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Pensamento Ocidental Moderno

Ortega: A VIDA INTER-INDIVIDUAL. NÓS — TU — EU

Filósofos e Pensadores

quarta-feira 23 de março de 2022

Capítulo V do livro "O Homem e a Gente". Trad. J. Carlos Lisboa. Livro Ibero-Americano, 1960.

Mas para que haja con-vivência é mister sair daquele simples estar aberto ao outro, ao alter, e que chamávamos altruísmo básico do homem. Estar aberto ao outro é algo passivo: é preciso que, sobre a base de uma abertura, eu atue sobre ele e ele me responda ou me reciproque. Não importa o que seja que façamos-, tratar eu de uma ferida dele ou dar-lhe um soco, ao qual corresponda e reciproque com outro. Num caso e noutro, vivemos juntos e em reciprocidade com respeito a algo. A palavra vivemos em seu "mos" expressa muito bem esta nova realidade que é a relação "nós": unus et alter, eu e o outro juntos fazemos algo e, ao fazê-lo, nos somos. Se, ao estar aberto ao outro, chamei altruismo; este sermo-nos mutuamente deverá chamar-se nos-trismo ou nostridade. Ela é a primeira forma de relação concreta com o outro e, assim, a primeira realidade social, — se se quer empregar essa palavra em seu sentido mais vulgar que é, ao mesmo tempo, o de quase todos os sociólogos, entre eles alguns dos melhores, como Max Weber.

Com a rocha não há nostridade. Com o animal, existe uma muito limitada, confusa, difusa e problemática nostridade.

Conforme convivemos e somos a realidade "nós", — eu e ele, isto é, o Outro, — nos vamos conhecendo. Isto significa que o Outro, — até agora um homem indeterminado, do qual sei somente que é, por seu corpo, o que chamo um "semelhante", portanto: alguém capaz de reciprocar-me e com cuja resposta consciente tenho de contar, — conforme o vou tratando, por bem ou por mal, ele se vai precisando para mim, e o vou distinguindo dos outros OUTROS que conheço menos. Esta maior intensidade de trato implica proximidade. Quando esta proximidade de mútuo trato e conhecimento chega a uma forte dose, chamamo-la intimidade. O outro se me faz próximo e inconfundível. Não é outro qualquer, indiscernível dos demais, é o Outro enquanto único. Então, o outro é para mim TU. Conste, pois: TU não é, sem mais nada, um homem, mas um homem único, inconfundível.

Dentro do âmbito de convivência que abre a relação "nós", é onde me aparece o tu, o indivíduo humano único. Tu e eu, eu e tu atuamos um sabre o outro em frequente interação de indivíduo a indivíduo, ambos únicos reciprocamente. Uma das coisas que fazemos e que é a mais típica reciprocidade e nostridade é falar. E uma das coisas de que falamos é de ele ou de eles, isto é, de outros que não estão contigo e comigo na relação "nós". Seja em absoluto, seja ocasionalmente, agora e para isto, ele ou eles são os que permanecem fora desta proximidade que é a nossa relação. Temos aqui uma peculiaridade da língua espanhola, digna de ser meditada, como tudo que pertence à língua vulgar. Os portugueses e os franceses em vez de "nosotros" dizem nós e nous, com o que expressam simplesmente a convivência e proximidade entre aqueles aos quais se referem o nós e o nous. Mas, nós os espanhóis dizemos "nosotros" e a ideia expressada é de sobra diferente. As línguas têm, para expressar comunidades e coletividades, nostridades, o plural. Muitas línguas, porém, não se contentam com uma só forma de plural. Há o plural inclusivo, que se limita, como o nós e o nous, a incluir; mas, diante dele, existe o plural exclusivo, que inclui vários ou muitos, mas faz constar que exclui outros. Pois bem, o nosso plural "nosotros" é exclusivista. Quer dizer que não enunciamos, sem mais nada, a pura comunidade do eu e do tu e, talvez, outros tus, mas uma comunidade entre ambos ou mais do que ambos, eu, tu e tais tus mais, comunidade em que tu e eu formamos certa unidade coletiva: diante, fora e, de certo modo, contra outros. No "nosotros" nos declaramos muito unidos mas, sobretudo, nos reconhecemos como outros diferentes dos Outros, de Eles.

Já advertimos o altruísmo básico do homem, isto é, como está ele a nativitate aberto do Outro. Logo, vimos que o Outro entra comigo na relação Nosotros, dentro da qual o outro homem, o indivíduo indeterminado se precisa em indivíduo único e é o TU, com o qual falo do distante, que é ele, a terceira pessoa. Mas agora falta descrever o meu forcejar com o TU, em choque com o qual faço o mais estupendo e dramático descobrimento: descubro-me a mim como sendo eu e… nada mais do que eu. Contra o que se poderia crer, a primeira pessoa é a última que aparece.


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