Os maniqueístas explicavam o conflito assumindo a existência de duas naturezas contrárias, uma boa e a outra má. Mas “se houvesse tantas naturezas contrárias quantas vontades em luta dentro de nós, não haveria só duas, mas sim muitas naturezas”. Pois encontramos o mesmo conflito de vontades onde nenhuma escolha entre o bem e o MAL está em jogo, onde ambas as vontades devem ser ditas más ou ambas ditas boas. Sempre que um homem tenta chegar a uma decisão, “encontra-se um espírito oscilando entre muitas vontades”. Suponha que alguém tente se decidir entre “ir ao circo ou ao teatro  , se ambos forem no mesmo dia; ou a um terceiro lugar, roubar a casa de alguém […], ou a um quarto lugar, cometer adultério […], e todas estas vontades se realizassem no mesmo momento, todas igualmente desejadas, sendo coisas que não podem acontecer ao mesmo tempo”. Temos aqui quatro vontades, todas más e todas em conflito, “dilacerando” o ego volitivo. E o mesmo se dá com vontades que são boas [Ibidem, cap. x]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]

Em outras palavras, quando estudamos tais obras medievais, precisamos nos lembrar de que seus autores viveram em monastérios — sem os quais não existiria nada semelhante a uma “história das ideias” no mundo ocidental —, e isso significa que esses escritos saíram de um mundo de livros. Em contrapartida, as reflexões de Agostinho estiveram intimamente relacionadas com suas experiências; foi importante para ele descrevê-las em detalhe; e mesmo quando tratava de assuntos especulativos tais como a origem do MAL (no diálogo O livre-arbítrio da vontade, da fase inicial), nem sequer lhe ocorreu citar as opiniões de um sem-número de homens eruditos e conceituados no assunto. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 11]

O fundamento conceitual de todas essas distinções é que “o bem e o Ser diferem somente em pensamento: são a mesma realiter”, e isso a ponto de se poder dizer que são “conversíveis”: “[O homem] tem de bondade tanto quanto tem de Ser, e faltando-lhe plenitude de [seu] Ser, falta-lhe bondade, o que é chamado de MAL.” [Ibidem, I, questão 15, a. 3] Nenhum ser, à medida que é, pode ser dito mau, “mas somente à medida que lhe falte Ser”. Tudo isso, é claro, nada mais é do que uma elaboração da posição de Agostinho, mas a posição é ampliada e conceitualmente mais aguda. Do ponto de vista das faculdades da apreensão, o Ser aparece sob o aspecto de verdade; do ponto de vista da Vontade, em que o fim é o bem, aparece “sob o aspecto de algo desejável, que o Ser não expressa”. O MAL não é um princípio, porque é pura ausência, e a ausência pode ser enunciada “em um sentido privativo e em um sentido negativo. A ausência do bem, tomada negativamente, não é o MAL […] como, por exemplo, no caso de faltar a um homem a rapidez do cavalo; o MAL é uma ausência em que uma coisa é privada de um bem que a ela pertence de forma essencial — por exemplo, o homem cego, privado da visão” [Ibidem, I questão 48, a. 3]. Por esse caráter de privação, o MAL radical ou absoluto não pode existir. Não há MAL em que se possa detectar “a ausência total do bem”. Pois “se pudesse haver o MAL pleno  , ele destruiria a si mesmo” [Ibidem, questão 5; questão 49, a. 3]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 11]

Tomás não foi o primeiro a considerar o MAL como nada mais do que “privação”, uma espécie de ilusão de ótica causada quando o todo, do qual o MAL é apenas uma parte, não é levado em conta. Já Aristóteles tivera a noção de um Universo “no qual toda parte tem seu lugar perfeitamente ordenado”, de modo que o bem inerente ao fogo “causa MAL à água” por acidente [Citado em ibidem, questão 49, a. 3]. E este continua sendo o mais resistente e repetido argumento tradicional contra a existência real do MAL; nem mesmo Kant, que inventou o conceito de “MAL radical”, acreditava que alguém que “não possa demonstrar-se um amante” deva, por isso, estar “fadado a demonstrar-se um vilão”, que, usando a linguagem de Agostinho, velle e nolle estejam interligados e que a verdadeira escolha da Vontade seja entre querer e não-querer. Ainda assim, é verdade que este velho topos   da filosofia faz mais sentido em Tomás do que na maior parte dos outros sistemas, porque o centro do sistema de Tomás, seu “primeiro princípio”, é o Ser. No contexto de sua filosofia, “dizer que Deus criou não só o mundo mas também [criou] nele o MAL seria dizer que Deus criou o nada”, como apontou Gilson [History of Christian Philosophy in the Middle Age, Nova York, 1955, p. 375]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 11]

Essa recusa, que Scotus não menciona em sua discussão do possível ódio a Deus, é postulada em analogia com sua objeção à velha ideia de que “todos os homens querem ser felizes”. Ele admite ser evidente que os homens desejam por natureza ser felizes (embora não haja um acordo sobre o que é felicidade), mas a Vontade — e aqui temos o ponto crucial — pode transcender a natureza, no caso, suspendê-la: há uma diferença entre a inclinação natural do homem para a felicidade e a felicidade como objetivo de vida deliberadamente escolhido; não é absolutamente impossível para o homem descartar de todo a felicidade ao fazer seus projetos voluntários. No que diz respeito à inclinação natural e à limitação imposta pela natureza ao poder da Vontade, tudo o que se pode afirmar é que “nenhum homem quer ser desgraçado”. [Ver Bernardine M. Bonansea, “Duns Scotus’ Voluntarism”, in Ryan e Bonansea, op. cit., p. 92. “Non possum velle esse miserum; (…) sed ex hoc non sequitur, ergo necessario volo beatitudinem, quia nullum velle necessario elicitur a voluntate”, p. 93, nota 38.] Scotus evita dar uma resposta clara à questão de se o ódio a Deus é possível ou não pela relação íntima que existe entre essa questão e a questão do MAL. Alinhado com todos os seus predecessores e sucessores, também ele nega que o homem possa querer o MAL como MAL, “mas não sem levantar algumas dúvidas quanto à possibilidade da visão oposta”. [Ver ibidem, pp. 89-90 e nota 28. Bonansea enumera as passagens “que parecem indicar a possibilidade de a vontade buscar o MAL como MAL” (p. 89, nota 25).] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]

Duns Scotus distingue dois tipos de vontade: “vontade natural” (ut natura), que segue as inclinações naturais e pode ser inspirada pela razão e pelo desejo, e a “vontade livre” (ut libera) propriamente dita [Ver Vogt, op. cit., p. 29, e Bonansea, op. cit., p. 86, nota 13: “Voluntas naturalis non est voluntas, nec velle naturale est velle.”]. Concorda com quase todos os outros filósofos que está na natureza humana inclinar-se para o bem, explicando o MAL como fraqueza humana, a marca de uma criatura que veio do nada (“creatio ex nihilo”) e que, portanto, tem uma certa tendência para mergulhar de volta no nada (“omnis creatura potest tendere in nihil   et in non esse, eo quod de nihilo est”) [Citado de Hoeres, op. cit., pp. 113-114]. A vontade natural funciona como a “gravidade nos corpos”; e Scotus chama-a de “affectio commodi”, o fato de sermos afetados pelo que é adequado e conveniente. Se o homem tivesse somente a vontade natural, seria no máximo um bonum   animal, uma espécie de bruto esclarecido cuja própria racionalidade ajudaria a escolher os meios adequados a fins dados segundo a natureza humana. A vontade livre — distinta do liberum arbitrium, que só é livre para selecionar os meios para um fim pré-designado — designa livremente fins que são perseguidos por si mesmos; e dessa busca somente a vontade é capaz: “[voluntas] enim est productiva actum”, “pois a Vontade produz seu próprio ato.” [Ibidem, p. 151. A citação é de Auer, op. cit., p. 149] O problema é que Scotus não parece dizer em lugar algum o que é de fato esse ato designado livremente, embora pareça ter entendido a atividade do livre designar como a real perfeição da Vontade. [Hoeres, op. cit., p. 120. Enquanto a edição definitiva das obras de Duns Scotus não estiver completa, algumas questões que dizem respeito a seus ensinamentos sobre tais temas permanecerão em aberto.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]

Há, em primeiro lugar — o que parece óbvio, mas que nunca foi apontado antes —, o fato de que “a Vontade não pode querer retroativamente; não pode parar a roda do tempo”. Esta é a versão de Nietzsche   para o “eu-quero-e-não-posso”, pois é precisamente este querer retroativo que a Vontade quer e pretende alcançar. Dessa impotência Nietzsche retira todo o MAL humano — o rancor, a sede de vingança (castigamos porque não podemos desfazer o que foi feito), a sede de poder para dominar os outros. A essa “genealogia da moral” poderíamos acrescentar a impotência da Vontade, que persuade o homem a preferir olhar para trás, relembrando e pensando, porque, para o olhar retrospectivo, tudo o que é parece ser necessário. O repúdio da Vontade libera o homem de uma responsabilidade que seria intolerável caso nada do que foi feito pudesse ser desfeito. Em todo caso, foi provavelmente o choque da Vontade com o passado que fez com que Nietzsche fizesse experimentos com o Eterno Retorno. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14]