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Ortega: A VIDA INTER-INDIVIDUAL. NÓS — TU — EU

quarta-feira 23 de março de 2022

Capítulo V do livro "O Homem e a Gente". Trad. J. Carlos Lisboa. Livro Ibero-Americano, 1960.

Tínhamos partido da vida humana como realidade radical. Entendíamos por realidade radical, — é hora de recordá-lo, — não a única nem sequer a mais importante e, por certo, não a mais sublime, mas, lisa e planamente, aquela realidade primária e primordial em que todas as demais, — se devem ser, para nós, realidades, — têm de aparecer e, portanto, de ter nela a sua raiz, ou estar nela arraigadas. Neste sentido de realidade radical, "vida humana" significa estrita e exclusivamente a de cada um, isto é, sempre e só a minha. Esse X que a vive e a quem costumo chamar eu, e o mundo em que esse "eu" vive, me são patentes, presentes ou com-presentes, e tudo isso: ser eu o que sou, ser esse o meu mundo, e o meu viver nele, — são coisas que me acontecem a mim e somente a mim, ou a mim na minha radical solidão. Se, por ventura, — acrescentei, — aparecesse, nesse meu mundo, algo que conviesse chamar também "vida humana" aparte da minha, — conste da maneira mais expressa que, o será em outro sentido, não já radical, nem primário, nem patente; mas secundário, derivado e mais ou menos latente e suposto. Ora, ao nos aparecerem presentes os corpos de forma humana, advertíamos neles, com-presentes, outros quase-eus, outras "vidas humanas", cada uma com o seu mundo próprio, incomunicante, enquanto tal, com o meu. O que esse passo e essa aparição têm de decisivo é que, enquanto a minha vida e tudo nela, ao me serem patentes e meus, têm o caráter de manentes, — daí, o truísmo de que a minha vida é imanente a si mesma, que está toda ela dentro de si mesma, — a apresentação indireta ou com-presença da vida humana alheia me situa e enfrenta com algo transcendente à minha vida e, portanto que está nesta sem estar propriamente.

O que deveras está patente na minha vida é a notícia, o sinal de que há outras vidas humanas; mas, como vida humana é, em sua radicalidade, somente a minha, e essas vidas serão as de outros como eu, — cada uma de cada um, — em razão de que eles sejam outros, as suas vidas todas se acham fora ou mais além, ou trans-a-minha. Por isso, são transcendentes. E aqui têm os senhores como, pela primeira vez, nos aparece um tipo de realidades que não o são, em sentido radical. A vida do outro não me é realidade patente como o é a minha: a vida do outro, — digamo-lo deliberadamente em forma rude, — é somente uma presunção ou uma realidade presuntiva ou presumida, — tanto quanto se quiser: infinitamente verossímil, provável, plausível, — mas não radicalmente, inquestionavelmente, primordialmente "realidade". Isso nos faz atinar com que à realidade radical, que é a minha vida, corresponde conter dentro de si muitas realidades de segunda ordem, ou presuntivas, o que abre à minha vida um campo enorme de realidades diferentes dela própria. Ao chamá-las, grosso modo, presuntivas, — também poderíamos dizer "verossímeis" — não lhes tiro o caráter e o valor de realidades. O que faço é unicamente negar-lhes a qualidade de realidades radicais, ou inquestionáveis. Pelo visto, a atribuição de realidade permite e até impõe uma escala, gradação ou hierarquias e haverá, como nas queimaduras, realidades de primeiro grau, de segundo grau, etc, e isso — não em referência ao conteúdo dessa realidade, mas ao puro caráter de ser realidade. Por exemplo: o mundo que a física nos descreve, isto é, a ciência exemplar entre aquelas que o homem tem hoje à sua disposição, o mundo físico tem, sem dúvida, realidade; mas qual ou que grau de realidade? Nem é preciso dizer: uma realidade daquelas que chamei presuntivas. Basta recordar que a figura do mundo físico, por cuja realidade, agora nos perguntamos, é o resultado da teoria física, e que essa teoria, como todas as teorias científicas, está em movimento: é, por essência, mutável, porque é questionável. Ao mundo de Newton   sucede o mundo de Einstein e de Broglil. A realidade do mundo físico, ao ser uma realidade que com tanta facilidade e velocidade se sucede e se suplanta a si mesma, não pode ser senão realidade de quarto ou quinto grau. Mas, repito e entenda-se bem-, realidade. Entendo por realidade tudo aquilo com que tenho de contar. E hoje tenho de contar com o mundo de Einstein e Broglil. Dele depende a medicina que tenta curar-me; dele, boa parte das máquinas com que hoje se vive; dele, muito concretamente, o futuro meu, o dos meus filhos, o dos meus amigos, — já que nunca, em toda a história, o porvir dependeu tanto de uma teoria, da teoria intra-atômica.

A todas essas realidades presuntivas, com o fim de não confundi-las com a realidade radical, chamaremos de interpretações ou ideias nossas sobre a realidade, — presunções e verossimilhanças.

E agora vem a grande mutação de ótica ou de perspectiva que necessitamos fazer. Essa ótica nova, a partir da qual vamos, pouco a pouco, começar a falar, — salvo tal ou qual referência ou momentâneo retorno à anterior, — essa ótica, nova no presente curso, é precisamente a normal em todos. A anormal, a insólita é a que vimos usando. Esclarecerei logo o sentido de ambas as perspectivas. Para isso, porém, convém continuar um pouco no que ia dizendo; e ia dizendo que a aparição do outro homem, com a suspeita ou com-presença de que é um eu como o meu, com uma vida como a minha vida e, portanto, não minha senão sua, e um mundo próprio onde ele vive radicalmente, é para mim o primeiro exemplo, neste inventário do meu mundo, em que encontro realidades que não são radicais, mas mera presunção de realidades que, em rigor, são ideias ou interpretações da realidade. O corpo do outro é para mim radical e inquestionável realidade; mas que nesse corpo habita um quase eu, uma quase-vida humana, já é interpretação minha a realidade do outro homem, dessa outra "vida humana" é, pois, de segundo grau, em comparação com a realidade primária que é a minha vida, que é o meu eu, que é o . eu mundo.

Tal averiguação, aparte o valor que tem por si, possui o de me fazer perceber que dentro da minha vida há uma imensidade de realidades presuntivas, o que, — repito, — não quer dizer, por força, que sejam falsas, mas somente que são questionáveis, que não são patentes e radicais. Apresentei o meu grande exemplo: o chamado mundo físico que a ciência física nos apresenta e que é tão diferente do meu mundo vital e primário, no qual não há eléctrons, nem coisa que se lhe pareça.

Pois bem, — e isto é novo, com respeito a tudo anteriormente dito: normalmente vivemos essas presunções, ou realidades de segundo grau, como se fossem realidades radicais. O outro homem, como tal, isto é, não só o seu corpo e os seus gestos, mas o seu "eu" e a sua vida são para mim, normalmente, tão "realidades" como a minha própria vida; quero dizer que vivo, da mesma forma e ao mesmo tempo, a minha vida, em sua realidade primária, e uma vida que consiste em viver como primárias muitas realidades que o são somente em segundo, terceiro, etc, graus. E até mais.- normalmente não me inteiro da minha vida autêntica, daquilo que ela é em sua radical solidão e verdade; ao contrário, vivo presuntivamente coisas presuntivas, vivo entre interpretações da realidade que o meu contorno social, a tradição humana foi inventando e acumulando. Há algumas dessas interpretações que merecem ser tidas por verdadeiras, e a elas chamo realidades de segundo grau, — mas esse "merecem ser tidas por verdadeiras" há de entender-se sempre com medida e razão, não assim sem mais nada, com todo o rigor e em absoluto. A título de interpretações podem sempre, em última instância, ser errôneas e propor-nos realidades francamente ilusórias. De fato, em imensa maioria, as coisas que vivemos são, efetivamente, não só presuntivas mas ilusórias; são coisas que ouvimos nomear, definir, ponderar, justificar em nosso contorno humano; isto é: ouvimos os outros e, sem mais análises, exigências ou reflexão, damos por autênticas, verdadeiras ou verossímeis. Isto, que aqui assinalo pela primeira vez, será o tema dorsal do resto do curso. Deixemo-lo, porém, por hora, nessa sua primeira, singela, vulgar e, — é claro, — confusa aparição.

Se o que digo é certo, — e isso se verá nas próximas lições, — nossa vida normal consiste em ocupar-nos com pragmata  , com coisas ou assuntos e importâncias que não o são propriamente, mas meras interpretações irresponsáveis, dos demais ou nossas mesmas; a saber: sendo a nossa vida um estar sempre fazendo algo com essas pseudo  -coisas, irremediavelmente seria um pseudo-fazer, precisamente aquele que anteriormente nos aparecia com a vulgaríssima, mas profundíssima, expressão de "fazer que se faz"; isto é, costumamos fazer que vivemos; não vivemos efetivamente o nosso autêntico viver, aquele que teríamos de viver se, — desfazendo-nos de todas essas interpretações recebidas dos demais, entre os quais estamos e que se costuma chamar "sociedade", — tomássemos, de quando em quando, enérgico, evidente contato com a nossa vida enquanto realidade radical. Mas esta é, — dissemos, — o que somos em radical solidão. Trata-se, pois, da necessidade que o homem tem, periodicamente, de deixar bem claras as contas do negócio que é a sua vida e pelas quais somente ele é responsável, recorrendo da ótica em que vemos e vivemos as coisas, enquanto somos membros da sociedade, à ótica em que elas aparecem quando nos retiramos à nossa solidão. Na solidão o homem é a sua verdade, — na sociedade tende a ser sua mera convencionalidade ou falsificação. Na realidade autêntica do viver humano, está incluído o dever da frequente retirada para o fundo solitário de si mesmo. Essa retirada, — em que às meras verossimilhanças, (quando não simples embustes e ilusões, em que vivemos), exigimos que nos apresentem suas credenciais de autêntica realidade, — é o que se chama, com um nome amaneirado, ridículo e confusionista, filosofia. A filosofia é retirada, anabasis, acerto de contas de alguém consigo mesmo, na pavorosa nudez de si mesmo, diante de si mesmo. Diante de outro, não estamos, não podemos estar integralmente desnudos: se o outro nos olha, já com o seu olhar mais ou menos nos cobre diante dos nossos próprios olhos. Este é o estranho fenômeno do rubor, em que a carne nua parece cobrir-se com um tecido rosado, a fim de ocultar-se. Da nudez teremos de falar a sério, quando falemos da perturbação.

A filosofia não é, pois, uma ciência,- mas, se se quiser, uma indecência, pois é pôr as coisas e a si mesmo desnudos, em pura carne, — naquilo que puramente são e sou, — nada mais. Por isso é, — se ela é possível, — autêntico conhecimento, — o que não são nunca senso strictu as ciências: meras técnicas úteis para o manejo sutil, o refinado aproveitamento das coisas. Mas a filosofia é a verdade, a terrível e desolada, solitária verdade das coisas. Verdade significa: as coisas postas a descoberto, e isso significa literalmente o vocábulo grego para designar a verdade: a-létheia, aletheúein, isto é, desnudar. Quanto à palavra latina e nossa: veritas, verum, verdade, — deve provir de uma raiz indo-europeia, — ver, — que significou "dizer"; daí, ver-bum, palavra, não um dizer qualquer, porém o mais solene e grave dizer, um dizer religioso em que pomos Deus por testemunha do nosso dizer; em suma, o juramento. Mas o peculiar de Deus é que, ao citá-lo como testemunha nessa nossa relação com a realidade que consiste em dizê-la, isto é, em dizer o que é realmente, Deus não representa um terceiro entre mim e a realidade. Deus não é nunca um terceiro, porque a sua presença é feita de essencial ausência; Deus é o que é presente precisamente como ausente, é o imenso ausente que brilha em tudo presente, — brilha pela ausência, — e seu papel nesse citá-lo como testemunha, que é o juramento, consiste em deixar-nos sós com a realidade das coisas, de modo que, entre estas e nós, não há nada nem ninguém que as vele, cubra, finja, nem oculte; e o não haver nada entre elas e nós — isso é a verdade. O mestre Eckhart  , — o mais genial dos místicos europeus, — chama a Deus, por isso: "o silencioso deserto que é Deus".

É questão diferente a de que esse recorrer da nossa pseudo-vida convencional para a nossa mais autêntica realidade, — em que consiste a filosofia, — requer uma técnica intelectual mais rigorosa que a de qualquer outra ciência. Isso quer somente dizer que a filosofia é, além disso, uma técnica filosófica; mas ela bem sabe que o é somente em segundo lugar e porque necessita disso para tentar aquela sua perpétua e primigênia missão. É certo que, mediado o último século e no princípio deste, a filosofia, com o apelido de positivismo, pretendia ser uma ciência, isto é, queria "fazer de ciência"; não se há, porém, de formalizar a coisa: trata-se apenas de um breve ataque de modéstia que a pobre sofreu!

A filosofia é, pois, a crítica da vida convencional, inclusive, e muito especialmente, da sua vida, — crítica que o homem se vê obrigado a fazer, de quando em quando, levando-a diante do tribunal da sua vida autêntica, da sua inexorável solidão; ou, — também se pode dizer, — é a partida dobrada de que o homem precisa, para que os negócios, assuntos, coisas em que pôs a sua vida, não sejam, em excesso, ilusões; mas, averiguados com a pedra de toque que é a realidade radical, permaneça cada um deles no grau de realidade que lhe corresponda.

Neste curso, estamos citando diante desse tribunal, que é a realidade da autêntica vida humana, todas as coisas que se costumam chamar sociais; a fim de ver o que é que são na sua verdade, a saber, estamos em processo de constante recurso, da nossa vida convencional, habitual, cotidiana e da sua ótica constitutiva, para a nossa realidade primária e para a sua ótica insólita, difícil e severa. Passo a passo temos feito isso, desde a elementaríssima observação sobre a maçã: ao ser trazida diante daquele tribunal, a maçã, que críamos ver, acabou um pouco fraudulenta; existe uma metade dela que nunca nos é presente, ao mesmo tempo que a outra metade, e portanto, a maçã — enquanto realidade patente, presente, vista, — não existe, não é tal realidade. Notávamos logo que a maior porção do nosso mundo sensível não nos é presente; antes, e melhor: aquela porção dele, que em cada instante estava presente, oculta o resto e o deixa só como com-presente, como a sala em que estamos nos tapa a cidade e, não obstante, vivemos esta sala achando-se ela na cidade, e a cidade na nação, e a nação na Terra, etc, etc.

O réu mais importante, porém, trazido a juízo, foi o outro homem, com seu corpo e seus gestos presentes, mas cujo caráter de homem, de outro eu, de outra vida humana, se nos revelou como mera realidade interpretada, como a grande presunção e verossimilhança.

Para o tema genuíno do nosso curso, ele é a realidade decisiva porque, procurando fatos claros, que com suficiente evidência pudéssemos chamar de sociais, vínhamos de fracasso em fracasso, — nem o nosso comportamento com a pedra, nem com a planta tinham o menor ar de socialidade. Ao enfrentarmo-nos com o animal, pareceu que algo assim como relação social, nossa com ele e deles entre si, transparecia. Porque? Porque ao fazermos algo com o animal, nossa ação não tem outro remédio senão contar com que este a prevê, com uma ou outra exatidão, e se prepara para responder a ela. Temos, assim, aqui, um tipo novo de realidade, a saber: uma ação, — a nossa, — da qual faz parte, por antecipação, a ação que o outro ser vai executar, respondendo à nossa; e a ele acontece o mesmo que a mim: é uma curiosa ação que emana, não de um, mas de dois, — do animal junto comigo, é uma autêntica colaboração. Eu prevejo o coice do burro e este coice "colabora" no meu comportamento com ele, convidando-me a guardar distância. Nessa ação, contamos um com o outro, isto é, nos existimos mutuamente ou coexistimos eu e o meu colaborador, o burro. O suposto, como se adverte, é que haja utro ser, do qual sei de antemão que, com tal ou qual probabilidade, vai responder à minha ação. Isso me obriga a antecipar essa resposta no meu projeto de ação, ou, o que é o mesmo, a responder a ela, por minha vez, adiantada-mente. Êle faz a mesma coisa: nossas ações, portanto, se interpenetram: são mútuas ou recíprocas. São propriamente inter-ação. Toda uma linha da tradição idiomática dá à socialidade, ou ao social, esse sentido. Aceitemo-lo, por enquanto.

Não obstante, nossa relação total com o animal é, ao mesmo tempo, limitada e confusa. Isso nos sugeriu a mais natural reserva metódica: procurar outros fatos nos quais a reciprocidade seja mais clara, ilimitada e evidente; a saber, nos quais o outro ser que me responde seja, em princípio, capaz de responder-me tanto como eu a ele. A reciprocidade, será clara, saturada e evidente. Ora, isto só me acontece com o outro; ainda mais: considero-o como o outro precisamente por crer que é meu par e semelhante, na esfera do poder responder. Notem que outro, — alter em latim, — é propriamente o termo de uma parelha e somente de uma parelha. Unus et alter, — o alter é o contraposto, o par, o correspondente ao unus. Por isso a relação do unus, — eu, — com o alter, — outro, — se chama estupendamente em nossa língua alternar. Dizer que não alternamos com alguém é dizer que não temos com ele "relação social". Não alternamos com a pedra nem com a hortaliça.

Temos, assim, que o homem, à parte daquele que eu sou, nos aparece como o outro, e isto quer dizer, — interessa-me que se tome em todo o seu rigor, — o outro quer dizer: aquele com o qual posso e tenho, — mesmo que não queira, — de alternar, pois até no caso em que eu preferisse que o outro não existisse, porque o detesto, advém que eu irremediavelmente existo para ele e isto me obriga, quer queira quer não, a contar com ele e com as suas intenções a meu respeito, que talvez sejam avessas. O mútuo "contar com", a reciprocidade, é o primeiro fato a nos permitir que o qualifiquemos de social. Se essa qualificação é definitiva ou não, fique para o ulterior desenvolvimento de nossas meditações. Mas a reciprocidade de uma ação, a interação, somente é possível porque o outro é como eu, em certos caracteres gerais. Tem um eu que é nele o que o meu eu é em mim, — ou, como dizemos em espanhol: "tiene su alma en su almario", (N. do T.: a expressão, que traduzida literalmente seria: "tem sua alma no seu armário", significa "ter aptidão ou faculdade de fazer alguma coisa") isto é, pensa, sente, quer, tem os seus fins, cuida do que é seu, etc, etc. como eu. Entenda-se, porém, que descubro tudo isso porque, nos seus gestos e movimentos, noto que me responde, que me reciproca. Assim, teremos que o outro, o Homem, me aparece originariamente como o reciprocante e nada mais. Tudo mais que o homem acabe sendo é secundário a esse atributo e vem depois. Conste, pois: ser o outro não representa um acidente ou aventura que possa ou não acontecer ao Homem; antes, é um atributo originário. Eu, na minha solidão, não poderia chamar-me com um nome genérico tal como "homem". A realidade que este nome representa só me aparece quando há outro ser que me responde ou me reciproca. Muito bem o diz Husserl  : "o sentido do termo homem implica uma existência recíproca de um para outro; portanto, uma comunidade de homens, uma sociedade". E vice-versa: "é igualmente claro que os homens não podem ser apreendidos senão achando-se outros homens (realmente ou potencialmente) em torno deles (Méditations Cartésiennes, Paris, 1931, pág. 110). Acrescento eu: falar do homem fora de uma sociedade e alheio a uma sociedade é dizer algo contraditório e sem sentido por si mesmo. Temos aqui a explicação das minhas reservas quando, falando da vida como realidade radical e radical solidão, dizia que não devia falar de homem, mas de X ou do vivente. Logo veremos porque também era inadequado chamar-lhe "eu". Mas era mister facilitar a compreensão daquela ótica radical. O homem não aparece na solidão, embora sua verdade última seja a sua solidão: o homem aparece na socialidade como o Outro, alternando com o Um, como o reciprocante.

A língua nos revela que houve um tempo em que os homens não distinguiam, ao menos genericamente, os seres humanos daqueles que o não são, já que lhes parecia serem entendidos por estes e receberem resposta deles. A prova está em que todas as línguas indo-europeias usam de expressões correspondentes à frase espanhola: ’Cómo se llama esa cosa?" — Comment est-ce que l’on appelle ça? — Pelo visto, quando se sabe o nome de uma coisa, já se pode chamar essa coisa; ela percebe o nosso chamado e acode, isto é, põe-se em movimento, reage à nossa ação de. nomeá-la. Ap-pello é "fazer mover-se algo," e igualmente calo em latim, kion e kelomai em grego. No nosso "chamar" pervive o clamare, que é o mesmo calo. Exatamente os mesmos valores semânticos: "chamar" e "fazer mover-se" contém o vocábulo alemão heissen.

Por hora é mister que corrijamos um possível erro de perspectiva que a ordem irremediável do nosso inventário, sobre o que há no mundo, corre o risco de ocasionar. Começamos por analisar a nossa relação com a pedra, prosseguimos com a planta e logo com o animal. Somente depois disso nos enfrentamos com o fato de que nos apareceu o Homem como o Outro. O erro consistiria em que essa espécie de ordem cronológica, a que nos levou a boa ordem analítica, pretenda significar a ordem real em que os conteúdos do nosso mundo nos vão aparecendo. Essa ordem real é precisamente a inversa. O que aparece primeiro a cada um, na sua vida, são os outros homens. Porque todo "cada um" nasce numa família e esta nunca existe isolada,- a ideia de que a família é a célula social é um erro que rebaixa a maravilhosa instituição humana que é a família, maravilhosa, embora seja incômoda, pois, não há coisa humana que, ademais, não seja incômoda. Nasce, assim, o vivente humano entre homens e o primeiro que encontra são eles,- isto é: o mundo em que vai viver começa por ser um "mundo composto de homens," no sentido que a palavra "mundo" tem, quando falamos de "um homem do mundo", de que "é preciso ter mundo", alguém tem "pouco mundo". O mundo humano precede, em nossa vida, ao mundo animal, vegetal e mineral. Vemos todo o resto do mundo como através das grades de uma prisão, através do mundo de homens em que nascemos e em que vivemos. E, como uma das coisas que mais intensa e frequentemente fazem esses homens, em nosso imediato contorno, em sua atividade reciprocante, é falarem uns com os outros e comigo, com o seu falar injetam em mim as suas ideias sobre todas as coisas e eu vejo, em princípio, o mundo todo através dessas ideias recebidas.

Isso significa que a aparição do Outro é um fato que fica sempre como nas costas da nossa vida, porque, quando nos surpreendemos pela primeira vez vivendo, já nos achamos, não somente com os outros e no meio dos outros, mas habituados a eles. Isso nos leva a formular este primeiro teorema social: o homem está a nativitate aberto ao outro que não é ele, ao ser estranho; ou, com outras palavras: antes de que cada um de nós percebesse a si mesmo, já havia tido a experiência básica de que existem aqueles que não são "eu", os Outros; isto é, o Homem ao estar a nativitate aberto ao outro, ao alter que não é ele, é, a nativitate, queira ou não, goste ou não goste, altruísta. É mister, porém, entender essa palavra e toda essa sentença sem acrescentar-lhes o que nelas não está dito. Quando se afirma que o homem está a nativitate e, portanto, sempre aberto ao Outro, a saber, disposto no seu fazer, a contar com o Outro, enquanto estranho e diferente dele, não se determina se está aberto favorável ou desfavoravelmente. Trata-se de algo prévio ao bom ou mau talante em relação ao outro. O roubar ou assassinar o outro implica estar previamente aberto a ele, não mais nem menos do que para beijá-lo ou por ele sacrificasse.

O estar aberto ao outro, aos outros, é um estado permanente e constitutivo do Homem, não uma ação determinada, a respeito deles. Esta ação determinada, — o fazer algo com eles, quer para eles, quer contra eles, — supõe esse estado prévio e inativo de abertura. Esta não é ainda, propriamente, uma "relação social", porque não se determina ainda em nenhum ato concreto, é a simples coexistência, matriz de todas as possíveis relações sociais". é a simples presença no horizonte da minha vida, — presença que é, sobretudo, mera com-presença do Outro em singular ou no plural. Nela, não somente se condensou o meu comportamento com ele, em alguma ação, mas, — e esta advertência importa muito, — também se concretizou o meu puro conhecimento do Outro. Este é, para mim, em princípio, somente uma abstratíssima realidade, "o capaz de responder aos meus atos sobre ele". é o homem abstrato.

Desta minha relação com o outro partem duas linhas diferentes, embora se ligue uma à outra, de progressiva concretização ou determinação: uma consiste em que vou, pouco a pouco, conhecendo mais e melhor, o outro; vou decifrando mais em minúcia a sua fisionomia, os seus gestos, os seus atos. A outra consiste em que a minha relação com ele se torna ativa, em que eu atuo sobre ele e ele sobre mim. De fato, aquela primeira linha só costuma progredir do fio desta.

Comecemos, pois, com esta segunda.

Se diante do outro faço um gesto demonstrativo, assinalando com o indicador um objeto que há no meu contorno, e se vejo que o outro avança para o objeto, o apanha e mo entrega, isto me faz inferir que no mundo somente meu e no mundo somente dele parece haver, não obstante, um elemento comum: aquele objeto que, com ligeiras variantes, a saber, a figura de tal objeto visto em sua perspectiva e na minha, existe para ambos. E como isto acontece com muitas coisas, — embora, às vezes, eu e ele cometamos erros ao supor nossa comunidade na percepção de certos objetos, — e como acontece não somente com um outro, mas com muitos outros homens, em mim se arma a ideia de um mundo mais além do meu e do seu, um mundo presuntivo inferido, que é comum de todos. Isto é o que chamamos o "mundo objetivo", diante do mundo de cada um, em sua vida primária. Esse mundo comum ou objetivo se vai precisando em nossas conversas, as quais versam principalmente sobre coisas que nos parecem ser aproximadamente comuns. Certamente, com alguma frequência advirto que a nossa coincidência sobre tal ou qual coisa era ilusória: um pormenor da conduta dos outros, de repente, me revela que eu vejo as coisas, pelo menos algumas, — bastantes, — de outra maneira; e isso me desgosta e me faz re-submergir-me em meu mundo próprio e exclusivo, no mundo primário da minha solidão radical. Não obstante, é suficiente a dose de coincidências consolidadas, para que nos seja possível entendermo-nos sobre as grandes linhas do mundo, para que seja possível a colaboração nas ciências e um laboratório na Alemanha aproveite observações feitas num laboratório da Austrália. Assim vamos construindo, — porque se trata, não de algo patente, mas de uma construção ou interpretação, — a imagem de um mundo que, ao não ser nem somente meu, nem somente teu, mas, em princípio, de todos, será o mundo. Isto demonstra o grande paradoxo: não é o mundo, único e objetivo, que torna possível que eu coexista com os outros homens; mas, ao contrário, a minha socialidade ou relação social com os outros homens é que torna possível o aparecimento, entre mim e eles, de algo como um mundo comum e objetivo, aquilo a que Kant   chamava já o mundo "allgemeingultig", universalmente válido, isto é, para todos, com o qual se referia aos sujeitos humanos e no qual fundamentava, em sua unanimidade, a objetividade ou realidade do mundo. Este é o resultado da minha advertência anterior, quando dizia que aquela porção do meu mundo, que primeiro me aparece, é o grupo de homens entre os quais nasço e começo a viver, a família e a sociedade a que a minha família pertence; isto é, um mundo humano através do qual e influenciado pelo qual me aparece o resto do mundo, é claro que Kant, e Husserl, — que deu a esse raciocínio a sua forma mais clássica e depurada, — utopizam bastante, como todos os idealistas, essa unanimidade. A verdade é que nós, os homens, somente coincidimos na visão de certos grossos e toscos componentes do mundo ou, para enunciar o meu pensamento mais ajustadamente: a lista de coincidências sobre as coisas, entre os homens, e a lista das suas discrepâncias irão longe, compensando-se uma com a outra. Mas para que o raciocínio idealista de Kant e de Husserl seja verídico basta aquele torso de coincidências, já que esse torso é suficiente para que, de fato, acreditemos que todos os homens vivem num mesmo e único mundo. Esta é a atitude que podemos chamar natural, normal e cotidiana em que vivemos e, por isso, por viver com os outros, em um presuntivo mundo único, portanto, nosso, nosso viver é conviver.

Mas para que haja con-vivência é mister sair daquele simples estar aberto ao outro, ao alter, e que chamávamos altruísmo básico do homem. Estar aberto ao outro é algo passivo: é preciso que, sobre a base de uma abertura, eu atue sobre ele e ele me responda ou me reciproque. Não importa o que seja que façamos-, tratar eu de uma ferida dele ou dar-lhe um soco, ao qual corresponda e reciproque com outro. Num caso e noutro, vivemos juntos e em reciprocidade com respeito a algo. A palavra vivemos em seu "mos" expressa muito bem esta nova realidade que é a relação "nós": unus et alter, eu e o outro juntos fazemos algo e, ao fazê-lo, nos somos. Se, ao estar aberto ao outro, chamei altruismo; este sermo-nos mutuamente deverá chamar-se nos-trismo ou nostridade. Ela é a primeira forma de relação concreta com o outro e, assim, a primeira realidade social, — se se quer empregar essa palavra em seu sentido mais vulgar que é, ao mesmo tempo, o de quase todos os sociólogos, entre eles alguns dos melhores, como Max Weber.

Com a rocha não há nostridade. Com o animal, existe uma muito limitada, confusa, difusa e problemática nostridade.

Conforme convivemos e somos a realidade "nós", — eu e ele, isto é, o Outro, — nos vamos conhecendo. Isto significa que o Outro, — até agora um homem indeterminado, do qual sei somente que é, por seu corpo, o que chamo um "semelhante", portanto: alguém capaz de reciprocar-me e com cuja resposta consciente tenho de contar, — conforme o vou tratando, por bem ou por mal, ele se vai precisando para mim, e o vou distinguindo dos outros OUTROS que conheço menos. Esta maior intensidade de trato implica proximidade. Quando esta proximidade de mútuo trato e conhecimento chega a uma forte dose, chamamo-la intimidade. O outro se me faz próximo e inconfundível. Não é outro qualquer, indiscernível dos demais, é o Outro enquanto único. Então, o outro é para mim TU. Conste, pois: TU não é, sem mais nada, um homem, mas um homem único, inconfundível.

Dentro do âmbito de convivência que abre a relação "nós", é onde me aparece o tu, o indivíduo humano único. Tu e eu, eu e tu atuamos um sabre o outro em frequente interação de indivíduo a indivíduo, ambos únicos reciprocamente. Uma das coisas que fazemos e que é a mais típica reciprocidade e nostridade é falar. E uma das coisas de que falamos é de ele ou de eles, isto é, de outros que não estão contigo e comigo na relação "nós". Seja em absoluto, seja ocasionalmente, agora e para isto, ele ou eles são os que permanecem fora desta proximidade que é a nossa relação. Temos aqui uma peculiaridade da língua espanhola, digna de ser meditada, como tudo que pertence à língua vulgar. Os portugueses e os franceses em vez de "nosotros" dizem nós e nous, com o que expressam simplesmente a convivência e proximidade entre aqueles aos quais se referem o nós e o nous. Mas, nós os espanhóis dizemos "nosotros" e a ideia expressada é de sobra diferente. As línguas têm, para expressar comunidades e coletividades, nostridades, o plural. Muitas línguas, porém, não se contentam com uma só forma de plural. Há o plural inclusivo, que se limita, como o nós e o nous, a incluir; mas, diante dele, existe o plural exclusivo, que inclui vários ou muitos, mas faz constar que exclui outros. Pois bem, o nosso plural "nosotros" é exclusivista. Quer dizer que não enunciamos, sem mais nada, a pura comunidade do eu e do tu e, talvez, outros tus, mas uma comunidade entre ambos ou mais do que ambos, eu, tu e tais tus mais, comunidade em que tu e eu formamos certa unidade coletiva: diante, fora e, de certo modo, contra outros. No "nosotros" nos declaramos muito unidos mas, sobretudo, nos reconhecemos como outros diferentes dos Outros, de Eles.

Já advertimos o altruísmo básico do homem, isto é, como está ele a nativitate aberto do Outro. Logo, vimos que o Outro entra comigo na relação Nosotros, dentro da qual o outro homem, o indivíduo indeterminado se precisa em indivíduo único e é o TU, com o qual falo do distante, que é ele, a terceira pessoa. Mas agora falta descrever o meu forcejar com o TU, em choque com o qual faço o mais estupendo e dramático descobrimento: descubro-me a mim como sendo eu e… nada mais do que eu. Contra o que se poderia crer, a primeira pessoa é a última que aparece.


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