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Pensamento Ocidental Moderno

Ortega: A VIDA INTER-INDIVIDUAL. NÓS — TU — EU

Filósofos e Pensadores

quarta-feira 23 de março de 2022

Capítulo V do livro "O Homem e a Gente". Trad. J. Carlos Lisboa. Livro Ibero-Americano, 1960.

Se o que digo é certo, — e isso se verá nas próximas lições, — nossa vida normal consiste em ocupar-nos com pragmata, com coisas ou assuntos e importâncias que não o são propriamente, mas meras interpretações irresponsáveis, dos demais ou nossas mesmas; a saber: sendo a nossa vida um estar sempre fazendo algo com essas pseudo-coisas, irremediavelmente seria um pseudo-fazer, precisamente aquele que anteriormente nos aparecia com a vulgaríssima, mas profundíssima, expressão de "fazer que se faz"; isto é, costumamos fazer que vivemos; não vivemos efetivamente o nosso autêntico viver, aquele que teríamos de viver se, — desfazendo-nos de todas essas interpretações recebidas dos demais, entre os quais estamos e que se costuma chamar "sociedade", — tomássemos, de quando em quando, enérgico, evidente contato com a nossa vida enquanto realidade radical. Mas esta é, — dissemos, — o que somos em radical solidão. Trata-se, pois, da necessidade que o homem tem, periodicamente, de deixar bem claras as contas do negócio que é a sua vida e pelas quais somente ele é responsável, recorrendo da ótica em que vemos e vivemos as coisas, enquanto somos membros da sociedade, à ótica em que elas aparecem quando nos retiramos à nossa solidão. Na solidão o homem é a sua verdade, — na sociedade tende a ser sua mera convencionalidade ou falsificação. Na realidade autêntica do viver humano, está incluído o dever da frequente retirada para o fundo solitário de si mesmo. Essa retirada, — em que às meras verossimilhanças, (quando não simples embustes e ilusões, em que vivemos), exigimos que nos apresentem suas credenciais de autêntica realidade, — é o que se chama, com um nome amaneirado, ridículo e confusionista, filosofia. A filosofia é retirada, anabasis, acerto de contas de alguém consigo mesmo, na pavorosa nudez de si mesmo, diante de si mesmo. Diante de outro, não estamos, não podemos estar integralmente desnudos: se o outro nos olha, já com o seu olhar mais ou menos nos cobre diante dos nossos próprios olhos. Este é o estranho fenômeno do rubor, em que a carne nua parece cobrir-se com um tecido rosado, a fim de ocultar-se. Da nudez teremos de falar a sério, quando falemos da perturbação.

A filosofia não é, pois, uma ciência,- mas, se se quiser, uma indecência, pois é pôr as coisas e a si mesmo desnudos, em pura carne, — naquilo que puramente são e sou, — nada mais. Por isso é, — se ela é possível, — autêntico conhecimento, — o que não são nunca senso strictu as ciências: meras técnicas úteis para o manejo sutil, o refinado aproveitamento das coisas. Mas a filosofia é a verdade, a terrível e desolada, solitária verdade das coisas. Verdade significa: as coisas postas a descoberto, e isso significa literalmente o vocábulo grego para designar a verdade: alétheia, aletheúein, isto é, desnudar. Quanto à palavra latina e nossa: veritas, verum, verdade, — deve provir de uma raiz indo-europeia, — ver, — que significou "dizer"; daí, ver-bum, palavra, não um dizer qualquer, porém o mais solene e grave dizer, um dizer religioso em que pomos Deus por testemunha do nosso dizer; em suma, o juramento. Mas o peculiar de Deus é que, ao citá-lo como testemunha nessa nossa relação com a realidade que consiste em dizê-la, isto é, em dizer o que é realmente, Deus não representa um terceiro entre mim e a realidade. Deus não é nunca um terceiro, porque a sua presença é feita de essencial ausência; Deus é o que é presente precisamente como ausente, é o imenso ausente que brilha em tudo presente, — brilha pela ausência, — e seu papel nesse citá-lo como testemunha, que é o juramento, consiste em deixar-nos sós com a realidade das coisas, de modo que, entre estas e nós, não há nada nem ninguém que as vele, cubra, finja, nem oculte; e o não haver nada entre elas e nós — isso é a verdade. O mestre Eckhart  , — o mais genial dos místicos europeus, — chama a Deus, por isso: "o silencioso deserto que é Deus".


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