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Schürmann (2016:191-193) – totalização imprópria

quinta-feira 29 de fevereiro de 2024, por Cardoso de Castro

Bernardo Sansevero

A absorção pelas coisas que vêm ao nosso encontro é exatamente o modo impróprio de ser-no-mundo. O Dasein   impróprio compreende a si mesmo em termos de “um conjunto objetivo de coisas” (SZ  , p. 201; ST, p. 269). Assim, a modificação imprópria do Dasein é tal que Dasein compreende a si mesmo como se fosse algo objetivamente presente entre outras coisas. Em tal absorção, porém, ainda temos uma modificação específica do “existencial” chamado “todo”. Heidegger descreve o todo impróprio, ao dizer: “a presença (Dasein) perde-se de tal maneira que deve assim só subsequentemente recuperar-se de sua dispersão” (SZ, p. 390; ST, p. 482). Isto é, o Dasein é um todo por somatório, sumarizando experiências objetivamente dadas. Recosta-se e espanta-se sobre as idiotices em que acreditara há anos, soma os acontecimentos do passado e então conclui: tudo isso sou eu. Heidegger escreve: “pensa-se uma unidade na qual essa junção (esse todo) pode ser abarcado” (idem). [1]

Na totalidade inautêntica, não se vê a floresta, e sim as árvores. Mais no fim de sua vida, Heidegger vai chamar essa inautenticidade — quando “Dasein” se torna “pensamento” — de “pensamento calculador”. [2] A totalidade do Dasein, na existência inautêntica, é um mero resultado daquilo que Heidegger chama ironicamente de “pensamento exato”. Essa totalização do Dasein acontece via uma acumulação ocasional; mas esse cálculo, “adicionando” fato por fato, nunca revela o Dasein como um todo. Apenas as coisas vorhanden   podem ser compiladas. O que é “exato” nesse tipo de abordagem é sua separação do todo do Dasein em dados singulares, simplesmente dados.

Mas como a existência inautêntica negligencia a totalidade? Dois pontos nos chamam aqui a atenção. Primeiro, as partes e pedaços de uma biografia só podem aparecer porque o Dasein já é sempre antecipador. “Calculador”, o Dasein transformou tudo aquilo em Vorhandenes (algo simplesmente dado), num ato da antecipação “toda”. O “todo” inautêntico desconsidera, então, o caráter totalizador de sua própria projeção, de sua própria compreensão de mundo como soma de todos os dados. Segundo, a existência inautêntica desconsidera o fato de só se poder falar de dispersão de algo que uma vez foi um todo. A constituição cumulativa do todo do Dasein só é possível porque Dasein já é estruturalmente um todo. Nossa vida cotidiana pode ser atomizada à medida que somos, originalmente, um todo. Apenas um ente que é originalmente um todo pode depois ser reunido “objetivamente” como se fosse um quebra-cabeça.

A totalidade inautêntica aparece mais nitidamente do ponto de vista da temporalidade. Foi dito que o presente é essa determinação do tempo primária nas coisas simplesmente dadas, “à mão”, [192] Vorhanden. A atomização do si mesmo em fragmentos verificáveis resulta pura e simplesmente de uma compreensão atomizada do tempo, composto de momentos datáveis. Heidegger compreende o processo de “datação” ou “databilidade” (SZ407, JS 374), existência inautêntica e primado da ekstase   do presente, como paralelo.

Os componentes da existência não são uma “estrutura”, embora o todo do Dasein, constituído a posteriori de um modo calculador, seja um todo empírico. A contextualidade originária de futuro, passado e presente recua quando investigamos “o que é o caso”. “A datação não registra meramente uma remissão simplesmente dada” (SZ 416-7). “Os agora também são e estão, portanto, de certo modo, simplesmente dados em conjunto” (SZ, p. 423; ST, p. 519). O resumo biográfico é apenas a consequência de uma compreensão do tempo como linear, constituído por uma soma de agoras.

A temporalidade inautêntica aparece, então, como uma “sequência de agoras, sempre ‘simplesmente dados’, que, igualmente, vêm e passam. O tempo é compreendido como o um após o outro, como o ‘fluxo’ dos agora, como o ‘decorrer do tempo”’ (SZ, p. 422; ST, p. 518). Com uma tal compreensão de ser — qua compreensão de tempo —, o Dasein encobre a função totalizadora do presente. Ele esquece que o tempo só é um todo na tríplice ekstase. A temporalidade inautêntica é a representação de um tempo que corre indefinidamente, do tempo como “uma sequência de agoras, simplesmente dada em si mesma e solta no ar” (SZ, p. 424; ST, p. 521).

Original

The absorption in things confronting us is precisely the inauthentic mode of Being-in-the-world. Inauthentic Dasein understands itself in terms of “an objective context of things” (SZ 201). Thus, the inauthentic or “improper” modification of Dasein is such that Dasein understands itself as if it were something objectively present among other things. But in such absorption, we still have one specific modification of the "existential?’’ called “wholeness”. Heidegger describes inauthentic wholeness by saying, “Dasein loses itself in such a manner that it must, as it were, only subsequently pull itself together out of its dispersal" (SZ 390, MR 442). That is, Dasein is a whole by summation, summarizing objectively-given experiences. One sits back and wonders about the idiocies one believed in years ago, sums up past events, and then concludes: this is all me. Heidegger writes: “one thinks up a unity in which that ‘together’ (that whole) can be embraced” (ibid.).

In inauthentic totality, one does not   see the forest for the trees. Later in his career, Heidegger will call this inauthenticity—when “Dasein” has become “Thinking”—“calculative thinking”. The totality of Dasein, in inauthentic existence, is the mere result of what Heidegger ironically calls “exact thinking”. Such totalization of Dasein proceeds by anecdotal cumulation; but such calculus, “adding” fact to fact, can never reveal Dasein as a whole. Only things vorhanden can be so compiled. What is “exact" about this type of approach is its splitting of the whole of Dasein into singular, “objectively given" data.

How precisely does inauthentic existence overlook totality? Two points are salient here. First, bits and pieces of a biography can appear as such only because Dasein is always already anticipatory. It is an act of “whole" anticipation that Dasein, as “calculative”, has transformed all that there is into Vorhandenes. Inauthentic “wholeness” thus misses the totalizing character of its own project, of its own understanding of the world as a sum total of data. Second, inauthentic existence misses the fact that one can only speak of the dispersion of that which was once whole. The cumulative constitution of Dasein’s wholeness is possible only because Dasein is structurally already a whole. Our everyday lives can become atomized only insofar as we are originarily a whole. Only a being that is originarily a whole can subsequently be put together “objectively” as though it were a puzzle.

Inauthentic totality appears most clearly from the point of view of temporality. It has been said that the present is that determination of time that is primary in things, "present at hand”, objectively given, Vorhanden. The atomization of the self into verifiable fragments only results from an understanding of time as atomized, as composed of datable moments. Heidegger understands the process of “dating” or “datability" (SZ 407, JS 374), inauthentic existence, and the primary ecstasis of the present, as parallel.

The composing elements of existence are not a “structure”, although the whole of Dasein constituted a posteriori in a calculative manner is an empirical whole. The originary contextuality of future, past, and present retreats when we [112] investigate “what is the case”. “Dating relates to something present-at-hand” (SZ 416-7). “The now-moments are somehow co-given [with Dasein]: i.e. beings are encountered, and so are the now-moments” (SZ 423). Biographical summation is only the consequence of an understanding of time as linear, as constituted by a sum of now-moments.

Inauthentic temporality thus appears as “a sequence of ‘nows’ which are constantly ‘present-at-hand’, simultaneously passing away and coming along. Time is understood as a succession, as a flowing stream of nows, as the ‘course of time”’ (SZ 422, MR 474). With such an understanding of Being—qua understanding of time—Dasein covers up the totalizing function of the present, it forgets that time is a whole only in the threefold ecstasis. Inauthentic temporality is the representation of a time endlessly running, of time as "a-free-floating-in-itself of a course of ’nows’ which is present-at-hand" (SZ 424, MR 476).


Ver online : Reiner Schürmann


CRITCHLEY, S.; SCHÜRMANN, R. On Heidegger’s being and time. London: Routledge, 2008

CRITCHLEY, S.; SCHÜRMANN, R. Sobre o ser e tempo de Heidegger. Tr. Bernardo Sansevero (modificado o primeiro parágrafo). Rio de Janeiro: Mauad X, 2016


[1Comparar isto a Aristóteles que, no fim do Livro I da Ética a Nicômaco, diz que só se pode julgar uma vida no seu final.

[2Sobre essa transição, ver HEIDEGGER, M. (1998) “PostScript to ‘What Is Metaphysics?’”. In: Pathmarks. Ed. William McNeill. Cambridge: Cambridge University Press, p. 231-2.