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Gelven (1972:180-181) – “impessoalmente-si-mesmo” [Man-selbst]

segunda-feira 21 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

[…] discurso genuíno é contrastado com a “tagarelice”, a preocupação é contrastada com a curiosidade e o si é contrastado com o “impessoalmente-si-mesmo” (Man-selbst). Como o termo geral que caracteriza todos os fracassos do si em se realizar, deve-se mencionar o “impessoalmente-si-mesmo”, pois é a partir do envolvimento do “impessoalmente-si-mesmo” que a consciência busca despertar o si para sua autenticidade na culpa (Schuld).

Heidegger não é, de forma alguma, a primeira pessoa a refletir sobre a capacidade da banalidade e da irreflexão de nos privar de qualquer consciência sólida de nós mesmos. A maioria das pessoas inteligentes fica atônita com a facilidade com que a monotonia e o esmagamento da existência cotidiana e sem excitação seduzem a pessoa a uma vida acrítica. A habilidade de Heidegger não está tanto em sua capacidade de retratar esse cotidiano — embora nesse aspecto suas realizações sejam impressionantes —, mas o que é mais notável é sua interpretação de todos esses modos de experiência como consistindo precisamente na distração da consciência de si mesma. A própria “ocupação” do impessoalmente-si-mesmo é tão penetrante, suas exigências de atenção são tão implacáveis, sua trivialidade é tão calmante, que para escapar de sua influência é necessário que a consciência seja vigorosa. O termo de Heidegger que caracteriza essa preguiça da autoconsciência é o “impessoal”, das Man, o sujeito impessoal. Deve-se enfatizar que o “impessoal” (ou o “um” impessoal, como na frase: “Não se faz isso!”) é um aspecto do si. O termo “impessoal” não se refere a outros seres humanos (pois podemos nos relacionar autenticamente com outros seres humanos), nem sugere aqueles que são diferentes de nós mesmos. É o aspecto de nós mesmos que procura constantemente evitar entrar em contato com nossa própria realidade. O impessoalmente-si-mesmo, portanto, tagarela em vez de falar, é “interessado” em vez de realmente preocupado, é entretido em vez de desafiado. Ao lidar com assuntos sérios como a morte, o “impessoalmente-si-mesmo” não a ignora completamente, mas a trata de forma trivial (pois, como Heidegger ressalta, o “impessoal” não morre, apenas as pessoas reais morrem: o “impessoal” continua sem ser perturbado).

Em sua análise do “impessoalmente-si-mesmo”, o objetivo de Heidegger não é advertir contra essas atitudes, pois a maioria das pessoas honestas está suficientemente [181] ciente de tais perigos. Seu objetivo é revelar seu verdadeiro caráter. Primeiro, sua localização na consciência é importante: é uma parte do si. Em segundo lugar, sua função é importante: distrair-nos da tarefa de estarmos cientes de nosso próprio si. Ao enfatizar essas características, Heidegger mostrou as dimensões essenciais do que significa fracassar na existência. Eu falho em existir ao me deixar distrair de meu si como consciente e único; ao permitir que minha própria aceitação da “opinião comum” dite minhas atitudes em relação a mim mesmo e à minha vida; ao permitir que a escolha “simplesmente aconteça” e nunca escolher de fato. Em resumo, posso fracassar na existência se não me permitir ser si mesmo. Dizer isso obviamente pressupõe que não estamos falando do si como um tipo de coisa, pois, nesse caso, nunca se poderia “não ser” si mesmo. Em vez disto, estamos falando do si como formas de ser, e uma caracterização muito real dessas formas de ser é ser negativamente, ou seja, sem sucesso ou em fracasso. O que é muito importante nisto é que a distinção entre existência autêntica e inautêntica permite que a própria existência seja pensada, aberta ao escrutínio analítico, interpretando esses modos à luz do que significa ser. O “impessoalmente-si-mesmo” é o fracasso do si em ser um si. Somente devido a essa capacidade de fracasso é que pode haver algo como a consciência, que busca despertar a existência humana para a realização de si mesma. Esta deve estar ciente do fato de que ela mesma é a base de tal fracasso: a consciência desperta a pessoa para a percepção da culpa.


Ver online : Michael Gelven


GELVEN, Michael. Winter, Friendship, and Guilt. The Sources of Self-Inquiry. New York: Harper & Row, 1972