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Arendt (LM): consciência

quinta-feira 25 de janeiro de 2024

Foi essa ausência de pensamento — uma experiência tão comum em nossa vida cotidiana, em que dificilmente temos tempo e muito menos desejo de parar e pensar — que despertou meu interesse  . Será o fazer-o-mal (pecados por ação e omissão) possível não apenas na ausência de “motivos torpes” (como a lei os denomina), mas de quaisquer outros motivos, na ausência de qualquer estímulo particular ao interesse ou à volição? Será que a maldade — como quer que se defina esse estar “determinado a ser vilão” — não é uma condição necessária para o fazer-o-mal? Será possível que o problema do bem e do mal, o problema de nossa faculdade para distinguir o que é certo do que é errado, esteja conectado com nossa faculdade de pensar? Por certo, não, no sentido de que o pensamento pudesse ser capaz de produzir o bem como resultado, como se a “virtude pudesse ser ensinada” e aprendida — somente hábitos e costumes podem ser ensinados, e nós sabemos muito bem com que alarmante rapidez eles podem ser desaprendidos e esquecidos quando as novas circunstâncias exigem uma mudança nos modos e padrões de comportamento. (O fato de que habitualmente se trata de assuntos ligados ao problema do bem e do mal em cursos de “moral  ” ou de “ética” pode indicar quão pouco sabemos sobre eles, pois moral deriva de mores  , e ética, de ethos, respectivamente os termos latino e grego para designar os costumes e os hábitos — estando a palavra latina associada a regras de comportamento e a grega sendo derivada de habitação, como a nossa palavra “hábitos”.) A ausência de pensamento com que me defrontei não provinha nem do esquecimento de boas maneiras e bons hábitos, nem da estupidez, no sentido de inabilidade para compreender — nem mesmo no sentido de “insanidade moral”, pois ela era igualmente notória nos casos que nada tinham a ver com as assim chamadas decisões éticas ou os assuntos de CONSCIÊNCIA. [Arendt  , Vida do Espírito I O Pensar Introdução]

A questão que se impunha era: seria possível que a atividade do pensamento como tal — o hábito de examinar o que quer que aconteça ou chame a atenção, independentemente de resultados e conteúdo específico — estivesse entre as condições que levam os homens a abster-se de fazer o mal, ou mesmo que ela realmente os “condicione” contra ele? (A própria palavra “CONSCIÊNCIA”, em todo o caso, aponta nessa direção, uma vez que significa “saber comigo e por mim mesmo”, um tipo de conhecimento que é atualizado em todo processo de pensamento.) E não estará essa hipótese reforçada por tudo o que sabemos sobre a CONSCIÊNCIA, isto é, que uma “boa CONSCIÊNCIA” em geral só é apreciada na condição de regra por pessoas realmente más, criminosas e tais, ao passo que somente “pessoas boas” são capazes de ter uma má CONSCIÊNCIA? Dizendo de outra maneira e utilizando uma linguagem kantiana: tendo sido aturdida por um fato que, queira eu ou não, “me pôs na posse de um conceito” (a banalidade do mal), não me era possível deixar de levantar a quaestio juris e me perguntar “com que direito eu o possuía e utilizava”. [Notas sobre metafísica, Kant  ’s handschriftlicher Nachlass, vol. V, in Kant’s gesammelte Schriften, Akademie Ausgabe, Berlim, Leipzig, 1928, vol. XVIII, 5636.] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar Introdução]

Essas “mortes” modernas — de Deus, da metafísica, da filosofia e, por implicação, do positivismo — tornaram-se eventos com consequências históricas consideráveis, pois, com o início de nosso século, deixaram de ser uma preocupação exclusiva das elites intelectuais para ser não tanto a preocupação, mas o pressuposto comum irrefletido de quase todo o mundo. Não nos ocuparemos aqui do aspecto político do assunto. Em nosso contexto, talvez seja melhor mesmo deixar o tema, que na verdade é de competência política, fora de nossas considerações, e insistir, pelo contrário, no simples fato de que, por mais seriamente que nossos modos de pensar estejam envolvidos nessa crise, nossa habilidade para pensar não está em questão; somos o que os homens sempre foram — seres pensantes. Com isso quero dizer apenas que os homens têm uma inclinação, talvez uma necessidade, de pensar para além dos limites do conhecimento, de fazer dessa habilidade algo mais do que um instrumento para conhecer e agir. Falar de niilismo nesse contexto talvez seja apenas relutância em abandonar conceitos e sequências de pensamento que de fato morreram há bastante tempo, embora seu passamento só muito recentemente tenha sido reconhecido em público. Se ao menos pudéssemos fazer nessa situação o que a Era Moderna fez em seu estágio inicial, ou seja, tratar cada assunto “como se ninguém o tivesse abordado antes de mim” (como propõe Descartes   em suas observações introdutórias a Les passions de l’âme)! Isso se tornou em parte impossível por causa da enorme expansão de nossa CONSCIÊNCIA histórica, mas principalmente porque o único registro que temos sobre o que o pensamento como atividade significou para aqueles que o escolheram como modo de vida é o que hoje chamaríamos de “falácias metafísicas”. Talvez nenhum dos sistemas, nenhuma das doutrinas que nos foram transmitidas pelos grandes pensadores seja convincente ou mesmo razoável para os leitores modernos; mas nenhum deles — tentarei argumentar aqui — é arbitrário nem pode ser simplesmente descartado como puro absurdo. Ao contrário, as falácias metafísicas contêm as únicas pistas que temos para descobrir o que significa o pensamento para aqueles que nele se engajam — algo extremamente importante neste momento e sobre o que, estranhamente, existem poucos depoimentos diretos. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar Introdução]

As tentações para resolver a equação — que se reduzem à recusa de aceitar e pensar por meio da distinção que Kant faz entre razão e intelecto, entre a “necessidade urgente” de pensar e o “desejo de conhecer” — são muito fortes e não podem de modo algum ser unicamente tributadas ao peso da tradição. As ideias de Kant tiveram um efeito liberador extraordinário sobre a filosofia alemã, desencadeando a ascensão do idealismo alemão. Não há dúvida de que abriram espaço para o pensamento especulativo; mas esse pensamento voltou a tornar-se o campo de um novo tipo de especialistas presos à noção de que o “assunto próprio” da filosofia é “o conhecimento real do que verdadeiramente é” [Hegel  , The Phenomenology of Mind, trad. de Baillie, Introdução, p. 131]. Libertados por Kant da velha escola dogmática e de seus exercícios estéreis, os especialistas construíram não apenas novos sistemas, mas uma nova “ciência” — o título original da maior dentre as suas obras, a Fenomenologia do espírito, de Hegel, era “Ciência da Experiência da CONSCIÊNCIA” [Ibidem, p. 144] —, empalidecendo precipitadamente a distinção que Kant fez entre o interesse da razão pelo incognoscível e o interesse do intelecto pela cognição. Buscando o ideal   cartesiano de certeza, como se Kant não houvesse existido, eles acreditaram, com toda a honestidade, que os resultados de suas especulações tinham o mesmo tipo de validade que os resultados dos processos cognitivos. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar Introdução]

Já que os seres sensíveis — homens e animais, para os quais as coisas aparecem e que, como receptores, garantem sua realidade — são eles mesmos também aparências, próprias para e capazes tanto de ver como de ser vistas, de ouvir e de ser ouvidas, de tocar e de ser tocadas, eles nunca são apenas sujeitos e nunca devem ser compreendidos como tal; não são menos “objetivos” do que uma pedra ou uma ponte. A mundanidade das coisas vivas significa que não há sujeito que não seja também objeto e que não apareça como tal para alguém que garanta sua realidade “objetiva”. O que usualmente chamamos “CONSCIÊNCIA”, o fato de que estou cônscio de mim mesmo, e que, portanto, em algum sentido, posso aparecer para mim mesmo, jamais seria o bastante para assegurar a realidade (o Cogito   me cogitare ergo sum, de Descartes, é um non sequitur, pela simples razão de que esta res cogitans   nunca aparece, a menos que suas cogitationes sejam manifestadas em um discurso falado ou escrito que já é destinado e que pressupõe ouvintes e leitores como receptores). Vista da perspectiva do mundo, cada criatura que nasce nele chega bem equipada para lidar com um mundo no qual Ser e Aparecer coincidem; são criaturas adequadas à existência mundana. Os seres vivos, homens e animais, não estão apenas no mundo, eles são do mundo. E isso precisamente porque são sujeitos e objetos — percebendo e sendo percebidos — ao mesmo tempo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 1]

É óbvio que a CONSCIÊNCIA desse impasse deveria ser muito mais aguda nas ciências que lidam diretamente com os homens; e a resposta — reduzida ao mínimo denominador comum — dos vários ramos da biologia, da sociologia e da psicologia foi no sentido de interpretar todas as aparências como funções no processo vital. A grande vantagem do funcionalismo é que ele nos apresenta novamente uma visão unitária do mundo e mantém intacta, embora de modo diferente, a velha dicotomia metafísica entre o (verdadeiro) Ser e a (mera) Aparência, junto com o velho preconceito da supremacia do Ser sobre a aparência. O argumento deslocou-se; as aparências não são mais depreciadas como “qualidades secundárias”, mas compreendidas como condições necessárias dos processos essenciais internos ao organismo vivo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 3]

Uma vez que as aparências sempre se apresentaram na forma do parecer, a fraude, presumida ou premeditada, da parte do ator, o erro e a ilusão se encontram inevitavelmente entre as potencialidades inerentes, da parte do espectador. A autoapresentação se distingue da autoexposição pela escolha ativa e consciente da imagem exibida; a autoexposição não tem outra escolha senão exibir quaisquer características que um ser vivo já tenha. A autoapresentação não seria possível sem certo grau de autoconsciência — uma capacidade inerente ao caráter reflexivo das atividades espirituais e que transcende visivelmente a simples CONSCIÊNCIA que provavelmente compartilhamos com os animais superiores. Propriamente falando, somente a autoapresentação está aberta à hipocrisia e ao fingimento, e a única forma de diferençar fingimento e simulação de realidade e verdade é a incapacidade que os primeiros desses elementos têm para perdurar guardando consistência. Já foi dito que a hipocrisia é o elogio que o vício faz à virtude, mas isso não é bem verdade. Toda virtude começa com um elogio feito a ela, pelo qual expresso minha satisfação com relação a ela. O elogio implica uma promessa feita ao mundo, feita àqueles aos quais agradeço, uma promessa de agir de acordo com minha satisfação; a quebra dessa promessa implícita é que caracteriza o hipócrita. Em outras palavras, o hipócrita não é um vilão que se satisfaz com o vício e esconde, daqueles que o rodeiam, a satisfação. O teste que se aplica ao hipócrita é, de fato, a velha máxima socrática: “Seja como quer aparecer” — o que significa apareça sempre como quer aparecer para os outros, mesmo quando você estiver sozinho e aparecer apenas para si mesmo. Quando tomo uma decisão desse tipo, não apenas reajo a quaisquer qualidades que me possam ter sido dadas; realizo um ato de escolha deliberada entre as várias potencialidades de conduta com as quais o mundo se apresentou a mim. De tais atos surge finalmente o que chamamos caráter ou personalidade, o conglomerado de um número de qualidades identificáveis, reunidas em um identificável todo compreensível e confiável, e que estão, por assim dizer, impressas em um substrato imutável de talentos e defeitos peculiares à nossa estrutura psíquica e corporal. Por causa da relevância inegável dessas características escolhidas para nossa aparência e para nosso papel no mundo, a filosofia moderna, a começar por Hegel, sucumbiu à estranha ilusão de que o homem, ao contrário das outras coisas, criou-se a si mesmo. Obviamente a autoapresentação e o simples estar-aí da existência não são o mesmo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 4]

Em outras palavras, a comum compreensão filosófica do Ser como o fundamento da Aparência é verdadeira para o fenômeno da Vida; mas o mesmo não pode ser dito sobre a comparação valorativa Ser versus Aparência que está no fundo de todas as teorias dos dois mundos. Essa hierarquia tradicional não deriva de nossas experiências ordinárias no mundo das aparências, mas, ao contrário, da experiência não ordinária do ego   pensante. Como veremos mais adiante, a experiência transcende não só a Aparência, mas o próprio Ser. Kant identifica explicitamente o fenômeno que forneceu a base real para sua crença numa “coisa-em-si” por sob as “meras” aparências: o fato de que, “na CONSCIÊNCIA que tenho de mim na pura atividade do pensar [beim blossen Denken  ], sou a própria coisa [das Wesen   selbst  , ou seja, das Ding   an sich  ], sem que, por isso, nada de mim seja dado ao pensamento” [Ibidem, B429]. Se reflito sobre a relação que estabeleço de mim para comigo na atividade de pensar, pode parecer que meus pensamentos seriam “meras representações” ou manifestações de um ego que se mantém, ele próprio, para sempre oculto, pois naturalmente os pensamentos nunca se parecem com propriedades atribuíveis a um eu ou a uma pessoa. O ego pensante é, pois, a “coisa-em-si” de Kant: ele não aparece para os demais e, diferentemente do eu da autoconsciência, ele não aparece para si mesmo. Ainda assim, ele “não é igual a nada”. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 6]

O sentido interno, que nos poderia propiciar a apreensão da atividade de pensar em alguma forma de intuição interior, não tem em que se prender, segundo Kant, porque suas manifestações são inteiramente diferentes das “manifestações com que se confronta o sentido externo, [que encontra] algo imóvel e permanente, […] ao passo que o tempo, a única forma de intuição interna, nada tem de permanente” [Critique of Pure Reason, A381]. Assim, “tenho CONSCIÊNCIA de mim, não de como apareço para mim, não de como sou em mim mesmo, mas apenas de que sou. Essa representação é um pensamento, não uma intuição”. E acrescenta em nota de rodapé: “O ‘eu penso’ expressa o ato de determinação de minha existência. A existência, portanto, já está dada, mas o modo como eu sou […] não está dado.” [Ibidem, B157-B158] Kant chama repetidas vezes a atenção para esse ponto na Crítica da razão pura — nada permanente “é dado na intuição interna quando penso em mim mesmo”. [Ibidem, B420] Mas faríamos melhor se nos voltássemos para os escritos pré-críticos, de maneira a encontrar uma descrição real das puras experiências do ego pensante. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 6]

Em Träume eines Geistersehers, erläutert durch Träume der Metaphysik   (1766), Kant sublinha a “imaterialidade” do mundus intelligibilis, o mundo em que se move o ego pensante, em contraste com a “inércia e a constância” da matéria morta que cerca os seres vivos no mundo das aparências. Nesse contexto, ele distingue a “noção que a alma do homem tem de si mesma como espírito [Geist  ], por meio de uma intuição imaterial, e a CONSCIÊNCIA por meio da qual ela se apresenta como homem, utilizando-se de uma imagem que tem sua origem na sensação dos órgãos físicos e que é concebida em relação a coisas materiais. É sempre, portanto, o mesmo sujeito que é membro tanto do mundo visível quanto do mundo invisível, mas não a mesma pessoa, já que […] o que como espírito penso não é lembrado por mim como homem e, ao contrário, meu estado real como homem não participa da noção que tenho de mim como espírito”. E, em uma estranha nota de rodapé, Kant fala de uma “certa dupla personalidade que é própria da alma, mesmo nesta vida”; ele compara o estado do ego pensante ao estado do sono profundo, “quando os sentidos externos encontram-se em total repouso”. Ele suspeita de que as ideias, durante o sono, “podem ser mais claras e mais amplas do que a mais clara de todas as ideias em estado de vigília”, precisamente porque “o homem, em tais ocasiões, não é sensível ao seu corpo”. E não recordamos nada dessas ideias quando despertamos. Os sonhos são algo ainda diferente; eles “não são daqui. Pois, nesse caso, o homem não adormece completamente […], e entrelaça as ações de seu espírito com as impressões de seus sentidos exteriores” [A última e supostamente a melhor tradução para o inglês, feita por John Manolesco, apareceu sob o título de Dreams of a Spirit Seer, and Other Writings, Nova York, 1969. Eu mesma traduzi a passagem do alemão, in Werke, vol. I. pp. 946-951.]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 6]

A realidade em um mundo de aparências é antes de tudo caracterizada por “ficar imóvel e permanecer” o mesmo o tempo suficiente para tornar-se um objeto que pode ser conhecido e reconhecido por um sujeito. A descoberta básica e mais importante de Husserl   trata exaustivamente da intencionalidade de todos os atos de CONSCIÊNCIA, ou seja, do fato de que nenhum ato subjetivo pode prescindir de um objeto. Embora a árvore vista possa ser uma ilusão, para o ato de ver ela é um objeto. Da mesma forma, embora a paisagem sonhada seja visível apenas para o sonhador, ela é objeto de seu sonho. A objetividade é construída na própria subjetividade da CONSCIÊNCIA em virtude da intencionalidade. Ao contrário, e com a mesma justeza, pode-se falar da intencionalidade das aparências e da sua subjetividade embutida. Exatamente porque aparecem todos os objetos implicam um sujeito, e como todo ato subjetivo tem seu objeto intencional, também todo objeto que aparece tem seu sujeito intencional. Nas palavras de Portmann, toda aparência é uma “emissão para receptores” (uma Sendung für Empfangsapparate). O que quer que apareça visa a alguém que o perceba, um sujeito potencial não menos inerente em toda objetividade do que um objeto potencial é inerente à subjetividade de todo ato intencional. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7]

Eis por que as teorias solipsistas — seja quando proclamam radicalmente que só o eu “existe”, seja quando, mais moderadamente, asseveram que o eu e sua CONSCIÊNCIA de si são objetos primários do conhecimento verificável — estão em desarmonia com os dados mais elementares de nossa existência e de nossa experiência. O solipsismo, aberto ou velado, com ou sem qualificativos, foi a mais persistente e talvez a mais perniciosa falácia filosófica mesmo antes de adquirir, com Descartes, um alto nível de consistência teórica e existencial. Quando o filósofo fala do “homem”, ele não tem em mente nem o ser da espécie (o Gattungswesen, como cavalo ou leão, que segundo Marx   constitui a existência fundamental do homem), nem o mero paradigma do que, de seu ponto de vista, todos os homens deveriam se esforçar por atingir. Para o filósofo, falando a partir da experiência do ego pensante, o homem é muito naturalmente não apenas verbo, mas pensamento feito carne, a encarnação sempre misteriosa, nunca totalmente elucidada da capacidade do pensamento. E o problema desse ser fictício é que ele nem é o produto de um cérebro doentio, nem um desses “erros do passado” facilmente solucionáveis, mas a semblância inteiramente autêntica da própria atividade de pensar. Pois quando um homem se entrega ao puro pensamento, por qualquer razão que seja e independentemente do assunto, ele vive completamente no singular, ou seja, está completamente só, como se o Homem, e não os homens, habitasse o planeta. O próprio Descartes explicou e justificou seu subjetivismo radical pela decisiva perda de certezas legada pelas grandes descobertas científicas da Era Moderna; e em outro contexto procurei acompanhar o pensamento de Descartes [The Human Condition, pp. 252ss]. Entretanto, quando — assediado pelas dúvidas inspiradas pelo início da ciência moderna — decidiu “à rejeter la terre mouvante et le sable pour trouver le roc ou l’argile” [rejeitar a areia movediça e a lama para encontrar a pedra ou barro], ele certamente redescobriu um terreno bastante familiar, retirando-se para um lugar onde poderia viver “aussi solitaire et retiré que dans les déserts les plus écartés” [tão só e afastado como nos mais remotos desertos] [Le Discours de la Méthode, 3ª parte in Descartes: Oeuvres et Lettres, pp. 111, 112; veja, para a primeira citação, The Philosophical Works of Descartes, traduzido por Elizabeth S. Haldane e G. R. T. Ross, Cambridge, 1972, vol. I, p. 99.]. Retirar-se da “bestialidade da multidão” para ficar na companhia dos “muito poucos” [Platão  , Philebus, 67b, 52b] e também no estar-só absoluto do Um tem sido a principal característica da vida do filósofo, desde que Parmênides   e Platão descobriram que para aqueles “muito poucos”, os sophoi, a “vida do pensamento”, que não conhece nem dor nem alegria, é a mais divina, e que o nous, o próprio pensamento, é “o rei da terra e do céu” [Ibidem, 33b, 28c]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7]

De fato, nenhuma dessas descobertas, ou melhor, redescobertas, foi em si mesma de grande relevância para Descartes. Seu interesse principal era encontrar algo — o ego pensante ou, em suas próprias palavras, “la chose pensante”, que ele identificava à alma — cuja realidade estivesse para além de qualquer suspeita, para além das ilusões da percepção sensorial. Mesmo o poder de um Dieu trompeur onipotente não seria capaz de abalar a certeza de uma CONSCIÊNCIA que abandonou toda a experiência sensível. Embora tudo o que seja dado possa ser sonho e ilusão, o sonhador, quando concorda em não exigir realidade do sonho, deve ser real. Assim, “Je pense, donc je suis”, “Penso, logo existo”. Por um lado, era tão forte a experiência da própria atividade de pensar, e, por outro, tão apaixonado o desejo de encontrar certeza e algum tipo de permanência duradoura depois que a nova ciência descobriu “la terre mouvante” (a areia movediça que constitui o próprio solo sobre o qual nos pomos de pé), que nunca lhe ocorreu que nenhuma cogitatio e nenhum cogito me cogitare — nenhuma CONSCIÊNCIA de um eu ativo que suspendeu toda a fé na realidade de seus objetos intencionais — poderia convencê-lo de sua própria realidade, de que ele teria realmente nascido em um deserto, sem um corpo e sem os sentidos necessários para perceber coisas “materiais”; e sem outras criaturas que lhe assegurassem que o que ele percebia também era percebido por elas. A res cogitans cartesiana, essa criatura fictícia, sem corpo, sem sentidos e abandonada, nem sequer saberia que existe uma realidade e uma possível distinção entre o real e o irreal, entre o mundo comum da vida consciente e o não-mundo privado de nossos sonhos. O que Merleau-Ponty   tinha a dizer contra Descartes, disse-o de modo brilhante e correto: “Reduzir a percepção ao pensamento de perceber […] é fazer um seguro contra a dúvida, cujos prêmios são mais onerosos do que a perda pela qual eles devem nos indenizar; pois é […] passar a um tipo de certeza que nunca nos trará de volta o ‘há’ do mundo.” [The Visible and the Invisible, pp. 36-37] [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 7]

O que a ciência e a busca de conhecimento procuram é a verdade irrefutável, ou seja, proposições que os seres humanos não estão livres para refutar — são coercitivas. Como sabemos desde Leibniz  , elas podem ser de dois tipos: verdades da razão e verdades de fato. A principal distinção entre elas está no grau de sua força de coerção: as verdades da “razão são necessárias e seu contrário é impossível”; ao passo que “as de fato são contingentes, e seu contrário é possível” [Monadology, nº 33]. A distinção é importante, embora talvez não no sentido em que o próprio Leibniz a compreende. As verdades de fato, a despeito de sua contingência, são tão coercitivas para quem as testemunha com os próprios olhos quanto a proposição de que dois mais dois são quatro para qualquer pessoa em sã CONSCIÊNCIA. Apenas a questão é que um fato, um evento, nunca pode ser testemunhado por todos os que estão eventualmente nele interessados, ao passo que a verdade racional ou matemática apresenta-se como autoevidente para qualquer um dotado do mesmo poder cerebral; sua natureza coercitiva é universal, enquanto a força coercitiva da verdade factual é limitada; ela não alcança aqueles que, não tendo sido testemunhas, têm que confiar no testemunho de outros em quem se pode ou não acreditar. O verdadeiro contrário da verdade factual, em oposição à racional, não é o erro ou a ilusão, mas a mentira deliberada. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 8]

A famosa distinção kantiana entre Vernunft   e Verstand, entre a faculdade do pensamento especulativo e a capacidade de conhecer que surge da experiência sensorial — em que “todo pensamento é apenas um meio para alcançar a intuição” (“Quaisquer que sejam as maneiras e os meios pelos quais um conhecimento esteja relacionado com objetos, a intuição é o meio através do qual o conhecimento está em relação imediata com os objetos, e para o qual todo pensamento, como um meio, se dirige”) [Critique of Pure Reason, A19, B33] —, tem consequências de alcance muito mais amplo e por vezes são distintas das consequências por ele reconhecidas. [Que eu conheça, a única interpretação de Kant que poderia ser citada em apoio à minha própria compreensão da distinção kantiana entre razão e intelecto é a excelente análise de Crítica da razão pura feita por Eric Weil: “Penser et Connaître, la Foi et la Chose-en-soi”, in Problèmes Kantiens, 2ª ed., Paris, 1970. Segundo Weil, é inevitável “d’affirmer que Kant, qui dénie à la raison pure la possibilité de connaître et de développer une science, lui reconnaît, en revanche, celle d’acquérir un savoir qui, au lieu de connaître, pense” (p. 23). Deve-se admitir, entretanto, que as conclusões de Weil permanecem próximo da compreensão que Kant tinha de si mesmo. Weil está interessado principalmente na interconexão entre as razões Pura e Prática; desse modo afirma que “le fondement dernier de la philosophie   kantienne doit être cherché dans sa theórie de l’homme, dans l’anthropologie   philosophique, non dans une ‘théorie de la connaissance’ […]” (p. 33). Por outro lado, minhas principais reservas em relação à filosofia de Kant dizem respeito precisamente à sua filosofia moral, ou seja, à Crítica da razão prática, embora eu concorde, naturalmente, que aqueles que leram a Crítica da razão pura como uma espécie de epistemologia parecem ignorar completamente os capítulos finais do livro (p. 34). Os quatro ensaios do livro de Weil, de longe os mais importantes artigos da literatura sobre Kant nos últimos anos, estão baseados na descoberta simples, mas crucial, de que “l’opposition connaître […] et penser est fondamentale pour la compréhension de la pensée kantienne” (p.112, n. 2).] (Discutindo Platão, Kant certa vez observou que “não é nada incomum, quando se comparam os pensamentos expressos por um autor com o seu assunto […], descobrir que compreendemos melhor esse autor do que ele próprio compreendeu a si mesmo. À medida que o autor não determinou suficientemente seu conceito, pode ser que, algumas vezes, ele tenha falado ou até pensado em sentido contrário à sua intenção” [Critique of Pure Reason, A314]. Isso, naturalmente, é aplicável à própria obra de Kant.) Embora tenha insistido na incapacidade da razão para atingir conhecimento, particularmente em relação a Deus, à liberdade e à imortalidade — para ele os mais elevados objetos do pensamento —, não pôde romper completamente com a convicção de que o propósito final do pensamento, assim como do conhecimento, é a verdade e a cognição; é assim que ele utiliza ao longo de suas Críticas o termo Vernunfterkentnis, “conhecimento derivado da razão pura” [Ibidem, B868], uma noção que, para ele, deve ter sido uma contradição em termos. Kant nunca teve completa CONSCIÊNCIA de haver liberado a razão e o pensamento, de haver justificado essa faculdade e sua atividade, mesmo quando elas não se podem gabar de ter produzido quaisquer “resultados” positivos. Como vimos, ele afirmou ter “achado necessário negar o conhecimento […] para abrir espaço para a fé” [Ibidem, Bxxx]; mas o que ele de fato “negou” foi o conhecimento das coisas incognoscíveis; com isso, abriu espaço para o pensamento, não para a fé. Acreditava ter lançado as fundações de uma “metafísica sistemática” futura como um “legado para a posteridade” [Ibidem]; e é verdade que, sem a liberação do pensamento especulativo realizada por Kant, o surgimento do idealismo alemão e de seus sistemas metafísicos dificilmente teria sido possível. Mas a nova leva de filósofos — Fichte  , Schelling  , Hegel — não teria agradado Kant. Liberados por ele do velho dogmatismo escolástico e de seus exercícios estéreis, e encorajados a cultivar o pensamento especulativo, eles seguiram, na verdade, o exemplo de Descartes: saíram em busca de certeza, apagaram novamente a linha demarcatória entre pensamento e conhecimento e acreditaram honestamente que os resultados de suas especulações tinham o mesmo tipo de validade que os resultados dos processos cognitivos. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 8]

A simples invisibilidade, o fato de que algo possa ser sem ser manifesto aos olhos, deve ter sido sempre surpreendente. Podemos avaliar isso pela estranha indisposição de toda a nossa tradição em traçar nítidas fronteiras entre alma, espírito e CONSCIÊNCIA, elementos frequentemente equiparados como objetos do nosso sentido interno pela simples razão de que não se manifestam para os sentidos externos. Desse modo, Platão concluiu que a alma é invisível porque ela é feita para a cognição do invisível em um mundo de coisas visíveis. E mesmo Kant, o mais crítico dos filósofos em relação aos preconceitos metafísicos tradicionais, enumera ocasionalmente dois tipos de objetos: ‘‘‘Eu’, como pensamento, sou um objeto de sentido interno, e me chamam ‘alma’. O objeto dos sentidos externos é chamado ‘corpo’.” [Critique of Pure Reason, B400] Isso, evidentemente, é apenas uma variante da velha teoria metafísica dos dois mundos. Faz-se uma analogia   em relação à exterioridade da experiência sensível baseada na suposição de que um espaço interno abriga o que está em nosso interior do mesmo modo que o espaço externo faz com os nossos corpos — de modo que um “sentido interno”, a saber, a intuição da introspecção, é concebido como capaz de determinar o que quer que ocorra “internamente” com a mesma segurança dos nossos sentidos externos ao lidarem com o mundo exterior. No que diz respeito à alma, a analogia não é totalmente ilusória. Uma vez que sentimentos e emoções não são autocriados, mas são “paixões” provocadas por eventos externos que afetam a alma e produzem certas reações, a saber, as pathemata da alma — seus humores e estados passivos —, essas experiências internas podem de fato estar abertas ao sentido interno da introspecção precisamente porque são possíveis, como observou Kant, “somente com base na suposição da experiência externa” [Ibidem, B275]. Ademais, a sua própria passividade, o fato de não estarem sujeitas a mudanças produzidas por qualquer intervenção deliberada, resulta em uma impressionante semblância de estabilidade. Essa semblância produz, então, certas ilusões da introspecção, que, por sua vez, levam à teoria de que o espírito não somente é senhor de suas próprias atividades, como também pode governar as paixões da alma — como se o espírito fosse apenas o órgão mais elevado da alma. Essa teoria é muito antiga e alcançou seu clímax com as doutrinas estoicas do controle da dor e do prazer pelo espírito; sua falácia — de que é possível sentir-se feliz ao ser assado no Touro de Falera — repousa, em última instância, sobre a equação da alma com o espírito, isto é, reside em atribuir à alma e à sua passividade essencial a poderosa soberania do espírito. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]

Nenhum ato do espírito — muito menos o ato de pensar — contenta-se com o seu objeto tal como lhe é dado. Ele sempre transcende a pura imediatez do que quer que tenha despertado sua atenção e transforma isso no que Petrus Johannis Olivi, o filósofo franciscano da Vontade, no século XIII [Ver Ernest Stadter, Psychologie   und Metaphysik der menschlichen Freiheit  , Munique, Paderborn, Viena, 1971, p. 195], chamou de experimentum suitatis, um experimento do Eu comigo mesmo. Uma vez que a pluralidade é uma das condições existenciais básicas da vida humana na Terra — de modo que inter homines esse, estar entre os homens, era, para os romanos, o sinal de estar vivo, ciente da realidade do mundo e do Eu, e inter homines esse desinere, deixar de estar entre os homens, um sinônimo para morrer —, estar sozinho e estabelecer um relacionamento consigo mesmo são a característica mais marcante da vida do espírito. Só podemos dizer que o espírito tem sua vida própria à medida que ele efetiva esse relacionamento no qual, existencialmente falando, a pluralidade é reduzida à dualidade já implícita no fato e na palavra “CONSCIÊNCIA” ou syneidenai — conhecer comigo mesmo. Chamo esse estado existencial no qual faço companhia a mim mesmo de “estar só”, para distingui-lo da “solidão”, na qual também me encontro sozinho, mas abandonado não apenas de companhia humana, mas também de minha própria companhia. É somente na solidão que me sinto privado da companhia humana; e é somente na aguda CONSCIÊNCIA de tal privação que os homens podem chegar a existir realmente no singular; assim como talvez seja somente nos sonhos ou na loucura que eles percebam completamente o “horror impronunciável” e insuportável desse estado [Ver a magnífica descrição de tal sonho, da “completa solidão” em Observations on the Feeling of the Beautiful and Sublime, de Kant, trad. John T. Goldthwait, Berkeley, Los Angeles, 1960, pp. 48-49]. Todas as atividades do espírito testemunham, elas próprias, por sua natureza reflexiva, uma dualidade inerente à CONSCIÊNCIA; o agente espiritual só pode ser ativo agindo implícita ou explicitamente sobre si mesmo. A CONSCIÊNCIA — o “eu penso” de Kant — não somente acompanha “todas as outras representações”, mas todas as minhas atividades, nas quais, no entanto, posso estar inteiramente esquecido do meu eu. A CONSCIÊNCIA como tal, antes de se efetivar no estar só, chega no máximo a perceber a igualdade uniforme do eu-sou — “Tenho CONSCIÊNCIA de mim, não de como apareço para mim nem de como sou eu em mim mesmo, mas somente que sou” [Critique of Pure Reason, B157, Cf. cap. I do presente volume] —, que assegura a continuidade idêntica de um eu por meio das múltiplas representações, experiências e memórias de uma vida. Como tal, ela “expressa o ato de determinar a minha existência” [Ibidem, B158n]. As atividades espirituais e, como veremos mais adiante, especialmente o pensar — o diálogo sem som de mim comigo mesmo — podem ser entendidas como a efetivação da dualidade originária ou da cisão entre mim e meu eu, intrínseca a toda CONSCIÊNCIA. Mas essa pura CONSCIÊNCIA de mim, da qual estou, por assim dizer, inconscientemente consciente, não é uma atividade; porque acompanha todas as outras atividades, ela é a garantia de um eu-sou-eu completamente silencioso. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]

A vida do espírito na qual faço companhia a mim mesmo pode ser sem som; mas nunca é silenciosa; e jamais pode se esquecer completamente de si, pela natureza reflexiva de todas as suas atividades. Todo cogitare, não importa qual seja seu objeto, é também um cogito me cogitare; toda volição é um volo me velle; mesmo o juízo só é possível por um “retour secret sur moi-même”, como observou Montesquieu. Essa reflexividade parece apontar para um lugar de interioridade dos atos do espírito, construído sob o princípio do espaço externo no qual os meus atos não-espirituais têm lugar. Mas a ideia de que essa interioridade, diferentemente da interioridade passiva da alma, só pode ser entendida como um lugar de atividades é uma falácia cuja origem histórica é a descoberta, nos primeiros séculos da Era Cristã, da Vontade e das experiências do ego volitivo. Pois só estou consciente das faculdades do espírito e de sua reflexividade durante sua atividade. É como se os próprios órgãos do pensamento, da vontade ou do juízo só viessem a existir quando penso, quero ou julgo; em seu estado latente, supondo que tal latência exista anteriormente à sua efetivação, não estão abertos à introspecção. O ego do pensamento, do qual tenho perfeita CONSCIÊNCIA enquanto dura a atividade do pensamento, desaparecerá como se fosse uma simples miragem, tão logo o mundo real volte a se impor. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]

Essas observações podem indicar por que o pensar, a busca de significado — oposta à sede de conhecimento, e mesmo ao conhecimento pelo conhecimento — foi tão frequentemente considerada antinatural, como se os homens, sempre que refletissem sem propósito específico, ultrapassando a curiosidade natural despertada pelas múltiplas maravilhas do simples estar-aí do mundo e pela sua própria existência, estivessem engajados em uma atividade contrária à condição humana. O pensar enquanto tal, e não apenas como o levantamento das “questões últimas” irrespondíveis, mas toda reflexão que não serve ao conhecimento e que não é guiada por necessidades e objetivos práticos, está, como observou Heidegger, “fora de ordem” (grifos nossos) [An Introduction to Methaphysics, trad. Ralph Manhein, New Haven, 1959, p. 12]. Ela interrompe qualquer fazer, qualquer atividade comum, seja ela qual for. Todo pensar exige um pare-e-pense. As teorias dos dois mundos, quaisquer que tenham sido suas falácias e seus absurdos, surgiram dessas genuínas experiências do ego pensante. E uma vez que qualquer coisa que impeça o pensar pertença ao mundo das aparências e às experiências do senso comum que partilho com meus semelhantes e que automaticamente asseguram o sentido de realidade [realness] que tenho do meu próprio ser, é como se de fato o pensar me paralisasse, do mesmo modo que o excesso de CONSCIÊNCIA pode paralisar o automatismo de minhas funções corporais, “l’accomplissement d’un acte qui doit être réflexe ou ne peut être”, como sentenciou Valéry. Identificando o estado de CONSCIÊNCIA com o estado de pensar, ele acrescenta: “on en pourrait tirer toute une philosophie que je résumerais ainsi: tantôt je pense et tantôt je suis” (“ora penso e ora sou”) [“Discours aux chirurgiens”, in Variété, Paris, 1957, vol. I, p. 916]. Essa observação extraordinária, totalmente baseada em experiências igualmente extraordinárias — a saber, que a mera CONSCIÊNCIA de nossos órgãos corporais é suficiente para impedir o funcionamento adequado desses órgãos —, insiste em um antagonismo entre ser e pensar que podemos fazer remontar à famosa frase de Platão: que somente o corpo do filósofo — isto é, o que o faz aparecer entre as outras aparências — ainda habita a cidade dos homens, como se, pensando, os homens se retirassem do mundo dos vivos. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 9]

“Tome a cor dos mortos” — deve ser assim que o alheamento do filósofo e o estilo de vida do profissional que devota toda a sua vida ao pensamento, monopolizando e elevando a um nível absoluto o que é apenas uma dentre muitas faculdades humanas, aparecem para o senso comum dos homens, já que normalmente nos movemos em um mundo em que a mais radical experiência do desaparecer é a morte e em que se retirar da aparência é morrer. O próprio fato de sempre ter havido homens — ao menos desde Parmênides — que escolheram deliberadamente esse modo de vida sem ser candidatos ao suicídio mostra que esse sentido de afinidade com a morte não vem da atividade de pensar e das experiências do próprio ego pensante. É muito mais o próprio senso comum do filósofo — o fato de ser ele “um homem como você e eu” — que o torna consciente de estar “fora de ordem” quando se empenha em pensar. Ele não está imune à opinião   comum, pois, afinal, compartilha a “qualidade do ser comum” [commonness] a todos os homens; e é seu próprio senso de realidade [realness] que o faz suspeitar da atividade de pensar. Como o pensamento é impotente contra os argumentos do raciocínio do senso comum e contra a insistência na “falta de sentido” de sua busca por significado, o filósofo sente-se inclinado a responder nos termos do senso comum, termos que ele simplesmente inverte com esse objetivo. Se o senso comum e a opinião comum afirmam que a “morte é o maior dentre todos os males”, o filósofo (da época de Platão, quando a morte era compreendida como a separação entre alma e corpo) é tentado a dizer: pelo contrário, “a morte é uma divindade, uma benfeitora para o filósofo precisamente porque ela dissolve a união entre alma e corpo” [Phaedo, 64-67]. Desse modo, ele parece libertar o espírito da dor e do prazer corporais que impedem nossos órgãos espirituais de desenvolver suas atividades, da mesma forma que a CONSCIÊNCIA impede nossos órgãos corporais de funcionar apropriadamente [Cf. Valéry, op. cit., loc. cit]. Toda a história da filosofia — que nos diz tanto sobre os objetos do pensamento e tão pouco sobre o processo do pensar e sobre as experiências do ego pensante — encontra-se atravessada por uma luta interna entre o senso comum, esse sexto sentido que “irá adequar nossos cinco sentidos a um mundo comum, e a faculdade humana do pensamento e a necessidade da razão, que obrigam o homem a afastar-se, por períodos consideráveis, deste mundo”. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]

O modo de vida do filósofo é solitário, mas esse estar só é livremente escolhido. O próprio Platão, quando enumera as condições naturais que favorecem o desenvolvimento do dom filosófico “nas mais nobres naturezas”, não menciona a hostilidade da multidão — em vez disso, fala de exílios, de “um grande espírito nascido em um pequeno estado cujos assuntos políticos passam […] despercebidos”, e de outras circunstâncias tais como a saúde precária que afasta essas naturezas dos negócios públicos do povo [Ibidem, 496a e ss. Cornford, The Republic of Plato, pp. 203-204]. Mas essa inversão de posições — tornar a luta entre pensamento e senso comum o resultado dos poucos voltando-se contra os muitos —, embora ligeiramente mais razoável e mais bem documentada (a saber, na pretensão que o filósofo tem de governar) do que a mania   persecutória tradicional do filósofo, não está provavelmente mais próxima da verdade. A explicação mais verossímil para a disputa entre o senso comum e o pensamento “profissional” ainda é o ponto já mencionado (o de que estamos aqui lidando com uma luta interna), visto que foram seguramente os próprios filósofos os primeiros a tomar CONSCIÊNCIA de todas as objeções que o senso comum poderia levantar contra a filosofia. E o próprio Platão — em um contexto diferente, em que ele não se está ocupando de uma política “digna da natureza filosófica” — desfaz com risos a pergunta a respeito da possibilidade de um homem que se ocupa das coisas divinas estar também apto ao trato das coisas humanas [Philebus, 62b]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]

Tudo isso é naturalmente dito com certa ironia — ou, mais academicamente, está posto em linguagem metafórica. Os filósofos não são famosos por seus suicídios, nem mesmo quando afirmam, com Aristóteles   (em uma surpreendente observação pessoal no Protreptikos) [Ibidem, B110], que os que querem divertir-se deveriam filosofar ou deixar a vida, pois tudo o mais parece tolo e sem sentido. Mas a metáfora da morte, ou melhor, a inversão metafórica da vida e da morte — o que usualmente chamamos vida é morte; o que habitualmente chamamos morte é vida —, não é arbitrária, embora possa ser considerada de um modo um pouco menos dramático. Se o pensamento estabelece suas próprias condições, se ele cega a si mesmo para o sensorialmente dado, quando remove tudo o que está à mão, isso acontece para que o distante se torne manifesto. Formulando de maneira simples: no alheamento proverbial do filósofo, todo o presente está ausente, porque algo realmente ausente está presente em seu espírito, e entre as coisas ausentes está o seu próprio corpo. Tanto a hostilidade do filósofo em relação à política, “os pequenos assuntos humanos” [Republic, 500c], quanto sua hostilidade diante do corpo têm pouco a ver com convicções e crenças pessoais. Elas são inerentes à própria experiência. Enquanto pensa, a pessoa não tem CONSCIÊNCIA de sua corporalidade. Foi essa experiência que fez Platão atribuir imortalidade à alma quando ela se separa do corpo; e foi isso também que fez Descartes concluir que “a alma pode pensar sem o corpo, com a ressalva de que, enquanto ela estiver ligada ao corpo, pode ser importunada, em suas operações, pela má disposição dos órgãos corporais” [Cartas de março de 1638. Descartes: Oeuvres et Lettres, p. 780]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]

Em outras palavras: todo pensamento deriva da experiência, mas nenhuma experiência produz significado ou mesmo coerência sem passar pelas operações de imaginação e pensamento. Do ponto de vista do pensamento, a vida em seu puro estar-aí é sem sentido. Do ponto de vista da natureza imediata da vida e do mundo dado aos sentidos, o pensamento é, como Platão indicou, uma morte em vida. O filósofo que vive na “terra do pensamento” (Kant) [Nota da editora: não fomos capazes de encontrar esta referência] será naturalmente levado a olhar para essas coisas a partir do ego pensante, para o qual uma vida sem sentido é uma espécie de morte em vida. Como não é idêntico ao eu real, o ego pensante não tem CONSCIÊNCIA de sua própria retirada do mundo comum das aparências. Visto de sua perspectiva, é como se o invisível viesse primeiro, como se as inúmeras entidades que compõem o mundo das aparências — que por sua própria presença distraem o espírito e impedem sua atividade — estivessem positivamente ocultando um Ser sempre invisível e que se revela apenas no espírito. Dito de outra maneira, o que para o senso comum é a óbvia retirada do espírito em relação ao mundo, aparece, na perspectiva do próprio espírito, como uma “retirada do Ser” ou um “esquecimento do Ser” — Seinsentzug e Seinsvergessenheit   (Heidegger). E é verdade que a vida cotidiana, a vida dos “Eles”, é vivida em um mundo do qual se encontra totalmente ausente tudo o que é “visível” para o espírito. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]

Consideramos as principais características da atividade de pensar. Sua retirada do mundo das aparências, do mundo do senso comum; sua tendência autodestrutiva em relação a seus próprios resultados; sua reflexividade e a CONSCIÊNCIA da pura atividade que a acompanha. Além disso tudo, há o estranho fato de que só percebo minhas faculdades espirituais enquanto a atividade perdura, o que significa que o pensamento não pode jamais se estabelecer solidamente como uma das mais elevadas, ou mesmo como a mais elevada, propriedades da espécie humana — o homem pode ser definido como “o animal que fala”, no sentido aristotélico de logon echon  , dotado de fala, mas não como o animal que pensa, o animal rationale. Nenhuma dessas características escapou à atenção dos filósofos. O que há de curioso, entretanto, é que quanto mais “profissionais” os pensadores, mais eles cresciam em nossa tradição filosófica, e mais se inclinavam a encontrar maneiras e meios de reinterpretar esses traços inerentes ao pensamento, de forma a armarem-se contra as objeções do raciocínio do senso comum em relação às inutilidades e à irrealidade de todo o empreendimento filosófico. As distâncias por que os filósofos avançam nessas reinterpretações, bem como a qualidade de sua argumentação, seriam inexplicáveis se eles se dirigissem mais à famosa multidão — que nunca se importou com eles e permaneceu alegremente ignorante em relação à argumentação filosófica —, em vez de serem primordialmente estimulados por seu próprio senso comum e pela autodesconfiança que inevitavelmente acompanha a suspensão do pensamento. O mesmo Kant que confiou suas verdadeiras experiências de pensamento à privacidade de suas anotações anunciou publicamente que havia lançado as fundações de todo sistema metafísico futuro. Hegel — o último e o mais engenhoso dentre os construtores de sistemas — transformou o ato de o pensamento se desfazer de seus próprios resultados no enorme poder de negação sem o qual seria impossível qualquer movimento ou desenvolvimento. Para Hegel, a mesma cadeia inexorável de consequências em desenvolvimento que regula a natureza orgânica da passagem da semente ao fruto — na qual cada fase sempre “nega” e cancela a precedente — regulamenta a negação do processo pensante do espírito; exceção feita, no caso do pensamento — que é “mediatizado pela CONSCIÊNCIA e pela vontade”, através das atividades espirituais —, ao fato de que ele pode ser visto como “produzindo-se a si mesmo”. “O espírito é apenas aquilo que ele faz de si mesmo e a si mesmo, realmente realizando o que (potencialmente) ele é.” Para começar, isso deixa incidentalmente sem resposta a questão sobre quem fez a potencialidade do espírito. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 10]

Mencionei anteriormente que a linguagem, o único meio no qual o invisível pode tornar-se manifesto em um mundo de aparências, não é assim tão adequada para exercer aquela função quanto os nossos sentidos são adequados à tarefa de lidar com o mundo perceptível. Sugeri que a metáfora pode, a seu modo, curar o defeito. A cura tem os seus perigos e jamais chega, tampouco, a ser completamente adequada. O perigo está na evidência esmagadora que a metáfora fornece, apelando para a evidência inquestionada da experiência sensível. As metáforas podem, portanto, ser usadas pela razão especulativa, que, na verdade, não as pode evitar; mas quando elas invadem o raciocínio científico, como é sua tendência, são usadas e “abusadas” para fornecer evidência plausível para teorias que, na realidade, são hipóteses a serem provadas ou refutadas pelos fatos. Hans Blumenberg, em seu Paradigemen zu einer Metaphorologie, investigou certas figuras de retórica bastante comuns, tais como a metáfora do iceberg, ou as diversas metáforas marinhas através de séculos de pensamento ocidental; e então, quase por acidente, descobriu em que medida as pseudociências tipicamente modernas devem sua razoabilidade à aparente evidência da metáfora, que substitui a falta de evidência dos dados. O melhor exemplo é a teoria da CONSCIÊNCIA da psicanálise, em que a CONSCIÊNCIA é vista como a ponta de um iceberg, uma simples indicação da massa flutuante de inconsciência que está submersa [Bonn, 1960, p. 200s]. Não só essa teoria jamais foi demonstrada, como é indemonstrável em seus próprios termos: no momento em que um fragmento de inconsciência alcança a ponta do iceberg, ele terá se tornado consciente e terá perdido todas as propriedades de sua alegada origem. Ainda assim, a evidência da metáfora do iceberg é tão esmagadora que a teoria dispensa argumentos ou demonstração; o uso da metáfora nos pareceria inquestionável se nos dissessem que estávamos lidando com especulações sobre algo desconhecido — do mesmo modo que os séculos anteriores usaram analogias nas especulações sobre Deus. O único problema é que cada uma dessas especulações traz em si um constructo espiritual em cuja ordem sistemática cada dado pode encontrar seu lugar hermenêutico, com uma consistência ainda mais rigorosa do que a fornecida por uma teoria científica bem-sucedida, uma vez que, sendo um constructo exclusivamente espiritual, sem necessidade de qualquer experiência real, não tem de lidar com as exceções à regra. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]

Desde Bergson  , o uso da metáfora da visão na filosofia vem, não sem surpresa, diminuindo, à medida que a ênfase e o interesse passaram inteiramente da contemplação para a fala, de nous para logos  . Com essa mudança, o critério para a verdade passou do acordo entre o conhecimento e seu objeto — a adequatio rei et intellectus  , entendida como análoga à adequação entre visão e objeto visto — à simples forma do pensamento, cuja regra básica é o axioma da não-contradição, da consistência interna, isto é, passou àquilo que ainda Kant concebia como a simples “pedra de toque negativa da verdade”. “Além da esfera do conhecimento analítico, ela não tem qualquer autoridade ou campo de aplicação. como um critério suficiente de verdade.” [Critique of Pure Reason, B84 e B189-B191] Para os poucos filósofos modernos que ainda se apegam às hipóteses metafísicas tradicionais — por mais tênues e duvidosas que sejam —, para Heidegger e para Walter Benjamin, a velha metáfora da visão não chegou a desaparecer de todo, mas, por assim dizer, encolheu: em Benjamin, a verdade “passa despercebida” (huscht vorüber); em Heidegger, o momento de iluminação é concebido como “relâmpago” (Blitz), e é finalmente substituído por uma metáfora inteiramente diferente, das Gelaüt der Stille, “o som ressonante do silêncio”. Em matéria de tradição, esta última metáfora é a melhor aproximação que se tem da iluminação atingida pela contemplação não-discursiva. Pois, embora a metáfora seja agora, no fim e no ápice do processo de pensamento, extraída do sentido da audição, ela não corresponde em nada à escuta de uma sequência articulada de sons, como uma melodia, mas, novamente, a um estado mental imóvel de pura receptividade. E uma vez que o pensamento, um diálogo silencioso de mim comigo mesmo, é pura atividade do espírito combinada com uma completa imobilidade do corpo — “Nunca estou mais ativo do que quando não faço coisa alguma” (Catão) —, as dificuldades criadas pelas metáforas extraídas do sentido da audição seriam tão grandes quanto as dificuldades criadas pela visão. (Bergson, ainda tão firmemente preso à metáfora da intuição, falando sobre o ideal de verdade, refere-se ao “caráter essencialmente ativo, eu quase diria, violento, da intuição metafísica”, sem ter CONSCIÊNCIA da contradição entre a quietude da contemplação e qualquer tipo de atividade, muito menos uma atividade violenta.) [An Introduction to Metaphysics, p. 45] E Aristóteles fala de “energeia   filosófica” como a atividade “perfeita e desembaraçada que [justamente por essa razão] abriga em si o mais doce de todos os prazeres” [Alla men he ge teleia energeia kai akolytos en heaute echei to chairein, hoste an eie he theoretike energeia pason hediste] [Protreptikos, Düring ed., B87]. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 13]

Em outras palavras, o que deixa os homens espantados é algo familiar, e ainda assim normalmente invisível, que eles são forçados a admirar. Aquele espanto que é o ponto de partida do pensamento não é nem a confusão, nem a surpresa, nem a perplexidade; é um espanto de admiração. Aquilo que nos maravilha é afirmado e confirmado pela admiração que irrompe na fala, o dom de Íris, o arco-íris, a mensageira das alturas. A fala toma a forma de louvor, de glorificação, não de uma aparência particularmente surpreendente, nem da soma total das coisas no mundo, mas da ordem harmoniosa por trás delas, que em si mesma é invisível, e da qual, não obstante, o mundo das aparências oferece um vislumbre. “Pois as aparências são um vislumbre do não-revelado” (“opsis   gar tón adélón ta phainomena”), nas palavras de Anaxágoras   [B21a]. A filosofia começa com a CONSCIÊNCIA dessa ordem harmônica invisível do kosmos  , que se manifesta em meio às visibilidades familiares, como se estas se tivessem tornado transparentes. O filósofo maravilha-se com a “harmonia não-visível” que, segundo Heráclito  , é “melhor do que a visível” (“harmonié aphanés phanerés kreitton”) [B54]. Outra palavra que desde cedo designou o invisível em meio às aparências é physis  , natureza, a qual, de acordo com os gregos, era a totalidade das coisas que não eram feitas pelo homem, nem criadas por um artífice divino, mas que tinham vindo a ser por si mesmas. Heráclito diz dessa physis que ela “gosta de se esconder” [B123] por trás das aparências. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 15]

Sempre que a filosofia é compreendida como a “ciência” que lida com o espírito, tomado como mera CONSCIÊNCIA — e, portanto, sempre que a questão da realidade é totalmente suspensa, posta entre parênteses —, reencontramos a velha posição estoica. Falta apenas o motivo original que faz do pensamento um mero instrumento que trabalha a serviço da vontade. Em nosso contexto, a questão é que essa suspensão da realidade é possível não por causa da força da vontade, mas em virtude da própria natureza do pensamento. Se Epiteto pode estar entre os filósofos é por ter descoberto que a CONSCIÊNCIA possibilita que as atividades mentais voltem-se sobre si mesmas. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16]

Se, quando percebo um objeto fora de mim, decido concentrar-me na minha percepção, no ato de ver, em vez de concentrar-me no objeto visto, é como se eu tivesse perdido o objeto original, porque ele perdeu seu impacto sobre mim. Eu mudei o tema, por assim dizer — em vez de lidar com a árvore, agora lido apenas com a árvore percebida, isto é, com o que Epiteto chama de “impressão”. A grande vantagem é que não estou mais absorvido pelo objeto percebido, algo externo a mim; a árvore percebida está dentro de mim, invisível ao mundo exterior, como se nunca tivesse sido um objeto dos sentidos. O que importa aqui é que a “árvore vista” não é uma coisa-pensamento, mas uma “impressão”. Ela não é algo ausente que precise de uma memória que a guarde para o processo dessensorializante que prepara os objetos do espírito para o pensamento, e que é sempre precedido pela experiência em um mundo de aparências. A árvore vista está “dentro de mim” na sua total presença sensorial, ela é a própria árvore, apenas privada de realidade [realness], uma imagem, e não um re-pensar sobre árvores. O truque descoberto pela filosofia estoica foi usar o espírito de tal modo que a realidade não pudesse atingir o seu possuidor mesmo que ele não tivesse se retirado dela. Em vez de ter se retirado espiritualmente de tudo o que está presente e à mão, o espírito carregou para dentro de si as aparências. E sua “CONSCIÊNCIA” tornou-se um substituto completo para o mundo exterior, apresentado como impressão ou imagem. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16]

É nesse momento, sem dúvida, que a CONSCIÊNCIA sofre uma mudança decisiva: ela não é mais a autoconsciência que acompanha todos os meus atos e pensamentos e assegura a minha identidade, o simples “eu sou eu” (e nem se trata, aqui, da estranha diferença que se insere no âmago dessa identidade, a qual veremos mais tarde, uma inserção peculiar às atividades espirituais, pois elas voltam-se sobre si mesmas). Eu mesma, tomando-me como pura CONSCIÊNCIA, surjo como um ente totalmente novo, uma vez que não estou mais absorvida por um objeto dado aos meus sentidos (mesmo se esse objeto, intacto na sua estrutura “essencial”, continue presente como um objeto da CONSCIÊNCIA — o que Husserl chamou de “objeto intencional”). Esse novo ente pode existir no mundo em completa independência e soberania e, além disso, aparentemente ainda na posse desse mundo, a saber, da sua simples essência, despojado de seu caráter “existencial”, de sua realidade [realness] que me poderia tocar e ameaçar minha integridade. Com isso, tornei-me “eu para mim mesma” de uma maneira enfática, encontrando em mim tudo o que originalmente me foi dado como uma realidade “estranha”. Não é tanto o espírito, mas antes essa CONSCIÊNCIA monstruosamente alargada que oferece um refúgio sempre presente e aparentemente seguro da realidade. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16]

Essa suspensão da realidade — esse desvencilhar-se da realidade, tratando-a como nada mais do que uma “impressão” — permaneceu uma das grandes tentações dos “pensadores profissionais”, até que um dos maiores dentre eles, Hegel, foi ainda adiante e construiu sua filosofia do Espírito do Mundo a partir de experiências do ego pensante. Ao reinterpretar esse ego no modelo da CONSCIÊNCIA, ele trouxe, para dentro da CONSCIÊNCIA, o mundo todo, como se este fosse essencialmente um simples fenômeno do espírito. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 16]

E isso nos leva à segunda afirmação, que é de fato o pré-requisito para a primeira. Ela também é altamente paradoxal. Sócrates   afirma ser um e, por isso mesmo, não querer correr o risco de entrar em desacordo consigo mesmo. Mas nada do que é idêntico a si mesmo, verdadeira e absolutamente Um, assim como A é A, pode estar em harmonia ou desarmonia consigo mesmo; no mínimo dois tons sempre são necessários para produzir um som harmonioso. Certamente quando apareço e sou visto pelos outros, sou um; de outro modo, seria irreconhecível. E enquanto estou junto a outras pessoas, pouco consciente de mim mesmo, sou tal como apareço para os outros. Chamamos de CONSCIÊNCIA (literalmente, “conhecer comigo mesmo”, como vimos) o fato curioso de que, em certo sentido, eu também sou para mim mesmo, embora quase não apareça para mim — o que indica que o “sendo um” socrático não é tão pouco problemático como parece; eu não sou apenas para os outros, mas também para mim mesmo; e, nesse último caso, claramente eu não sou apenas um. Uma diferença se instala na minha Unicidade. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]

O fato de que o estar-só, enquanto dura a atividade de pensar, transforma a mera CONSCIÊNCIA de si — que provavelmente compartilhamos com os animais superiores — em uma dualidade é talvez a indicação mais convincente de que os homens existem essencialmente no plural. E é essa dualidade do eu comigo mesmo que faz do pensamento uma verdadeira atividade na qual sou ao mesmo tempo quem pergunta e quem responde. O pensamento pode se tornar dialético e crítico porque ele se submete a esse processo de perguntas e respostas, ao diálogo do dialegesthai  , o qual é, na verdade, uma “viagem através das palavras” (poreuesthai dia ton logon) [Sophist, 253b] em que constantemente levantamos a pergunta socrática básica: o que você entende por…? Só que este legein, este dizer, é sem som e, portanto, é tão rápido que sua estrutura dialógica torna-se um tanto difícil de detectar. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]

Em poucas palavras, a realização, especificamente humana, da CONSCIÊNCIA no diálogo pensante de mim comigo mesmo sugere que a diferença e a alteridade, características tão destacadas do mundo das aparências tal como é dado ao homem, seu hábitat em meio a uma pluralidade de coisas, são também as mesmas condições da existência do ego mental do homem, já que ele só existe na dualidade. E esse ego — o eu-sou-eu — faz a experiência da diferença na identidade precisamente quando ele não está relacionado às coisas que aparecem, mas apenas a si mesmo. (Essa dualidade original, aliás, explica a futilidade da busca de identidade, tão em voga. Nossa moderna crise de identidade só poderia ser resolvida se nunca ficássemos a sós e nunca tentássemos pensar.) Sem aquela lição original, a afirmação de Sócrates sobre a harmonia em um ser que segundo todas as aparências é Um não teria sentido. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]

A CONSCIÊNCIA não é o mesmo que o pensamento; os atos de CONSCIÊNCIA têm em comum com a experiência dos sentidos o fato de serem atos “intencionais” e, portanto, cognitivos, ao passo que o ego pensante não pensa alguma coisa, mas sobre alguma coisa; e este ato é dialético: ele se desenrola sob a forma de um diálogo silencioso. Sem a CONSCIÊNCIA, no sentido da CONSCIÊNCIA de si mesmo, o pensamento seria impossível. O que o pensamento torna real, no meio desse processo infinito, é a diferença na CONSCIÊNCIA, diferença dada como um simples fato bruto (factum brutum); é apenas sob essa forma humanizada que a CONSCIÊNCIA torna-se a característica notória de um homem, e não de um deus ou de um animal. Do mesmo modo como a metáfora preenche a lacuna entre o mundo das aparências e as atividades do espírito que ocorrem dentro dele, o dois-em-um socrático cura o estar só do pensamento; sua dualidade inerente deixa entrever a infinita pluralidade que é a lei da Terra. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]

Em um dos diálogos contestados — o Hípias Maior, que pode, ainda assim, oferecer um testemunho autêntico sobre Sócrates, mesmo que não tenha sido escrito por Platão —, Sócrates descreve essa situação de maneira simples e precisa no fim do diálogo. Na hora de voltar para casa, Sócrates diz a Hípias como “ditosamente afortunado” era ele, que tinha se revelado um parceiro singularmente estúpido em comparação com o pobre Sócrates, que é aguardado em casa por um sujeito muito irritante que vive a interrogá-lo. “Ele é meu parente próximo e vive na mesma casa.” No momento em que esse sujeito ouvir Sócrates concordar com as opiniões de Hípias, ele perguntará “se [Sócrates] não se envergonha de discorrer sobre um belo modo de vida, quando a série de interrogações já evidencia que ele sequer conhece o significado da palavra ‘beleza’” [304d]. Quando Hípias volta para casa, ele permanece um, pois, embora viva só, não busca fazer-se companhia. Não é, certamente, que ele perca a CONSCIÊNCIA, só que ele não costuma exercitá-la. Quando Sócrates vai para casa, ele não está solitário, está junto a si mesmo. Evidentemente Sócrates tem que entrar em alguma espécie de acordo com o sujeito que o espera, já que eles vivem sob o mesmo teto. É melhor se desavir com o mundo todo do que com aquela única pessoa com quem se é forçado a viver após ter-se despedido de todas as companhias. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]

No entanto as coisas mudam depois de meia-noite e Ricardo escapa da própria companhia para juntar-se a seus pares. Então: Conscience is but a word that cowards use, / Devis’d at first to keep the strong in awe. … [CONSCIÊNCIA é apenas uma palavra que os covardes usam,/ Inventada antes de mais nada para infundir temor nos fortes… (N. T.)] Até o próprio Sócrates, tão apaixonado pela praça pública, tem que voltar para casa, onde estará só, para encontrar o outro indivíduo. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]

Chamei atenção para a passagem do Hípias Maior, em sua absoluta simplicidade, porque ela oferece uma metáfora que pode ajudar a simplificar — sob o risco de simplificar em demasia — assuntos difíceis, e que portanto sempre correm o risco de serem demasiadamente complicados. Épocas posteriores deram ao sujeito que espera Sócrates em casa o nome de “CONSCIÊNCIA moral”. Perante o tribunal, para adotar a linguagem kantiana, temos que comparecer e explicar-nos. E escolhi a passagem de Ricardo III porque Shakespeare, embora use a palavra “CONSCIÊNCIA moral”, não a usa aqui no sentido costumeiro. Muito tempo se passou antes que a língua separasse a palavra “CONSCIÊNCIA” (consciousness) da “CONSCIÊNCIA moral” (conscience); e em algumas línguas, como o francês, essa separação nunca foi feita. A CONSCIÊNCIA moral, tal como a entendemos em assuntos morais ou legais, está, supostamente, sempre presente em nós, assim como a mera CONSCIÊNCIA. E essa CONSCIÊNCIA moral supostamente nos diz o que fazer e do que se arrepender; antes de se tornar o lumen naturale  , ou a razão prática de Kant, ela era a voz de Deus. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]

Ao contrário dessa CONSCIÊNCIA sempre presente, o sujeito de quem Sócrates fala foi deixado em casa; ele o teme, do mesmo modo como os assassinos de Ricardo III temem a CONSCIÊNCIA moral — como algo ausente. Aqui a CONSCIÊNCIA moral aparece como um re-pensar despertado ou por um crime, no caso do próprio Ricardo, ou por opiniões não submetidas a exame, como no caso de Sócrates. Ela pode também ser o medo antecipado de tais atos de re-pensar, como no caso dos assassinos contratados de Ricardo. Essa CONSCIÊNCIA moral, diferentemente da voz de Deus dentro de nós ou do lumen naturale, não oferece nenhuma prescrição positiva (mesmo o daimon  , a voz divina ouvida por Sócrates, só lhe diz o que não fazer); nas palavras de Shakespeare, ela “deixa um homem repleto de embaraços”. O que faz um homem temê-la é a antecipação da presença de uma testemunha que o aguarda apenas se e quando ele voltar para casa. O assassino de Shakespeare diz: “todo homem que pretende viver bem se esforça por […] viver sem ela”. Isso é fácil de conseguir, pois tudo o que ele tem a fazer é nunca iniciar o diálogo isolado e sem som a que chamamos de “pensar”, nunca voltar para casa e examinar as coisas. Não se trata aqui de perversidade ou bondade, como também não se trata de inteligência ou estupidez. Uma pessoa que não conhece essa interação silenciosa (na qual examinamos o que dizemos e fazemos) não se importa em contradizer-se, e isso significa que ela jamais quererá ou poderá prestar contas do que faz ou diz; nem se importará em cometer um crime, já que pode estar certa de esquecê-lo no momento seguinte. As pessoas más — não obstante a opinião em contrário de Aristóteles — não são “cheias de remorsos”. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]

O pensamento, em seu sentido não-cognitivo e não-especializado, como uma necessidade natural da vida humana, como a realização da diferença dada na CONSCIÊNCIA, não é uma prerrogativa de poucos, mas uma faculdade sempre presente em todo mundo; do mesmo modo, a inabilidade de pensar não é uma imperfeição daqueles muitos a quem falta inteligência, mas uma possibilidade sempre presente para todos — incluindo aí os cientistas, os eruditos e outros especialistas em tarefas do espírito. Todos podemos vir a nos esquivar daquela interação conosco mesmos, cuja possibilidade concreta e cuja importância Sócrates foi o primeiro a descobrir. O pensamento acompanha a vida e é ele mesmo a quintessência desmaterializada do estar vivo. E uma vez que a vida é um processo, sua quintessência só pode residir no processo real do pensamento, e não em quaisquer resultados sólidos ou pensamentos específicos. Uma vida sem pensamento é totalmente possível, mas ela fracassa em fazer desabrochar a sua própria essência — ela não é apenas sem sentido; ela não é totalmente viva. Homens que não pensam são como sonâmbulos. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]

Para o ego pensante e para sua experiência, a CONSCIÊNCIA moral que “deixa o homem cheio de embaraços” é um efeito colateral acessório. Não importa em que séries de pensamentos o ego pensante se engage; para o eu que nós todos somos, importa cuidar de não fazer nada que torne impossível para os dois-em-um serem amigos e viverem em harmonia. É isso o que Espinosa   entende por “aquiescência do próprio eu” (acquiescentia in seipso): “Ela pode brotar da razão [raciocínio], e esse contentamento é a maior alegria possível.” [Ethics, IV, 52; III, 25] Seu critério de ação não será o das regras usuais, reconhecidas pelas multidões e acordadas pela sociedade, mas a possibilidade de eu viver ou não em paz comigo mesmo quando chegar a hora de pensar sobre meus atos e palavras. A CONSCIÊNCIA moral é a antecipação do sujeito que aguarda quando eu voltar para casa. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]

A faculdade de julgar particulares (tal como foi revelada por Kant), a habilidade de dizer “isto é errado”, “isto é belo” e por aí afora não é igual à faculdade de pensar. O pensamento lida com invisíveis, com representações de coisas que estão ausentes. O juízo sempre se ocupa com particulares e coisas ao alcance das mãos. Mas as duas faculdades estão inter-relacionadas, do mesmo modo como a CONSCIÊNCIA moral e a CONSCIÊNCIA. Se o pensamento — o dois-em-um do diálogo sem som — realiza a diferença inerente à nossa identidade, tal como é dada à CONSCIÊNCIA, resultando, assim, na CONSCIÊNCIA moral como seu derivado, então o juízo, o derivado do efeito liberador do pensamento, realiza o próprio pensamento, tornando-o manifesto no mundo das aparências, onde eu nunca estou só e estou sempre muito ocupado para poder pensar. A manifestação do vento do pensamento não é o conhecimento, é a habilidade de distinguir o certo do errado, o belo do feio. E isso, nos raros momentos em que as cartas estão postas sobre a mesa, pode sem dúvida prevenir catástrofes, ao menos para o eu. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 18]

A parábola de Kafka sobre o tempo não se aplica ao homem em suas ocupações cotidianas, mas apenas ao ego pensante, à medida que ele se retirou da rotina diária. A lacuna entre passado e futuro só se abre na reflexão, cujo tema é aquilo mesmo que está ausente — ou porque já desapareceu ou porque ainda não apareceu. A reflexão traz essas “regiões” ausentes à presença do espírito; dessa perspectiva, a atividade de pensar pode ser entendida como uma luta contra o próprio tempo. É apenas porque “ele” pensa, e, portanto, deixa de ser levado pela continuidade da vida cotidiana em um mundo de aparências, que passado e futuro se manifestam como meros entes de tal forma que “ele” pode tomar CONSCIÊNCIA de um não-mais que o empurra para a frente e de um ainda-não que o empurra para trás. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 20]

Proponho-me a levar a sério a evidência interna — nos termos de Bergson, o “dado imediato da CONSCIÊNCIA” — e, de vez que concordo — juntamente com vários outros escritores que se ocuparam desse assunto — com o fato de que este dado e todos os problemas a ele ligados eram desconhecidos da Antiguidade grega, devo aceitar que essa faculdade foi “descoberta”, que podemos datar a descoberta historicamente e que, ao fazê-lo, chegaremos à conclusão de que ela coincide com a descoberta da “interioridade” humana como uma região especial da nossa vida. Em suma, proponho-me a analisar a faculdade da vontade em termos de sua história. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 21]

Procurarei mostrar que minha hipótese principal, ao isolar o juízo como uma capacidade distinta de nossos espíritos, foi a de que os juízos não são alcançados por dedução ou por indução; em suma, eles não têm nada em comum com as operações lógicas — como é o caso quando dizemos: todos os homens são mortais, Sócrates é um homem, logo Sócrates é mortal. Estaremos à procura do “sentido silencioso” que, quando chegou a ser tratado, foi sempre pensado, mesmo em Kant, como “gosto” e, portanto, como pertencente ao campo da estética. Nas questões práticas e morais o juízo foi chamado de “CONSCIÊNCIA”, e a CONSCIÊNCIA não julgava; ela dizia, como voz divina de Deus ou da Razão, o que fazer, o que não fazer e do que se arrepender. O que quer que seja a voz da CONSCIÊNCIA, não se pode dizer que ela seja “silenciosa”, e sua validez depende totalmente de uma autoridade que está acima e além de todas as leis e regras meramente humanas. [Arendt, Vida do Espírito I O Pensar 21]

Mas o fim da Era Cristã não significa absolutamente o fim dessas dificuldades. A principal dificuldade estritamente cristã, isto é, como conciliar a fé em um Deus todo-poderoso e onisciente com as alegações de uma vontade livre, sobrevive profundamente e de várias maneiras na Era Moderna, na qual muitas vezes nos deparamos com quase o mesmo tipo de argumentação anterior. Ou encontra-se a vontade livre em choque com a lei da causalidade ou, mais tarde, fica difícil conciliá-la com as leis da História, cuja significação depende do progresso ou de um desenvolvimento necessário do Espírito do Mundo. Tais dificuldades persistem até mesmo quando todos os interesses estritamente tradicionais — metafísicos ou teológicos — perdem a força. John Stuart Mill, por exemplo, sintetiza um raciocínio muito recorrente quando diz: “Nossa CONSCIÊNCIA interna nos diz que temos um poder sobre o qual toda a experiência aparente da raça humana nos diz que jamais utilizamos.” Ou, para usar o exemplo mais extremo, Nietzsche   chama “toda a doutrina da Vontade, a mais fatídica falsificação feita em psicologia até hoje […] inventada essencialmente para o castigo”. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer Introdução]

Faz parte da natureza de todo exame crítico da faculdade da Vontade ser empreendido por “pensadores profissionais” (os Denker   von Gewerbe de Kant); isso levanta a suspeita de que as denúncias da Vontade como uma mera ilusão da CONSCIÊNCIA e as refutações da existência da faculdade — que vemos sustentadas por argumentos quase idênticos em filósofos que partem de pressupostos bastante diferentes — podem dever-se a um conflito básico entre as experiências do ego pensante e as do ego volitivo. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer Introdução]

Embora o espírito que pensa e o que quer seja sempre o mesmo, e o mesmo eu una corpo, alma e espírito, está longe de ser óbvio que a avaliação do ego pensante seja confiável, permanecendo imparcial e “objetiva” quando se trata de outras atividades do espírito. Pois é verdade que aqui a noção de uma vontade livre não só serve como um postulado necessário em toda ética e em todo sistema de leis, mas é também um “dado imediato da CONSCIÊNCIA” (nas palavras de Bergson) — tanto quanto o eu-penso de Kant ou o cogito em Descartes, cuja existência quase nunca foi questionada pela filosofia tradicional. Para antecipar: o que levantou nos filósofos a desconfiança dessa faculdade foi a conexão inevitável com a Liberdade: “Se devo necessariamente querer, por que então preciso falar da vontade?”, no dizer de Agostinho  . A pedra de toque de um ato livre é sempre nossa CONSCIÊNCIA de que poderíamos ter deixado de fazer aquilo que de fato fizemos — algo que absolutamente não se aplica a simples desejos ou apetites, em que as necessidades corporais, as necessidades do processo vital ou a simples força de querer algo que está à mão podem sobrepor-se a quaisquer considerações, seja da Vontade, seja da Razão. A Vontade, ao que parece, tem uma liberdade infinitamente maior do que o pensamento, que mesmo em sua forma mais livre, mais especulativa, não pode escapar ao princípio de não contradição. Esse fato inquestionável jamais foi tido somente como uma bênção. Os pensadores muitas vezes consideraram-no uma maldição. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer Introdução]

Formulada em termos espaciais, a questão recebeu uma resposta negativa. Embora seja conhecido para nós somente em união inseparável com um corpo que se sente em casa no mundo das aparências — pelo fato de ter chegado um dia e de saber que um dia vai partir —, o ego pensante invisível não está, a rigor, em Lugar Nenhum. Retirou-se do mundo das aparências, inclusive de seu próprio corpo e, portanto, também do eu, do qual não mais tem CONSCIÊNCIA. E isso a ponto de Platão poder ironicamente designar o filósofo como um homem apaixonado pela morte, e de Valéry poder dizer “Tantôt je pense et tantôt je suis”, dando a entender que o ego pensante perde todo o senso de realidade e que o eu real, aparente, não pensa. Segue-se daí que nossa pergunta — “onde estamos quando pensamos?” — foi feita de fora da experiência de pensamento e foi, portanto, imprópria. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1]

A visão de que tudo o que é real deve ser precedido de uma potencialidade como uma de suas causas nega implicitamente o futuro como um tempo verbal autêntico: o futuro nada mais é que uma consequência do passado, e a diferença entre as coisas naturais e as feitas pelos homens reside simplesmente na distinção entre aquelas cujas potencialidades necessariamente transformam-se em atualidades e aquelas que podem ou não se atualizar. Nessas circunstâncias, qualquer ideia da Vontade como órgão para o futuro, do mesmo modo que a memória é um órgão para o passado, era completamente supérflua; Aristóteles não precisava ter CONSCIÊNCIA da existência da Vontade; os gregos “sequer têm uma palavra para” o que consideramos a “fonte principal da ação”. (Thelein significa “estar pronto, estar preparado para algo”; boulesthai é “ver algo como [mais] desejável”, e a própria palavra nova inventada por Aristóteles, que se aproxima mais do que essas da nossa ideia de algum estado espiritual que tenha que preceder a ação, é pro-airesis, a “escolha” entre duas possibilidades, ou melhor, a preferência que me faz escolher uma ação em vez de outra.) [Bruno Snell, The Discovery of the Mind, Nova York, Evanston, 1960, pp. 182-183] Autores que conhecem bem a literatura grega sempre souberam desta lacuna. Assim, Gilson aponta o fato notório de “que Aristóteles não fala de liberdade nem de vontade livre [Distinções importantes que Arendt fará adiante impedem a tradução do original free will por “livre-arbítrio” aqui. (N. T.)], […] o próprio termo falta;” [The Spirit of Medieval Philosophy, Nova York, 1940, p. 307] e já em Hobbes  , temos este ponto bastante explícito. [“Tem sido uma questão de debate entre os velhos filósofos, muito antes da encarnação de nosso Salvador, se tudo o que ocorre vem da necessidade, ou se algumas coisas vêm do acaso […]. Mas o terceiro modo de fazer as coisas acontecer […], isto é, a vontade livre, é algo que nunca foi mencionado por eles nem pelos cristãos no início do Cristianismo […]. Mas há algum tempo os doutores da Igreja Romana extraíram deste domínio da vontade de Deus a vontade do homem; e trouxeram a doutrina em que […] a vontade [do homem] é livre e determinada pelo próprio poder da vontade.” “The Question Concerning Liberty, Necessity and Chance”, English Work, Londres, 1841, vol. V, p. 1.] A lacuna fica ainda um tanto difícil de identificar, pois é claro que a língua grega conhece a diferença entre atos intencionais e não intencionais, entre o voluntário (hekón) e o involuntário (akón), isto é, em termos legais, entre assassinato e homicídio culposo; e Aristóteles tem o cuidado de observar que só os atos voluntários estão sujeitos à acusação ou à exaltação [Ver Nicomachean Ethics, Livro V, cap. 8]. Mas o que ele entende por voluntário significa somente que o ato não foi casual, mas sim desempenhado por um agente em plena posse de sua força espiritual e física — “a fonte do movimento estava no agente” [Ibidem, Livro III, 1110 a 17] — e a distinção engloba apenas danos cometidos por ignorância ou infortúnio. Um ato no qual estou sob a ameaça de violência, mas a que não sou forçado fisicamente — como no caso em que dou meu dinheiro com minhas próprias mãos ao homem que me ameaça com uma arma —, seria qualificado como voluntário. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1]

Uma das dificuldades de nosso tópico, portanto, é que os problemas com os quais estamos lidando têm sua “origem histórica” na teologia, mais do que em uma tradição contínua de pensamento filosófico. [Ver o artigo sobre a Vontade na Encyclopedia Britannica, mencionado anteriormente na nota 16.] Pois quaisquer que sejam os méritos dos pressupostos pós-antigos sobre a localização da liberdade humana no “eu-quero”, claro está que no esquema do pensamento pré-cristão a liberdade localizava-se no “eu-posso”; liberdade era um estado objetivo do corpo, não um dado da CONSCIÊNCIA ou do espírito. Liberdade significava poder fazer o que se quer, sem ser forçado pela ordem de um senhor, nem por uma necessidade física que exigisse o trabalho em troca de dinheiro com que suster o corpo, nem por algum defeito somático, tal como má saúde ou paralisia de um dos membros. Segundo a etimologia grega, isto é, segundo a autointerpretação grega, a raiz da palavra liberdade, eleutheria, é eleuthein hopós eró, ir conforme eu queira; [Ver Dieter Nestle, Eleutheria. Teil I: Studien zum Wesen der Freiheit bei   den Griechen und im Neuen Testament. Tübingen, 1967, pp. 6 e ss. Parece digno de nota que a etimologia moderna se incline a derivar a palavra eleutheria de uma raiz indo-germânica significando Volk   ou Stamm, que tem como resultado apresentar aqueles que pertencem à mesma unidade étnica como sendo reconhecidos “livres” por seus companheiros de etnia. Este exemplo de erudição não soa desconfortavelmente próximo das noções de cultura alemã dos anos 1930, que vinham à tona, na época, pela primeira vez?] e não resta dúvida de que a liberdade básica era entendida como liberdade de movimento. Uma pessoa era livre se pudesse locomover-se como quisesse; o “eu-posso”, não o “eu-quero”, era o critério. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 1]

Há em primeiro lugar a descrença sempre recorrente na própria existência da faculdade de querer. Suspeita-se que a Vontade seja uma mera ilusão, um fantasma da CONSCIÊNCIA, uma espécie de engano inerente à própria estrutura da CONSCIÊNCIA, “um pião de madeira”, nas palavras de Hobbes, “[…] impulsionado pelos meninos […] às vezes rodando, às vezes atingindo os homens na canela, se fosse sensível ao próprio movimento, pensaria que este procedia de sua própria vontade, a não ser que sentisse o que o estava pondo em movimento” [English Works, vol. V, p. 55]. E Espinosa seguia a mesma linha de pensamento: uma pedra posta em movimento por alguma força externa “acreditaria ser completamente livre e pensaria permanecer em movimento somente por sua própria vontade”, contanto que estivesse “consciente de seu esforço” e fosse “capaz de pensar” [Carta a G. H. Schaller, datada de outubro de 1674. Ver Espinosa, The Chief Works, editado por R. H. M. Elwes, Nova York, 1951, vol. II, p. 390]. Em outras palavras, “os homens acreditam ser livres simplesmente porque são conscientes de suas ações, sem ter CONSCIÊNCIA das causas pelas quais estas ações são determinadas”. Assim, os homens são subjetivamente livres e objetivamente assujeitados. As correlações de Espinosa levantam a objeção óbvia: “Se isto nos fosse dado, toda maldade seria desculpável”, o que não o perturba nem um pouco. Ele responde: “Os homens maus não devem ser menos temidos e não são menos nocivos quando são maus por necessidade.” [Ethics, pt  . III, prop. II, nota, in ibidem, vol. II, p. 134; Carta a Schaller, in ibidem, p. 392.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 3]

Tanto em Hobbes quanto em Espinosa, a negação da Vontade está muito bem fundada em suas respectivas filosofias. Mas encontramos praticamente o mesmo argumento em Schopenhauer  , cuja filosofia geral era quase o oposto, e para quem a CONSCIÊNCIA ou a subjetividade eram a própria essência do Ser: como Hobbes, ele não nega a Vontade, mas nega que a Vontade seja livre: há um sentimento ilusório de liberdade quando tenho a experiência da volição; quando delibero sobre o que farei em seguida e, depois de rejeitar várias possibilidades, chego finalmente a alguma decisão determinada, isto é feito “com uma vontade tão livre […] quanto a da água se dissesse para si mesma: ‘posso fazer grandes ondas […]. Posso descer montanha abaixo […]. Posso cair espumando e jorrando […]. Posso erguer-me livremente como uma corrente de água no ar (… numa fonte) […], mas não estou fazendo nada disso agora, e, por vontade própria, permaneço água quieta e clara no lago espelhado’” [Essay on the Freedom of the Will, p. 43]. Esse tipo de argumento está melhor resumido por John Stuart Mill no trecho já citado: “Nossa CONSCIÊNCIA interna nos diz que temos um poder sobre o qual toda a experiência externa da raça humana nos diz que jamais utilizamos” (grifo nosso). [An Examination of Sir William Hamilton’s Philosophy (1867), cap. XXVI, citado de Free Will, editado por Sidney Morgenbesser e James Walsh, Englewood, Cliffs, 1962, p. 59.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 3]

O que impressiona nessas objeções contra a própria existência da faculdade de querer é, em primeiro lugar, o fato de que elas são levantadas invariavelmente nos termos da ideia moderna de CONSCIÊNCIA — uma noção tão ignorada pela filosofia antiga quanto a noção de Vontade. A synesis grega — poder compartilhar um conhecimento comigo mesmo (syniemi) sobre coisas que ninguém mais pode testemunhar — é mais uma precursora da CONSCIÊNCIA moral do que da CONSCIÊNCIA [Ver Martin Kähler. Das Gewissen   (1878), Darmstadt, 1967, pp. 46 e ss.], como se pode ver quando Platão menciona o modo como a memória do feito sangrento atormenta o homicida [Ver Laws, Livro IX, 865e]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 3]

Apesar disso, como Bergson sabia muito bem, há um outro lado da questão. Do ponto de vista da memória, isto é, olhando-se retrospectivamente, um ato levado a cabo de forma livre perde seu ar de contingência sob o impacto de ser, agora, um fato realizado, de ter se tornado parte essencial da realidade em que vivemos. O impacto da realidade é esmagador a ponto de sermos incapazes de “removê-la do pensamento”; o ato agora aparece para nós com aspecto de necessidade, uma necessidade que não é absolutamente uma simples ilusão da CONSCIÊNCIA ou que se deve só à limitação de nossa habilidade para imaginar alternativas possíveis. Isso é bastante óbvio no campo da ação, em que nenhum feito pode ser desfeito com segurança; mas se aplica também, embora talvez de maneira menos coercitiva, aos incontáveis objetos que a fabricação humana constantemente acrescenta ao mundo e à sua civilização, objetos de arte bem como objetos de uso; é quase tão impossível remover do pensamento as grandes obras de arte de nossa herança cultural quanto a deflagração das duas Guerras Mundiais ou qualquer outro acontecimento que tenha decidido a própria estrutura de nossa realidade. Nas palavras do próprio Bergson: “Pela simples razão de ser factual, a realidade lança a sua sombra atrás de si em um passado infinitamente distante; assim, parece ter existido em estado de potencialidade anteriormente à sua própria realização.” (“Par le seul fait de s’accomplir, la réalité projette derrière son ombre dans le passé indéfiniment lointain; elle paraît ainsi avoir préexisté, sous forme de possible, à sa propre réalisation.”) [Ibidem, p. 15] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 4]

Visto desse ângulo, que é o ângulo do ego volitivo, não é a liberdade, mas a necessidade que parece ser uma ilusão da CONSCIÊNCIA. O insight de Bergson me parece ao mesmo tempo elementar e altamente significativo; mas não será também significativo o fato de essa observação, apesar de sua plausibilidade simples, nunca ter tido qualquer importância nas intermináveis discussões sobre necessidade versus liberdade? Ao que eu saiba, o ponto foi levantado somente uma vez antes de Bergson. Trata-se de Duns Scotus  , o solitário defensor da primazia da Vontade sobre o Intelecto e — mais que isso — do fator contingência em tudo o que é. Se há algo como uma filosofia cristã, então Duns Scotus teria de ser reconhecido não só como “o mais importante pensador da Idade Média cristã” [Assim escreveu Wilhelm Windelband em seu famoso History of Philosophy (1982), Nova York, 1960, p. 314. Ele também chama Duns Scotus de “o maior dos escolásticos” (p. 425)], mas talvez também como o único que não buscou um meio-termo entre a fé cristã e a filosofia grega, e que ousou, portanto, tornar um símbolo dos “verdadeiros cristãos [dizer] que Deus age contingentemente”. “Aqueles que negam que algum ser é contingente”, disse Scotus, “deveriam ser expostos a tormentos, até reconhecer que é possível para eles não ser atormentados.” [John Duns Scotus, Philosophical Writings: A Selection. Trad. Allan Wolter, Library of Liberal Arts, Indianápolis, Nova York, 1962, pp. 84 e 10] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 4]

O primeiro que se recusou consciente e deliberadamente a tratar da não plausibilidade da vontade livre foi Descartes: “Seria absurdo duvidar daquilo que experimentamos e percebemos interiormente como existente em nós, só porque não compreendemos uma coisa que sabemos ser, pela própria natureza, incompreensível.” [Principles of Philosophy, prin. XLI, in The Philosophical Works of Descartes, op. cit., p. 235] Pois “essas coisas são tais que cada um deve experimentá-las em si mesmo, em vez de persuadir-se delas pelo raciocínio; mas vós […] pareceis não cuidar e não notar a maneira como o espírito age no interior de si mesmo. Não sejais, então, livres, se essa liberdade não vos apraz” (grifos nossos) [Resposta a Objeções à Meditação V, op. cit., p. 225]. Pode ser tentador, aqui, retorquir que o Cogito cartesiano certamente nada mais é do que “uma ação do espírito no interior de si mesmo”; mas jamais ocorreu a Descartes ou àqueles que levantaram objeções à sua filosofia falar de pensamento ou de cogitare como algo que é pressuposto sem uma prova, como um mero dado da CONSCIÊNCIA. O que então concede ao cogito me cogitare ascendência sobre o “volo me velle” — mesmo em Descartes, que era um “voluntarista’’? Será que “aprazia” menos aos pensadores profissionais, ao basearem suas especulações na experiência do ego pensante, a liberdade do que a necessidade? Essa suspeita parece inevitável quando consideramos a estranha reunião de teorias conhecidas, teorias que tentam negar completamente a experiência da liberdade “dentro de nós”, ou enfraquecer a liberdade, conciliando-a com a necessidade através de especulações dialéticas que são inteiramente “especulativas”, já que não podem apelar para qualquer experiência. A suspeita é reforçada quando se considera quão estreita é a ligação entre todas as teorias da vontade livre e o problema do mal. Desse modo, Agostinho inicia seu tratado De libero arbitrio voluntatis (O livre-arbítrio da vontade) com a seguinte questão: “Diga-me, por favor, se não é Deus o autor do mal?” Trata-se de uma questão primeiramente proposta em toda a sua complexidade por Paulo (na Epístola aos romanos) e em seguida generalizada para “qual é a causa do mal?”, com muitas variações que envolvem a existência tanto do dano físico causado pela natureza destrutiva quanto da maldade deliberada produzida pelo homem. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 4]

O motivo pelo qual Hegel pôde construir o movimento Histórico Mundial em termos de uma linha ascendente, traçada pela “astúcia da Razão”, que atua por trás dos homens de ação, encontra-se, em minha opinião, em seu pressuposto jamais questionado de que o próprio processo dialético começa do Ser, supõe o Ser (em contraposição à creatio ex nihilo), em sua marcha em direção ao Não Ser e ao Devir. O Ser inicial empresta a todas as outras transições a sua realidade, seu caráter existencial, e impede que elas caiam no abismo do Não Ser. É somente porque sucede no Ser que “o Não-Ser contém [sua] relação com o Ser; tanto o Ser quanto sua negação são simultaneamente afirmados, e essa afirmação é o Nada tal como existe no Devir”. Hegel justifica seu ponto de partida invocando Parmênides e o início da filosofia (isto é, “identificando lógica e história”), rejeitando tacitamente, desse modo, a “Metafísica Cristã”; mas basta fazer uma experiência com o pensamento de um movimento dialético que comece do Não-Ser para se perceber que nenhum Devir jamais poderia surgir daí; o Não-Ser no início aniquilaria tudo o que foi gerado. Hegel tem bastante CONSCIÊNCIA disso; sabe que sua proposição apodítica de que “não há, no céu ou na terra, qualquer coisa que não contenha tanto Ser quanto Nada” baseia-se no pressuposto sólido da primazia do Ser, que, por sua vez, simplesmente corresponde ao fato de que o puro nada, isto é, uma negação que não nega algo específico e particular, é impensável. Só o que podemos pensar é em “um Nada do qual Algo está para se originar; de modo que o Ser já esteja contido no Começo”. [Science of Logic, vol. I, pp. 95, 97, 85] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 6]

Em minha discussão sobre o Pensamento, utilizei o termo “falácias metafísicas”, mas sem tentar refutá-las, como se fossem o simples resultado de erro lógico ou científico. Em vez disso, procurei demonstrar sua autenticidade, derivando-as das experiências reais do ego pensante em seu conflito com o mundo das aparências. Como vimos, o ego pensante retira-se temporariamente deste mundo, sem nunca chegar a deixá-lo de todo, porque está incorporado a um eu corpóreo, a uma aparência entre aparências. As dificuldades que cercam qualquer discussão sobre a Vontade têm uma semelhança óbvia com aquilo que consideramos verdadeiro nessas falácias, isto é, com o fato de que provavelmente são causadas pela natureza dessa própria faculdade. Enquanto a descoberta da razão e de suas peculiaridades coincidiu com a descoberta do espírito e com o início da filosofia, a faculdade da Vontade só se tornou manifesta muito mais tarde. A questão que nos irá orientar será, portanto, a seguinte: que experiências fizeram com que os homens tomassem CONSCIÊNCIA de que eram capazes de constituir volições? [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 7]

A primeira e mais fundamental resposta para a questão que levantei no início deste capítulo — “que experiências fizeram com que o homem tomasse CONSCIÊNCIA de sua capacidade de constituir volições?” — é que essas experiências, hebraicas na origem, não foram políticas e não se relacionaram com o mundo — seja com o mundo das aparências e a posição que nele o homem ocupa, seja com o campo dos assuntos humanos, cuja existência depende de feitos e ações, mas localizaram-se exclusivamente dentro do próprio homem. Ao lidarmos com experiências relevantes para a Vontade, estamos lidando com experiências que os homens têm não só consigo mesmos, mas também dentro de si mesmos. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 8]

Tais experiências não eram de modo algum ignoradas na Antiguidade grega. No volume anterior falei com algum detalhe sobre a descoberta socrática do dois-em-um, a que daríamos hoje o nome de “CONSCIÊNCIA”, e que tinha originalmente a função do que hoje chamamos de “CONSCIÊNCIA moral”. Vimos como esse dois-em-um, um simples fato da CONSCIÊNCIA, realizava-se e articulava-se no “diálogo sem som” que, desde Platão, temos chamado de “pensamento”. Esse diálogo em pensamento de mim comigo mesmo tem lugar somente no estar-só, em uma retirada do mundo das aparências em que habitualmente estamos junto com os outros e aparecemos como unidade para nós mesmos, bem como para os outros. Mas a interioridade do diálogo em pensamento que faz da filosofia a “atividade solitária” de Hegel (embora tenha ciência de si — o cogito me cogitare de Descartes, o Ich   denke de Kant acompanhando silenciosamente tudo o que faço) não se refere tematicamente ao eu, mas sim às experiências e às questões que esse eu, uma aparência entre aparências, elege para serem investigadas. Esse exame meditativo de tudo o que é dado pode ser perturbado pelas necessidades da vida, pela presença de outros, por todos os tipos de assuntos urgentes. Mas nenhum dos fatores que interferem na atividade do espírito surge do próprio espírito, pois os dois-em-um são amigos e parceiros, e manter essa “harmonia” intacta está acima de tudo para o ego pensante. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 8]

Pode ser útil comparar essa atitude com a do filósofo na velha parábola pitagórica sobre os Jogos Olímpicos; os melhores eram os que não participavam da luta pela fama ou pelo lucro, mas que eram simples espectadores interessados nos jogos pelos jogos. Não sobra aqui nenhum vestígio deste interesse desinteressado. Somente o eu tem interesse, e o soberano indisputável do eu é a razão argumentativa; não o velho nous, o órgão interno para a verdade, o olho invisível do espírito dirigido para o que é invisível no mundo visível, mas sim uma dynamis logiké, cuja maior distinção é “tomar conhecimento de si mesma e de todas as outras coisas”, e que tem o poder de aprovar ou desaprovar sua própria ação [Ibidem, livro I, cap. i]. À primeira vista, isso pode se assemelhar ao dois-em-um socrático realizando-se no processo pensante; mas na verdade está muito mais próximo daquilo que hoje chamamos de CONSCIÊNCIA. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]

A descoberta de Epiteto foi de que o espírito, conseguindo reter as “impressões” externas (phantaisiai), era capaz de lidar com as “coisas exteriores” como simples “dados da CONSCIÊNCIA”, como diríamos. A dynamis logiké examina tanto a si mesma quanto as “impressões” deixadas no espírito. A filosofia nos ensina a “lidar com as impressões corretamente”; ela testa-as e “distingue-as, sem fazer uso de uma sequer que não tenha sido testada”. Olhar para uma mesa não nos capacita para decidir se a mesa é boa ou ruim; a visão não nos informa, nem qualquer outro dos nossos sentidos. Somente o espírito, que lida não com as mesas reais, mas com impressões de mesas, pode nos informar. (“O que nos informa que o ouro é uma coisa bela? Pois não é o ouro que nos informa. Claramente, é a faculdade que lida com impressões.” [Ibidem]) O importante é que não é preciso sair de si mesmo se o interesse concentra-se integralmente no eu. As coisas só têm valor à medida que o espírito pode envolvê-las de dentro de si. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 9]

Essa solução é evidentemente uma exigência, uma vez que sabemos que tais conflitos do ego volitivo são resolvidos no final. Na verdade, como irei demonstrar adiante, aquilo que parece um deus ex machina nas Confissões deriva de uma teoria diferente da Vontade. Mas antes de nos voltarmos para Sobre a Trindade, pode ser útil uma interrupção para vermos como o mesmo problema é tratado em termos de CONSCIÊNCIA por um pensador moderno. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]

Mill precisou dessa “permanência” porque era inteiramente contrário à ideia de que temos CONSCIÊNCIA de sermos capazes de nos contrapor ao mais forte desejo ou aversão; tinha, portanto, que explicar o fenômeno do arrependimento. O que descobriu, então, foi que “depois de cair em tentação [isto é, no maior desejo do momento], o ‘eu’ desejante termina, mas o ‘eu’ que tem a CONSCIÊNCIA pesada pode perdurar até o fim da vida”. Embora esse persistente “eu” da CONSCIÊNCIA pesada não tenha qualquer importância nas considerações posteriores de Mill, ele sugere aqui a intervenção de algo chamado “CONSCIÊNCIA moral”, ou “caráter”, que sobrevive a todas as volições ou desejos, temporalmente limitados. De acordo com Mill, o “eu que perdura”, e que se manifesta somente quando uma volição chega a seu fim, deveria assemelhar-se a qualquer coisa que tenha impedido o asno de Buridan de morrer de fome na dúvida entre dois montes de feno com o mesmo cheiro bom: “Por simples cansaço […] misturado à sensação de fome”, o animal acabaria por deixar “completamente de pensar nos objetos rivais”. Mas isso Mill dificilmente poderia admitir, já que o “eu que perdura” é claramente uma das “partes na disputa”; e quando ele diz que “o objeto da educação moral é a educação da vontade”, está pressupondo que é possível ensinar uma das partes a vencer. A educação aparece aqui como um deus ex machina: a proposição de Mill baseia-se em um pressuposto não examinado — semelhante aos que os filósofos da moral adotam com uma confiança enorme, e que não podem ser provados ou refutados [In An examination of Sir William Hamilton’s Philosophy, “On the Freedom of the Will” (1867), citado de Morgenbesser e Walsh, op. cit., pp. 57-69. Grifo nosso]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]

Acentuei anteriormente o fato de que o argumento do determinismo só alcança agudeza real quando se introduz Alguém que tudo prevê, que se situa fora da ordem temporal   e vê o que acontece da perspectiva da eternidade. Ao introduzir esse Alguém, Agostinho foi capaz de chegar ao seu ensinamento mais dúbio e também mais terrível: a doutrina da predestinação. Não estamos interessados aqui nessa doutrina, uma radicalização perversa da doutrina de Paulo segundo a qual a salvação não está nas ações, mas na fé, e é dada pela graça de Deus — de modo que nem mesmo a fé está em poder dos homens. Essa doutrina encontra-se em um dos últimos tratados, On grace and free will, escrito contra os seguidores do pelagianismo, os quais, referindo-se precisamente às doutrinas agostinianas iniciais da vontade, enfatizaram “os méritos da boa vontade antecedente” para se receber a graça, cujo concedimento só era completamente gratuito no perdão aos pecados. [Em sua forma mais extrema, como foi sustentada por Agostinho no final da vida, a doutrina afirma que as crianças que não recebem o batismo antes de morrer estão condenadas à danação eterna. Isso não pode se justificar fazendo apelo a Paulo porque essas crianças não podem ainda ter conhecido a fé. Só depois que a graça é materializada em um sacramento, realizado pela Igreja, só depois que a fé foi institucionalizada, essa versão da predestinação pode se justificar. A graça institucionalizada não é mais um dado da CONSCIÊNCIA — uma experiência do homem interior — e, portanto, não tem interesse para a filosofia; tampouco é, a rigor, uma questão de fé. Certamente, este está entre os fatos políticos mais importantes no credo cristão, do qual não estamos tratando aqui.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 10]

A autonomia da Vontade — “nada além da vontade é a causa total da volição” (“nihil   aliud a voluntate est causa totalis volitionis in voluntate”) [Citado de Vogt, op. cit., p. 31] — limita de forma decisiva o poder da razão, cujo ditame não é absoluto; mas não limita o poder da natureza, seja da natureza do homem interior, a que se dá o nome de “inclinações”, seja da natureza das circunstâncias exteriores. A vontade não é, de modo algum, onipotente em sua efetividade real: sua força consiste apenas em que ela não pode ser coagida a querer. Para ilustrar essa liberdade do espírito, Scotus dá o exemplo de “um homem que se atira de um lugar alto” [Bonansea, op. cit., p. 94, nota 44]. Esse ato acaba com sua liberdade, uma vez que agora ele necessariamente cai? Segundo Scotus, não. Enquanto o homem está caindo necessariamente, compelido pela lei da gravidade, permanece livre para continuar a “querer cair”, e pode também, é claro, mudar de ideia, caso em que seria incapaz de desfazer o que começara voluntariamente e em que se veria nas mãos da necessidade. Lembramos o exemplo de Espinosa, da pedra que rola, a qual, se fosse dotada de CONSCIÊNCIA, seria necessariamente vítima da ilusão de que havia ela mesma se atirado e de que, se estava agora rolando, era por sua própria vontade. Tais comparações são úteis para que possamos nos dar conta de até que ponto tais proposições e suas ilustrações, no disfarce de argumentos plausíveis, dependem de pressupostos preliminares sobre necessidade ou liberdade como fatos autoevidentes. Para ficar com o presente exemplo: nenhuma lei da gravidade tem poder sobre a liberdade assegurada na experiência interior; nenhuma experiência interior tem validade direta no mundo como ele é, real e necessariamente, conforme a experiência exterior e o raciocínio correto do intelecto. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]

Foi isso que fez John Stuart Mill afirmar que “nossa CONSCIÊNCIA interna nos diz que temos um poder [isto é, uma liberdade] que toda a experiência externa da raça humana nos diz que jamais utilizamos”; ora, em que consiste essa “experiência externa da raça humana” senão nos registros dos historiadores, cujo olhar retrospectivo vê aquilo que foi — factum est — e que já se tornou, portanto, necessário? Nesse momento, a “experiência externa” suplanta as certezas da “CONSCIÊNCIA interna” sem, contudo, destruí-la; e o resultado é, para um espírito que tenta coordenar e manter em equilíbrio tanto a “CONSCIÊNCIA interna” quanto a “experiência externa”, como se a base da necessidade dependesse ela mesma de uma contingência. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 12]

Essa momentosa ruptura factual que ocorreu em nosso passado foi caracterizada e interpretada segundo muitos pontos de vista diferentes e legítimos; em nosso contexto, o desenvolvimento mais decisivo que se deu durante esses séculos foi a subjetivização do pensamento cognitivo, bem como do metafísico. Foi só nesses séculos que o homem se transformou no centro de interesse da ciência e da filosofia. Isso não acontecera em tempos anteriores, muito embora, como vimos, a descoberta da Vontade tenha coincidido com a descoberta de um “homem interior” em um momento em que o homem se tornara “uma questão para si mesmo”. Somente quando a ciência provou não só que os sentidos humanos estavam sujeitos ao engano — que poderia ser corrigido à luz de uma nova evidência para que fosse revelada a “Verdade” —, mas também que seu aparato sensorial ficara para sempre incapaz de certezas autoevidentes, foi que o espírito humano, agora totalmente lançado de volta a si mesmo, começou, com Descartes, a procurar uma “certeza” que fosse um dado puro da CONSCIÊNCIA. Quando Nietzsche chamou a Era Moderna de “escola da suspeita”, quis dizer que, pelo menos a partir de Descartes, o homem já não estava mais certo de coisa alguma, nem mesmo de ser real; ele precisava de uma prova da existência não só de Deus como também de si mesmo. Foi a certeza do eu-sou que Descartes descobriu em seu cogito me cogitare; isto é, em uma experiência do espírito para a qual nenhum dos sentidos que nos dão nossa realidade e a de um mundo exterior é necessário. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 13]

É claro que essa certeza é bastante questionável. Já em Pascal  , ele próprio influenciado por Descartes, encontramos a objeção de que esta CONSCIÊNCIA dificilmente poderia ser suficiente para distinguir entre sonho e realidade: um pobre artesão sonhando durante doze horas toda noite que era rei teria a mesma vida (e desfrutaria da mesma quantidade de “felicidade”) que um rei que sonhasse toda noite que era um pobre artesão. Além disso, já que “frequentemente se sonha estar sonhando”, nada pode assegurar que aquilo a que chamamos nossa vida não seja um completo sonho do qual despertaremos na morte. Duvidar de tudo (“de omnibus dubitandum est”) e encontrar certeza na própria atividade de duvidar exigida pela “nova Filosofia [que] de tudo duvida” (Donne) não ajuda, pois não está quem duvida obrigado a duvidar que duvida? Ninguém foi, é verdade, tão longe, mas isso só significa que “nenhum homem, jamais, foi um cético perfeito [pyrrhonien, em Pascal], ainda que não por estar fortalecido pela razão”; ele era impedido pela “natureza, [a qual] ajudava a razão impotente”; e assim o cartesianismo era “algo como a história de Dom Quixote”. [Para Pascal, ver Pensées, n° 81, Ed. Pantheon; n° 438 [257]. Ed. Pléiade; e “Sayings Attributed to Pascal”, in Pensée, Ed. Penguin, p. 356. Para Donne, ver “An Anatomy of the World; The First Anniversary”.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 13]

A ascensão da ciência teve início com as novas descobertas dos astrônomos, cientistas que não apenas “usaram de maneira bastante sistemática” as descobertas de seus predecessores, mas que também, sem os registros de gerações passadas, vale dizer, registros confiáveis, teriam sido incapazes de fazer absolutamente qualquer “progresso”, uma vez que o tempo de vida de um homem ou de uma geração de homens é evidentemente curto demais para a verificação de descobertas e validação de hipóteses científicas. Mas “os astrônomos escreveram catálogos astrais para serem usados por futuros cientistas”, isto é, lançaram a base para avanços científicos. (A astronomia não estava, é claro, totalmente sozinha na iniciação do progresso. Tomás de Aquino   tinha CONSCIÊNCIA de um “aumento no conhecimento científico” — “argumentum factum est” — que ele explicava pelas “falhas de conhecimento dos que inventaram as ciências”. Os artesãos também, acostumados ao método de tentativa e erro, tinham uma CONSCIÊNCIA clara de certas melhorias em seus ofícios. As próprias guildas, contudo, “enfatizavam a continuidade, em vez do progresso do artesanato”, e “a única passagem da literatura que expressa claramente a ideia do progresso gradual do conhecimento, ou melhor, da habilidade tecnológica, aparece em um tratado sobre artilharia”.) [Zilsel encontra, portanto, a gênese do conceito de Progresso na experiência e na“atitude intelectual” dos “artesãos superiores”.] Mesmo assim, o elemento decisivo que conferiu à ciência moderna o seu ímpeto surgiu na astronomia, e a ideia de Progresso — que a partir de então dominou todas as outras ciências, até que finalmente se tornasse a noção predominante do igualmente novo conceito de história — baseou-se originalmente no estoque de dados, no intercâmbio de conhecimento e no lento acúmulo de registros que eram os requisitos para o avanço em astronomia. Somente depois das espantosas descobertas dos séculos XVI e XVII foi que o que andava acontecendo nesse campo chamou a atenção daqueles interessados na condição humana em geral. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 13]

E enquanto começavam a refletir, com uma lealdade nunca antes vista, sobre o curso da história, não podiam deixar de tomar CONSCIÊNCIA quase imediata do maior enigma que seu novo tema lhes apresentava. Trata-se do simples fato de que nenhuma ação jamais alcança o objetivo pretendido e de que o Progresso — ou qualquer outra significação fixa do processo histórico — surge de uma “mistura” sem sentido “de erro e violência” (Goethe  ), de uma “casualidade melancólica” no “curso sem sentido dos assuntos humanos” (Kant). Só se pode detectar algum sentido por meio da sabedoria da visão retrospectiva quando os homens deixam de agir e começam a contar a história do que aconteceu; então é como se os homens, ao perseguir seus propósitos sem se entender, sem a menor lógica, tivessem sido levados por uma “intenção da natureza”, pelo “fio condutor da razão” [Ver Kant, Idea   for a Universal History from a Cosmopolitan Point of View (1784), Introdução, in Kant on History, ed. Lewis White Beck, Library of Liberal Arts, Indianapolis, Nova York, 1963, pp. 11-12.]. Citei Kant e Goethe, que estacaram, ambos, no limiar da nova geração, aquela dos idealistas alemães, para quem os acontecimentos da Revolução Francesa foram as experiências de vida decisivas. Mas Vico já sabia que os “fatos da história conhecida” tomados em si mesmos “não possuem nem uma base comum nem continuidade nem coerência”; e Hegel, muito depois, ainda insistia em que as “paixões, os propósitos privados e a satisfação de desejos egoístas, são […] as mais efetivas fontes da ação”. Logo, não é o registro dos eventos passados, mas somente a história o que faz sentido, e o que tanto impressiona nas observações de Kant ao final da vida é ter ele entendido imediatamente que o sujeito da ação da História teria que ser a Humanidade, em vez de o homem ou qualquer comunidade humana constatável. Não menos impressionante é o fato de ter sido capaz de perceber a grande falha no projeto da História: “Continuará sempre sendo desconcertante que as gerações anteriores pareçam levar adiante sua pesada tarefa pelo bem dos que virão […] e que somente os últimos devam ter a sorte de habitar o edifício [terminado].” [Ibidem, Terceira Tese. Trad. da autora] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 13]

Com essas palavras, Heidegger volta-se resolutamente contra o subjetivismo da Era Moderna; e também contra as análises fenomenológicas, cuja meta principal sempre foi “salvar os fenômenos” assim como eles eram dados à CONSCIÊNCIA. E ao entrar na ponte arco-íris de conceitos, ele acaba encaminhando-se para o idealismo alemão e para a sua exclusão engenhosa do homem e das faculdades do homem, em favor de conceitos personificados. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 13]

Essa operação da vontade, existente apenas em nosso espírito, supera a dualidade espiritual do dois-em-um, que veio a tornar-se uma batalha entre um que comanda e um que supostamente deve obedecer, pela identificação do “Eu” como um todo com a parte que comanda, e antecipando que a outra, a parte que resiste, obedecerá e fará o que lhe disserem para fazer. “Aquilo que é chamado de ‘liberdade da vontade’ é essencialmente uma superioridade passional em relação a alguém que deve obedecer. ‘Eu sou livre; ele deve obedecer’ — a CONSCIÊNCIA disso é a própria vontade.” [N° 19] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14]

Não esperaríamos que Nietzsche acreditasse na graça divina como o poder de cura da dualidade da Vontade. O inesperado na descrição acima é que ele tenha detectado na “CONSCIÊNCIA” da luta uma espécie de truque do “Eu” que o capacita para escapar ao conflito identificando-se com a parte que comanda, e para fechar os olhos, por assim dizer, para os sentimentos desagradáveis e paralisantes de se estar sob coerção e, portanto, sempre prestes a resistir. Nietzsche com frequência denuncia esse sentimento de superioridade como uma ilusão, ainda que como uma ilusão saudável. Em outras passagens ele explica a “estranheza” do fenômeno como um todo chamando-o de uma “oscilação [da vontade] entre sim e não”, mas mantém-se preso ao sentimento da superioridade do “Eu”, identificando a oscilação com uma espécie de vaivém entre o prazer e a dor. O prazer, diferente neste e em outros aspectos do deletactio de Scotus, é claramente o júbilo antecipado do “eu-posso” inerente ao próprio ato de querer, independente da performance, do sentimento triunfante que todos conhecemos quando nos desempenhamos bem, independente de exaltação ou de plateia. Em Nietzsche, o que importa é que ele inclui os sentimentos negativos de servidão, de estar sob coação e de resistência ou ressentimento entre os obstáculos necessários sem os quais a Vontade nem sequer conheceria seu próprio poder. Somente ao vencer uma resistência interna é que a Vontade toma CONSCIÊNCIA de sua gênese: ela não brotou para adquirir poder; o poder é sua própria fonte. Novamente em Para além do bem e do mal: ‘‘‘Liberdade da vontade’ é a expressão para a condição prazerosa múltipla daquele que quer e que está no comando e simultaneamente se vê como o mesmo que executa o comando — desfrutando, enquanto tal, o triunfo sobre a resistência, mas de posse do juízo de que é sua própria vontade que está superando a resistência. Dessa maneira, aquele que quer acrescenta os sentimentos prazerosos da execução ao sentimento prazeroso que tem como Comandante.” [Ibidem, grifo nosso] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14]

Seu exame é mais penetrante e mais crítico porque, no lugar do cálculo de utilidades de Hume   e de seu “sentimento moral”, ele postula a experiência de um “eu-quero” a que se segue um efeito; isto é, usa o fato de que o homem tem CONSCIÊNCIA de si mesmo como um agente causativo mesmo antes de ter feito qualquer coisa. Mas Nietzsche não acredita que isto torne a Vontade menos irrelevante; para Nietzsche, assim como para Hume, a vontade livre é uma ilusão inerente à natureza humana, uma ilusão de que a filosofia, um exame crítico de nossas faculdades, irá nos curar. Só que, para Nietzsche, as consequências morais dessa cura são decididamente mais sérias. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14]

Se já não podemos atribuir “o valor de uma ação […] à intenção, o propósito que nos levou a agir ou a viver […] [se] a ausência de intenção e propósito nos acontecimentos vem cada vez mais para o primeiro plano da CONSCIÊNCIA”, fica inevitável concluir que “nada tem qualquer significado”, pois “essa frase melancólica significa ‘Todo significado está na intenção, e se a intenção falta de todo, então falta de todo também o significado’”. Logo: “Por que ‘um propósito’ não poderia ser um epifenômeno na série de mudanças de forças efetivas que produz a ação intencionada — uma pálida imagem em nossa CONSCIÊNCIA […] um indício de ocorrências, e não sua causa? — Mas com isso teremos criticado a vontade em si: não será uma ilusão tomar por causa aquilo que surge para a CONSCIÊNCIA como um ato da vontade?” (grifos nossos). [Ibidem, n° 666, pp. 351-352. Trad. da autora.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14]

Em terceiro lugar, a Vontade — seja quando é vontade retroativa e percebe sua impotência, seja quando é vontade projetiva e percebe sua força — transcende a simples gratuidade [giveness] do mundo. Tal transcendência é espontânea e corresponde à avassaladora superabundância de Vida. O objetivo autêntico da Vontade é, portanto, a abundância: “Com as palavras ‘liberdade da Vontade’ falamos desse sentimento de excesso de força”, e o sentimento é mais do que uma simples ilusão da CONSCIÊNCIA porque corresponde de fato à própria superabundância de vida. Seria portanto possível entender toda a Vida como Vontade-de-potência. “Somente onde há vida há também vontade: não vontade de vida mas […] vontade de potência.” [Thus Spoke Zarathustra, parte II, “On Self-Overcoming”, in The Portable Nietzsche, p. 227] Pois seria bem possível explicar a “alimentação” como a “consequência de apropriação insaciável de vontade de potência, [e] a ‘procriação’ [como] a desagregação que sobrevém quando as células dominantes são incapazes de organizar aquilo que foi apropriado” [The Will to Power, n° 660, p. 349]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 14]

Nessa compreensão radical de Nietzsche, a Vontade é essencialmente destrutiva; e é a essa destrutividade que a reversão original de Heidegger se contrapõe. Seguindo essa interpretação, a própria natureza da tecnologia é a vontade de querer, ou seja, de sujeitar o mundo todo à sua dominação e jugo, cujo fim natural só pode ser a destruição total. A alternativa a esse jugo é “deixar-ser, e o deixar-ser como atividade é o pensamento que obedece ao chamado do Ser”. A disposição que permeia o deixar-ser do pensamento é o oposto da disposição de finalidade no querer; mais tarde, em sua reinterpretação da “reviravolta”, Heidegger a chama de “Gelassenheit  ”, uma serenidade que corresponde ao deixar — ser e que “nos prepara” para “um pensamento que não é uma vontade” [Gelassenheit, p. 33; Discourse on Thinking, p. 60]. Esse pensamento está “além da distinção entre atividade e passividade” porque está além do “domínio da Vontade”, isto é, além da categoria da causalidade, que Heidegger, concordando com Nietzsche, deriva da experiência que o ego volitivo tem de produzir efeitos e, portanto, de uma ilusão produzida pela CONSCIÊNCIA. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]

O insight segundo o qual pensar e querer não são somente duas faculdades do ser enigmático chamado “homem”, mas são também opostos, ocorreu tanto a Nietzsche quanto a Heidegger. É a versão de ambos do conflito fatal que se processa quando o dois-em-um da CONSCIÊNCIA, realizado no diálogo sem som de mim comigo mesmo, transforma sua harmonia e amizade originais em um conflito contínuo entre vontade e contravontade, entre comando e resistência. Mas encontramos testemunho deste conflito por toda a história desta faculdade. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]

Nem sequer precisamos de uma demonstração das influências históricas para compreendermos a persistência obstinada da ideia, desde a ficção etérea de Platão até o constructo espiritual de Hegel — que resultou de um repensar sem precedentes sobre a história do mundo que eliminava deliberadamente do registro factual tudo o que é “meramente” factual por ser acidental ou sem importância. A simples verdade é que nenhum homem pode agir sozinho, embora seus motivos para agir possam ser certos projetos, desejos, paixões e objetivos pessoais. Tampouco podemos jamais realizar qualquer coisa completamente conforme o planejado (mesmo quando, como archón, conseguimos liderar e iniciar, e esperamos que nossos seguidores e ajudantes executem aquilo que começamos), e isso se combina com a nossa CONSCIÊNCIA de sermos capazes de causar um efeito, gerando a noção de que o resultado real deve ser atribuído a alguma força estranha, sobrenatural, que, sem perturbar-se com pluralidade humana, fornece o resultado final. Essa falácia assemelha-se à que Nietzsche detectou na ideia de um “progresso” necessário da Humanidade. Repetindo: “A ‘Humanidade’ não avança; nem sequer existe […]. [Mas já que] o tempo marcha para a frente, gostaríamos de acreditar que tudo o que está nele marcha também para a frente — que o desenvolvimento é tal que se move para a frente.” [The Will to Power, n° 90, p. 55] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]

Certamente a Seinsgeschichte   de Heidegger não pode deixar de nos lembrar o Espírito do Mundo de Hegel. A diferença, entretanto, é decisiva. Quando Hegel viu “o Espírito do Mundo a cavalo” em Napoleão em Jena, sabia que Napoleão não tinha ele próprio CONSCIÊNCIA de ser a encarnação do Espírito, sabia que ele estava agindo segundo aquela mistura humana comum de objetivos de curto prazo, desejos e paixões; para Heidegger, contudo, é o próprio Ser que, sempre mudando, se manifesta no pensamento do agente, de modo que agir e pensar coincidem. “Se agir significa dar auxílio à essência do Ser, então pensar é, na verdade, agir. Isto é, preparar-se [construir uma morada] para a essência do Ser em meio aos entes pelos quais o Ser se transpõe, junto com sua essência, à fala. Sem a fala, o simples fazer ressente-se da falta da dimensão em que pode efetivar-se e seguir instruções. A fala, entretanto, nunca é uma simples expressão do pensamento, do sentimento ou da vontade. A fala é a dimensão original na qual o ser humano é capaz de responder ao chamado do Ser e, respondendo, pertencer a ele. O pensamento é a realização dessa correspondência original.” [Die Technik   und die Kehre  , Pfulllingen, 1962, p. 40] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]

Para sublinhar a semelhança entre Cuidado (antes da “reviravolta”) e Vontade em um cenário moderno, voltamos-nos para Bergson, que — certamente não influenciado por pensadores anteriores, mas seguindo a evidência imediata da CONSCIÊNCIA — propusera, apenas algumas décadas antes de Heidegger, a coexistência de dois eus, um social (o “Eles” de Heidegger) e o outro, o “fundamental” (o “autêntico” de Heidegger). A função da vontade é “recuperar esse eu fundamental das “atribulações da vida social em geral e da linguagem em particular”, isto é, daquela linguagem falada habitualmente em que cada palavra tem um “significado social” [Bergson, Time and Free Will, pp. 128-130, 133]. Trata-se de uma linguagem repleta de clichês, necessária para a comunicação com os outros em “um mundo externo bem distinto de [nós mesmos], que é a propriedade comum a todos os seres conscientes”. A vida em comum com os outros criou seu próprio tipo de fala, que leva à formação de “um segundo eu […] que obscurece o primeiro”. A tarefa da filosofia é levar de volta esse eu social para “o eu real e concreto […], cuja atividade não pode ser comparada à de qualquer outra força”, porque essa força é a pura espontaneidade da qual “cada um de nós tem conhecimento imediato”, adquirido pela observação imediata que se faz de si mesmo [Ibidem, pp. 138-143; cf. p. 183]. E Bergson, bem na linha de Nietzsche e também, por assim dizer, em sintonia com Heidegger, enxerga a “prova” dessa espontaneidade na criatividade artística. A geração de uma obra de arte não pode ser explicada por causas antecedentes, como se aquilo que agora é real estivesse antes latente ou potencial, seja na forma de causas externas ou de motivos internos: “Quando um músico compõe uma sinfonia, sua obra era possível antes de ser real?” [Bergson, Creative Mind, trad. Mabelle L. Andison, Nova York, 1946, pp. 27 e 22] Heidegger está bastante alinhado com a posição geral quando escreve, no volume I de Nietzsche (isto é, antes da “reviravolta”): “Querer sempre significa: trazer-se a si mesmo […]. Querendo, encontramo-nos conosco assim como somos autenticamente.” [Pp. 63-64] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]

Ainda assim, essa é toda a afinidade que se pode encontrar entre Heidegger e seus predecessores imediatos. Nunca, em Ser e Tempo   — exceto por uma observação lateral sobre a fala poética “como desvelamento possível da existência” [N° 34, p. 162] —, a criatividade artística é mencionada. No volume I de Nietzsche, a tensão e a relação íntima entre poesia e filosofia, entre o poeta e o filósofo, é observada em duas ocasiões, mas nunca no sentido, nietzschiano ou bergsoniano, de criatividade pura [Pp. 329 e 470-471]. Em Ser e Tempo, ao contrário, o Eu torna-se manifesto na “voz da CONSCIÊNCIA”, que chama o homem para retornar de seu próprio enredamento cotidiano no “man” (em alemão, um elemento que denota impessoalidade, “as pessoas” ou “eles”), retorno que a CONSCIÊNCIA, em seu chamado, desvela como “culpa” humana, uma palavra (Schuld  ) que em alemão quer dizer tanto ser culpado (ser responsável) por algum ato quanto ter dívidas, no sentido de dever algo a alguém [Nos 54-59. Ver especialmente pp. 268 e ss]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]

O ponto principal na “ideia de culpa” de Heidegger é que a existência humana é culpada à medida que “existe factualmente”; não “precisa tornar-se culpada de algo por omissões ou práticas; [apenas é chamada] para realizar autenticamente a ‘culpa’ que, de qualquer forma, ela é” [Ibidem, n° 58, p. 287]. (Aparentemente nunca ocorreu a Heidegger que, fazendo com que todos os homens que escutam o “chamado da CONSCIÊNCIA” sejam igualmente culpados, ele estava, na verdade, proclamando a inocência universal: onde todos são culpados, ninguém é culpado.) Essa culpa existencial — dada pela existência humana — se estabelece de duas maneiras. Inspirado na ideia de Goethe de que “aquele que age sempre se torna culpado”, Heidegger mostra que toda ação, ao realizar uma única possibilidade, mata de um só golpe todas as outras dentre as quais teve que fazer a escolha. Todo compromisso acarreta algumas desistências. Mais importante do que isso, entretanto, é que o conceito de “ser lançado no mundo” já implica que a existência humana deve sua existência a algo que não é ela mesma; está endividada em virtude de sua própria existência: o Dasein   — a existência humana naquilo que é — “foi lançado; está aí, mas não foi trazido aí por si mesmo” [Ibidem, p. 284]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]

A CONSCIÊNCIA exige que o homem aceite essa “dívida”, e aceitação significa que o Eu consegue uma espécie de “ação” (handeln  ), entendida polemicamente como o oposto das ações “audíveis” e visíveis da vida pública — a simples espuma daquilo que verdadeiramente é. Esse agir é silencioso, é um “deixar o próprio eu agir em sua dívida”, e essa “ação” completamente interior, na qual o homem se abre para a autêntica realidade de ser lançado [Ibidem, n° 59-60, pp. 294-295], só pode existir na atividade do pensamento. Essa é provavelmente a razão pela qual Heidegger, por toda sua obra, “evitou propositalmente” [Ibidem, n° 60, p. 300] lidar com a ação. O que mais surpreende em sua interpretação da CONSCIÊNCIA é a veemente denúncia da “interpretação comum da CONSCIÊNCIA”, que sempre concebeu como uma espécie de solilóquio, “o diálogo sem som de mim comigo mesmo”. Tal diálogo, sustenta Heidegger, só pode ser explicado como uma tentativa inautêntica de autojustificação contra as alegações do “Eles”. E isso é ainda mais impressionante porque Heidegger, em um contexto diferente — e, é verdade, apenas de maneira marginal —, fala da “voz de um amigo que todo Dasein [existência humana] traz consigo” [Ibidem, n° 34, p. 163]. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]

Por mais estranha e, em última análise, inexplicável que a análise da CONSCIÊNCIA em Heidegger possa se mostrar pela evidência fenomenológica, a ligação com os simples fatos da existência humana, implícitos no conceito de uma dívida primordial, certamente contém a primeira pista para a identificação que posteriormente ele faz entre pensar e agradecer. O que o chamado da CONSCIÊNCIA realiza, na verdade, é a recuperação do eu individualizado (vereinzeltes), de seu envolvimento nos acontecimentos que determinam as atividades cotidianas do homem e no curso do registro histórico — l’écume des choses. Intimado novamente, o eu dirige-se agora para um pensamento que expressa gratidão por “aquilo nu” ter sido dado. Confrontado com o Ser, a atitude do homem deve ser a do agradecimento. E cumpre que isso seja visto como uma variante do thaumazein   de Platão, o princípio iniciador da filosofia. Lidamos com aquele espanto admirativo; e encontrá-lo em um contexto moderno não impressiona nem surpreende; basta pensar na exaltação “daqueles que dizem Sim” de Nietzsche ou desviar a atenção das especulações acadêmicas para alguns dos grandes poetas deste século. Eles mostram pelo menos como pode ser sugestiva uma afirmação como esta na solução para a aparente falta de sentido em um mundo completamente secularizado. Aqui estão duas linhas do russo Osip Mandelstam, escritas em 1918: We will remember in Lethe  ’s cold waters / The earth for us has been worth a thousand heavens. [Lembraremos nas águas frias do Lethe/ Que a terra valeu para nós por mil céus. (N. T.)] Esses versos podem ser facilmente comparados com algumas linhas de Rainer Maria Rilke   nas Elegias de Duíno, escritas mais ou menos na mesma época; cito algumas delas: Erde   du liebe  , ich will. Oh glaub es bedürfte / Nicht   deiner Frühlinge mehr, mich dir zu gewinnem, / Einer, ach ein einziger ist schon dem Blute zu viel. / Namenlos bin ich zu dir entschlossen von weit her, / Immer warst du im recht.(…) [Terra, tu querida, és o que desejo. Oh! acredita-me, não precisas/ Mais de tuas primaveras para ganhar-me; uma única,/ Só uma, já é mais do que meu sangue pode resistir./ Fui agora indizivelmente teu por tempos e tempos./ Estiveste sempre certa. (Nona Elegia). (N. T.)] E, finalmente, como um lembrete, cito novamente o que W. H. Auden escreveu mais ou menos vinte anos mais tarde: That singular command / I do not   understand, / Bless what there is for being, / Which has to be obeyed, for / What else am I made for, / Agreeing or disagreeing? [Aquela ordem singular/ que eu não compreendo:/ abençoai tudo o que é, por si/ A qual tem de ser obedecida, pois/ Para que outra coisa eu fui feito/ Concordando ou divergindo? (N. T.)] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]

Esse Alguém, o pensador que se desabituou de querer, passando a “deixar-ser”, é, na verdade, o “autêntico Eu” de Ser e Tempo, que agora ouve o chamado do Ser, em lugar do chamado da CONSCIÊNCIA. Diferente do Eu, o pensador não é convocado por si mesmo a seu Eu; contudo “ouvir o chamado autenticamente significa mais uma vez persuadir-se a agir factualmente” (“sich in das faktische Handeln bringen  ”) [Ibidem, nº 59, p. 294]. Nesse contexto, a “reviravolta” significa que o Eu não atua mais em si mesmo (o que se abandonou foi o In-sich-handeln-lassen des eigensten Selbst) [Ibidem, n° 59-60, p. 295], mas, obediente ao Ser, desempenha pelo pensamento puro o papel de contracorrente de Ser que subjaz à “espuma” dos seres — as meras aparências cuja corrente é conduzida pela vontade de potência. O “Eles” reaparece aqui, mas sua principal característica não é mais o “palavrório” (Gerede  ); é a destrutividade inerente ao querer. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]

Esses enunciados trazem-nos de volta a território familiar, como fica evidente quando lemos aí que a desordem é “trágica” e não uma coisa pela qual se pode responsabilizar o homem. Com certeza, não há mais qualquer “chamado da CONSCIÊNCIA” convocando o homem de volta ao seu eu autêntico, ao insight de que, não importa o que tenha feito ou se omitido de fazer, era já schuldig (“culpado”), já que sua existência era algo que ele “devia”, depois de ter sido lançado no mundo. Mas, assim como em Ser e Tempo este eu “culpado” podia salvar-se antecipando sua morte, aqui também o Dasein “errante”, enquanto “demora-se um pouco” no reino da errância, pode, através da atividade do pensamento, juntar-se ao que está ausente. Há entretanto a diferença de que aqui o ausente (o Ser em sua permanente retirada) não tem história no reino da errância, e de que pensar e agir não coincidem. Agir é errar, perder-se. Deveríamos considerar também de que modo a definição inicial do ser-culpado como traço primordial do Dasein, independentemente de qualquer ato específico, foi substituída por “errar” como a marca decisiva de toda a história humana. (Ambas as formulações, a propósito, lembrarão curiosamente para quem lê alemão o “Der Handelnde wird immer schuldig” e o “Es irrt der Mensch   solang er strebt” de Goethe.) [Para evitar equívocos: ambas as citações são tão famosas que já fazem parte da língua alemã. Todo falante de alemão pensa geralmente nesses termos sem necessariamente ter sido influenciado por Goethe.] [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 15]

Parece somente natural que essa geração de fundadores, em cujas descobertas a ciência moderna se baseou e cujas reflexões acerca do que estavam fazendo produziram a “crise nos fundamentos”, fosse seguida por muitas gerações de epígonos menos eminentes que acham mais fácil responder a questões irrespondíveis por terem menos CONSCIÊNCIA da linha que separa suas atividades habituais de suas reflexões sobre elas. Falei da orgia de pensamento especulativo que se seguiu à liberação kantiana da necessidade da razão de pensar além da capacidade cognitiva do intelecto, os jogos que os idealistas alemães fizeram com os conceitos personificados e as alegações feitas para a validade científica — algo que muito se distancia da “crítica” de Kant. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]

A ênfase aqui está claramente no Poder, no sentido do eu-posso; para Montesquieu, assim como para os antigos, era óbvio que não se poderia mais dizer que um agente era livre quando lhe faltasse a capacidade de fazer o que quisesse fazer, quer por circunstâncias exteriores, quer pelas interiores. Além disso, as Leis que segundo Montesquieu transformam indivíduos livres e sem lei em cidadãos não são os Dez Mandamentos de Deus, ou a voz da CONSCIÊNCIA, ou o lumen rationale da razão, iluminando igualmente todos os homens, mas sim rapports feitos pelos homens, “relações” que, envolvendo os assuntos inconstantes do homem mortal — diferentes da eternidade de Deus ou da imortalidade do cosmo —, devem estar “submetidas a todos os acidentes que podem acontecer e variar à proporção que a vontade do homem muda” [Ibidem, livro I, cap. I, livro XXVI, cap. 1 e 2]. Para Montesquieu, bem como para a Antiguidade pré-cristã e para os homens que, no final do século, fundaram a República norte-americana, as palavras “poder” e “liberdade” eram praticamente sinônimas. A liberdade de movimento, o poder de se movimentar sem o impedimento da doença ou de um senhor, foi originalmente a mais elementar de todas as liberdades, justamente o seu pré-requisito. [Arendt, Vida do Espírito II O Querer 16]

E 2) senso comum: Kant muito cedo se deu conta de que havia algo de não-subjetivo no que parecia ser o sentido mais privado e subjetivo; essa CONSCIÊNCIA é expressa da seguinte forma: há o fato de que as questões de gosto, “o belo, interessam somente em sociedade… Um homem que se deixe abandonar numa ilha deserta não enfeitaria sua casa ou a si mesmo… [O homem] não se contenta com um objeto se não pode satisfazer-se com ele, em comum com os outros”, ao passo que nos desprezamos quando trapaceamos em um jogo, mas nos envergonhamos somente quando somos pegos. Ou: “em questões de gosto devemos renunciar a nós mesmos em favor dos outros”, ou com a finalidade de agradar aos outros (Wir müssen uns gleichsam anderen   zu gefallen entsagen). Finalmente, e do modo mais radical: “No gosto supera-se o egoísmo”, temos consideração, no sentido original da palavra. Temos que superar nossas condições subjetivas especiais em proveito dos outros. Em outras palavras, o elemento não subjetivo nos sentidos não objetivos é a intersubjetividade. (Deve-se estar só para poder pensar; é preciso companhia para desfrutar uma refeição.) [Arendt, Vida do Espírito Apêndice O Julgar ]