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Encarnação

Henry (E) – Objeto da fenomenologia — a questão do "aparecer".

I. A inversão da fenomenologia

domingo 12 de setembro de 2021

HENRY, Michel. Encarnação: uma filosofia da carne. Tr. Carlos Nougué. São Paulo: É Realizações, 2014.

Tradução

O título “fenomeno-logia” se entende a partir de seus dois constituintes gregos – phainomenon e Logos – de sorte que, tomados literalmente, a palavra designa um saber concernente ao fenômeno, uma ciência deste. Refletindo sobre esta definição muito simples, pode-se adiantar que o primeiro termo, o fenômeno, qualifica o objeto desta ciência, enquanto o segundo, o Logos, indica o modo de tratamento que convém aplicar a este objeto, o método a seguir para adquirir um conhecimento adequado. Objeto e método da fenomenologia, eis aquilo aventado no título mesmo que se dá.

Tudo isso sendo dito em grego, algumas precisões se impõem. No famoso § 7 de Sein und Zeit   (Max Niemeyer, 1941, p. 28) Heidegger no-los oferece. Derivado do verbo phainesthai, que significa se mostrar, o fenômeno designa “aquilo que se mostra, o se mostrando, o manifesto” (”das was sich zeigt, das Sichzeigende, das Offenbare”). Ora esta passagem de aparência anódina do verbo ao substantivo opera uma substituição decisiva embora oculta. Só sua consideração nos põe face ao verdadeiro objeto da fenomenologia. Este não é precisamente o fenômeno, aquilo que aparece (”das was sich zeigt”), mas o ato de aparecer (phainesthai). Este é o objeto próprio da fenomenologia que a diferencia imediatamente de todas as outras ciências. Essas ocupam-se com efeito dos múltiplos fenômenos considerados cada vez segundo seu conteúdo específico, enquanto fenômenos químicos, biológicos, históricos, jurídicos… fenômenos aos quais correspondem ciências apropriadas: química, biologia, história… A fenomenologia ao contrário se dá por tarefa o estudo daquilo que estas diversas ciências não tomam jamais explicitamente em consideração: não tanto o conteúdo particular destes diversos fenômenos, mas sua essência, aquilo que faz de cada um deles um fenômeno: o aparecer no qual eles se mostram a nós – este aparecer enquanto tal.

Certamente, o fenômeno, por um lado seu conteúdo, por outro o fato que ele aparece, vão em conjunto e parecem ser apenas um. Razão pela qual o pensamento ordinário ou científico não se preocupa em dissociá-los. A taça posada sobre a mesa se mostra a mim. O que não impede: nem a mesa nem a taça não têm elas mesmas a capacidade de se aportarem em sua condição de “fenômenos” – de sorte que, no seio mesmo do fenômeno, por um lado seu conteúdo, por outro o fato que aparece, diferem no princípio.

Foi Husserl   que introduziu esta distinção essencial sobre a qual vai repousar a fenomenologia. Estudando o fluxo dos vividos de consciência que se escoam temporalmente em nós, ele os considera não como simples objetos, mas como “objetos no Como”Campo Oculto. “Objetos no Como” quer dizer: objetos considerados não mais em seu conteúdo particular mas na maneira segundo a qual eles se dão a nós e nos aparecem – no “Como” de sua dação.

A análise que forma o contexto da proposição de Husserl nos ajuda a compreendê-la. Na audição de uma sinfonia musical, um som ou uma fase sonora deste som se dão a mim como uma fase esperada – e logo futura – ou como fase presente, ou ainda como uma fase passada. A bem dizer, a mesma fase sonora se dá sucessivamente a mim dessas três maneiras, como a vir, como presente e como passada. De sorte que, a distinção introduzida por Husserl, entre o conteúdo que permanece idêntico (a mesma nota lá de um violão) e seus modos de aparecer que se modificam enquanto ele se escoa temporalmente, é perfeitamente fundada.

A distinção entre conteúdo do fenômeno e a maneira pelo qual ele nos aparece nos permite apreender mais claramente o verdadeiro objeto da fenomenologia. Desde então abre-se um campo novo e infinito de pesquisa. Se desejamos ter a medida de sua amplidão, basta passar em revista uma série de termos equivalentes dos quais nos servimos desde o início deste ensaio sem ainda notar sua referência a um mesmo objeto, aquele da fenomenologia precisamente. Ei-los sob sua forma verbal: se dar, se mostrar, advir à condição de fenômeno, se desvelar, se descobrir, aparecer, se manifestar, se revelar. Sob sua forma substantiva: dação, mostra, fenomenalização, desvelamento, descobrimento, aparição, manifestação, revelação.

Ora não pode nos escapar que estas palavras chaves da fenomenologia são também, em uma grande medida, aquelas da religião – ou da teologia. Uma outra palavra, não das menores posto que conduz o pensamento filosófico desde a Grécia, remete também ao objeto verdadeiro da fenomenologia, a verdade. Existem duas maneiras de entender a verdade, uma pré-filosófica, pré-fenomenológica, ingênua por assim dizer: “ verdade” designa então aquilo que verdadeiro. Aquilo que é verdadeiro, é que o céu se cobre de nuvens e que vai talvez chover. O que é verdadeiro, é ainda que 2 + 3 = 5. Só que aquilo que é verdadeiro desta maneira – o estado do céu ou a proposição aritmética – deve primeiramente mostrar-se a mim. Só é verdadeiro em um sentido segundo e pressupõe uma verdade originária, uma manifestação primeira e pura – um poder desvelante sem o qual nenhum desvelamento se produzirá, sem o qual, por conseguinte nada daquilo que verdadeiro em um sentido secundário, daquilo que é desvelado, não seria possível. É mérito de Heidegger ter dado novamente ao conceito filosófico tradicional de verdade uma significação fenomenológica explicita. Da verdade sempre mais ou menos confundida com a coisa verdadeira, ele distingue muito corretamente aquilo que permite precisamente a esta coisa ser verdadeira, quer dizer mostrar-se a nós a título de fenômeno: o puro ato de aparecer, aquilo que ele denomina “o fenômeno o mais originário da verdade”Campo Oculto.

Tão decisivo seja ele, o trajeto que conduziu a fenomenologia, através das análises prestigiosas de Husserl e de Heidegger, ao fenômeno o mais originário da verdade só nos põe ainda em presença de um problema. Que o aparecer puro, que a manifestação pura, que a fenomenalidade pura seja a condição de todo fenômeno possível – isto pelo qual ele se mostra a nós e fora do qual nada pode mostrar-se, de sorte que não teria nenhum fenômeno de qualquer espécie –, isto põe sem dúvida este aparecer no coração da reflexão fenomenológica como seu tema único ou seu verdadeiro objeto, mas não diz ainda de maneira nenhuma em que este puro aparecer consiste.

No § 44, a análise de Heidegger nos reconduziu da verdade segunda – aquilo que é verdadeiro, aquilo que é desvelado – à verdade originária – aquilo que se desvela, o desvelamento. No entanto, a verdade originária não apresentada somente, de maneira ainda especulativa, como a condição da verdade segunda – o desvelamento como a condição do desvelado –, o aparecer como a condição de tudo aquilo que aparece. A verdade originária é explicitamente designada como um fenômeno, “o fenômeno o mais originário da verdade”. Aquilo que está implicado em tal proposição, é que a verdade originária é ela mesmo “fenômeno”. Mais que esta verdade, é seu fenômeno em fim de contas que é “o mais originário”. O que quer dizer: o aparecer não se limita de modo algum a fazer aparecer aquilo que nele aparece, ele deve aparecer ele mesmo enquanto aparecer puro. Com efeito, nada jamais aparecerá se seu aparecer (o puro fato de aparecer, o aparecer puro) não aparecesse ele mesmo e inicialmente. A mesa, a taça posada sobre ela, dizíamos, são incapazes de aparecer por seu próprio fato, por sua própria força, em razão de sua natureza ou de sua substância própria, que é matéria cega. É portanto um poder diferente delas que as faz aparecer. Quando elas efetivamente aparecem, oferecendo-se a nós a título de “fenômenos”, nada mudou quanto a esta impotência que lhes é congênita. O aparecer que brilha em todo fenômeno é o fato do aparecer e dele apenas; é este aparecer puro que aparece, um aparecer do aparecer ele mesmo, seu auto-aparecer.

Se nos indagamos então a fenomenologia histórica sobre este último, sobre a fenomenalidade do fenômeno o mais originário da verdade – sobre aquilo que faz que o aparecer puro apareça enquanto tal –, sobre aquilo que, neste aparecer puro, constitui precisamente sua própria aparição, sua substância fenomenológica pura, sua matéria incandescente, por assim dizer, naquilo que ela tem de incandescente, então podemos distinguir dois momentos nos textos oferecidos para nossa análise. Em um primeiro momento, depara-se com uma não-resposta. A aparição, a verdade, ou seu fenômeno originário, a manifestação, a revelação, a fenomenalidade, são afirmadas sem que se diga em que elas consistem, sem o problema seja posto. As pressuposições da fenomenologia permanecem totalmente indeterminadas.

Original

L’intitulé « phénoméno-logie » s’entend à partir de ses deux constituants grecs – phainomenon et Logos – en sorte que, pris à la lettre, le mot désigne un savoir concernant le phénomène, une science de celui-ci. En réfléchissant sur cette définition très simple, on peut avancer que le premier terme, le phénomène, qualifie l’objet de cette science, tandis que le second, le Logos, indique le mode de traitement qu’il convient d’appliquer à cet objet, la méthode à suivre pour en acquérir une connaissance adéquate. Objet et méthode de la phénoménologie, voilà ce qui est avancé dans l’intitulé même qu’elle se donne.

Tout cela étant dit en grec, quelques précisions s’imposent. Dans le fameux § 7 de Sein und Zeit7. Heidegger nous les fournit. Dérivé du verbe phainesthai, qui signifie se montrer, le phénomène désigne « ce qui se montre, le se montrant, le manifeste » (« das was sich zeigt, das Sichzeigende, das Offenbare »). Or ce passage en apparence anodin du verbe au substantif opère une substitution décisive bien que cachée. Seule sa prise en compte nous place en face du véritable objet de la phénoménologie. Celui-ci n’est précisément pas le phénomène, ce qui apparaît (« das was sich zeigt »), mais l’acte d’apparaître (phainesthai). C’est cet objet propre de la phénoménologie qui la différencie immédiatement de toutes les autres sciences. Celles-ci s’occupent en effet des multiples phénomènes considérés chaque fois selon leur contenu spécifique, en tant que phénomènes chimiques, biologiques, historiques, juridiques… phénomènes auxquels correspondent autant de sciences appropriées : chimie, biologie, histoire… La phénoménologie au contraire se donne pour tâche l’étude de ce que ces diverses sciences ne prennent jamais explicitement en considération : non plus le contenu particulier de ces divers phénomènes, mais leur essence, ce qui fait de chacun d’eux un phénomène : l’apparaître en lequel ils se montrent à nous – cet apparaître en tant que tel.

Assurément, dans le phénomène, son contenu d’une part, le fait qu’il apparaît d’autre part, vont ensemble et semblent ne faire qu’un. C’est la raison pour laquelle la pensée ordinaire ou scientifique ne se préoccupe pas de les dissocier. La tasse posée sur la table se montre à moi. N’empêche : ni la table ni la tasse n’ont par elles-mêmes la capacité de s’apporter dans leur condition de « phénomènes » – en sorte que, au sein même du phénomène, son contenu d’une part, le fait qu’il apparaît d’autre part, diffèrent dans le principe.

C’est Husserl qui a introduit cette distinction essentielle sur laquelle va reposer la phénoménologie. Étudiant le flux des vécus de conscience qui s’écoulent temporellement en nous, il les considère non comme de simples objets, mais comme « des objets dans le Comment » (« Gegenstande im Wie8 »). « Objets dans le Comment » veut dire : objets considérés non plus dans leur contenu particulier mais dans la manière selon laquelle ils se donnent à nous et nous apparaissent – dans le « Comment » de leur donation.

L’analyse qui forme le contexte de la proposition husserlienne nous aide à la comprendre. Dans l’audition d’une symphonie musicale, un son ou une phase sonore de ce son se donnent à moi comme une phase attendue – et donc future – ou comme phase présente, ou encore comme une phase passée. A vrai dire, la même phase sonore se donne successivement à moi de ces trois façons, comme à venir, comme présente et comme passée. De la sorte, la distinction introduite par Husserl, entre le contenu qui demeure identique (le même la d’un violon) et ses modes d’apparaître qui se modifient tandis qu’il s’écoule temporellement, est parfaitement fondée.

La distinction entre le contenu du phénomène et la manière dont il nous apparaît nous permet de saisir plus clairement l’objet véritable de la phénoménologie. Dès lors s’ouvre un champ nouveau et infini de recherche. Si nous voulons prendre la mesure de son ampleur, il nous suffira de passer en revue une série de termes équivalents dont nous nous sommes servi depuis le début de cet essai sans remarquer encore leur référence à un même objet, celui de la phénoménologie précisément. Les voici sous leur forme verbale : se donner, se montrer, advenir dans la condition de phénomène, se dévoiler, se découvrir, apparaître, se manifester, se révéler. Sous leur forme substantive : donation, monstration, phénoménalisation, dévoilement, découvrement, apparition, manifestation, révélation.

Or il ne peut nous échapper que ces mots clés de la phénoménologie sont aussi, dans une large mesure, ceux de la religion – ou de la théologie. Un autre mot, non des moindres puisqu’il conduit la pensée philosophique depuis la Grèce, renvoie lui aussi à l’objet véritable de la phénoménologie, celui de vérité. Il y a en effet deux façons d’entendre la vérité, l’une pré-philosophique, pré-phénoménologique, naïve pour tout dire : « vérité » désigne alors ce qui est vrai. Ce qui est vrai, c’est que le ciel se couvre et qu’il va peut-être pleuvoir. Ce qui est vrai, c’est encore que 2 + 3 = 5. Seulement ce qui est vrai de cette façon – l’état du ciel ou la proposition arithmétique – doit d’abord se montrer à moi. Il n’est vrai qu’en un sens second et présuppose une vérité originaire, une manifestation première et pure – un pouvoir dévoilant sans lequel aucun dévoilement ne se produirait, sans lequel, par conséquent rien de ce qui est vrai en un sens second, de ce qui est dévoilé, ne serait possible. C’est le mérite de Heidegger d’avoir redonné au concept philosophique traditionnel de vérité une signification phénoménologique explicite. De la vérité toujours plus ou moins confondue avec la chose vraie, il distingue très justement ce qui permet précisément à cette chose d’être vraie, c’est-à-dire de se montrer à nous à titre de phénomène : le pur acte d’apparaître, ce qu’il appelle « le phénomène le plus originaire de la vérité » (« das ursprünglichste Phänomen der Wahrheit », op. cit., p. 220-221).

Si décisif soit-il, le trajet qui a conduit la phénoménologie, à travers les analyses prestigieuses de Husserl et de Heidegger, au phénomène le plus originaire de la vérité ne nous place encore qu’en présence d’un problème. Que l’apparaître pur, que la manifestation pure, que la phénoménalité pure soit la condition de tout phénomène possible – ce en quoi il se montre à nous et en dehors de quoi rien ne peut se montrer, en sorte qu’il n’y aurait aucun phénomène d’aucune sorte –, cela place sans doute cet apparaître au cœur de la réflexion phénoménologique comme son thème unique ou son véritable objet, mais ne dit encore en aucune façon en quoi ce pur apparaître consiste.

Au § 44, l’analyse heideggérienne nous a reconduit de la vérité seconde – ce qui est vrai, ce qui est dévoilé – à la vérité originaire – ce qui dévoile, le dévoilement. Toutefois, la vérité originaire n’est pas présentée seulement, de façon encore spéculative, comme la condition de la vérité seconde – le dévoilement comme la condition du dévoilé –, l’apparaître comme la condition de tout ce qui apparaît. La vérité originaire est explicitement désignée comme un phénomène, « le phénomène le plus originaire de la vérité ». Ce qui est impliqué dans une telle proposition, c’est que la vérité originaire est elle-même « phénomène ». Plus que cette vérité, c’est son phénomène en fin de compte qui est « le plus originaire ».

Ce qui veut dire : l’apparaître ne se limite nullement à faire apparaître ce qui apparaît en lui, il doit apparaître lui-même en tant qu’apparaître pur. En effet, rien n’apparaîtrait jamais si son apparaître (le pur fait d’apparaître, l’apparaître pur) n’apparaissait lui-même et d’abord. La table, la tasse posée sur elle, disions-nous, sont incapables d’apparaître de leur propre fait, par leur propre force, en raison de leur nature ou de leur substance propre, qui est de la matière aveugle. C’est donc un pouvoir différent d’elles qui les fait apparaître. Quand elles apparaissent effectivement, s’offrant à nous à titre de « phénomènes », rien n’est changé à cette impuissance qui leur est congénitale. L’apparaître qui brille en tout phénomène est le fait de l’apparaître et de lui seul ; c’est cet apparaître pur qui apparaît, un apparaître de l’apparaître lui-même, son auto-apparaître.

Si nous interrogeons alors la phénoménologie historique sur ce dernier, sur la phénoménalité du phénomène le plus originaire de la vérité – sur ce qui fait que l’apparaître pur apparaît en tant que tel –, sur ce qui, dans cet apparaître pur, constitue précisément sa propre apparition, sa substance phénoménologique pure, sa matière incandescente, pour ainsi parler, en ce qu’elle a d’incandescent, alors nous pouvons distinguer deux moments dans les textes offerts à notre analyse. Dans un premier moment, on se trouve en présence d’une non-réponse. L’apparition, la vérité, ou son phénomène originaire, la manifestation, la révélation, la phénoménalité, sont affirmées sans qu’on dise en quoi elles consistent, sans que le problème soit posé. Les présuppositions de la phénoménologie demeurent totalement indéterminées.


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