Pertence a esse passo, na Modernidade e Contemporaneidade, o fenômeno da multiplicação, da proliferação das ciências, que, a cada dia, definem um novo campo, um novo setor ou um novo objeto e fazem-se, ao mesmo tempo, as respectivas “tematizadoras” ou “objetivadoras”(= sujeito) desse novo objeto. Em cada uma dessas novas ciências, em cada novo “sujeito teórico”, porém, concretiza-se o ideal cartesiano da verdade como certeza, quer dizer, como objetivação (representação subjetiva) e segurança — ergo auto-asseguramento. Isso quer dizer, as novas ciências são novos objetos, novos campos ou domínios de objetividade, ou seja, faixas de controle no progressivo aperto de cerco à realidade. Em suma, diz-se hoje, agora, são “virtualidades”, pois são campos técnico-operacionais, “valores”, campos de informação, melhor, informacionais e informacionáveis — índices cibernéticos. Heidegger, que marca essa leitura e interpretação da história da metafísica, não vê, tal como comumente se faz, este processo como dissolução da filosofia (à medida que tais ciências se dissociam e se independem da filosofia), mas, ao contrário, como pertencendo de maneira constitutiva e essencial à sua plenificação, isto é, ao seu triunfo e vigência ou dominação histórica.
Essas ciências, todas, estão sendo levadas ou conduzidas, isto é, determinadas por uma ciência-mestra, que revela precisa e incisivamente o programa técnico-científico: a cibernética. No começo da década de 1960, escreveu Heidegger:
[192] “Não é preciso nenhuma profecia para se reconhecer que as ciências que ora se instauram logo serão dirigidas e determinadas pela nova ciência fundamental — a cibernética. Essa ciência corresponde à determinação do homem como o ser da prática social (social-ativo). Ela é a teoria do comando do planejamento e ordenação possíveis do trabalho humano. A cibernética modela a linguagem para a troca de informações” [1].
Em todo saber, em todo conhecer, impera esse caráter cibernético, que é o caráter técnico, melhor, tecnológico por excelência. E justamente esse caráter cibernético que é o sentido, isto é, o lógos orientador da tecnologia, quer dizer, o logos que se apodera da téchne e define sua trajetória moderno-contemporânea. Saber é poder. Importa, isto é, decide, a função cibernética, quer dizer, a funcionalidade e o funcionalismo do controle, do planejamento, da antecipação asseguradora que se faz como “pro-jecção” (“ob-jetivação”) do estereótipo, ou seja, do já posto e preparado, do sempre já pré e “pro-posto” enquanto e como dado, e é desconsiderado, negado, repelido todo e qualquer “sentido ontológico”, toda e qualquer evidência a partir de toda e qualquer possível outra experiência e clamor. O poder é o saber. O poder é a verdade. E o poder respectivamente a verdade é a suposição das categorias, às quais se atribui e se reconhece função e tão-somente função cibernética. Isso, esse procedimento, responde por toda teoria, por todo saber e conhecer. Tais categorias se mostram como os índices elementares e os vetores que possibilitam e asseguram a planificação, o ordenamento, o controle, quer dizer, o que assegura o asseguramento! O querer da vontade insurgida, rebelada [193] é o poder — que é o saber, que é o conhecer, que é a verdade, isto é, o que corresponde ao real. É assim que, hodiernamente, se concretiza o sujeito que se representa a si próprio em se assegurando de si mesmo na e como representação. A culminação da história do eu. A forma dessa auto-representação como auto-asseguramento é a vontade que se quer, que precisa se querer a si própria para se auto-assegurar de seu caráter de sujeito — o eu, a substância. Kirílov, o personagem dostoievskiano [2], que é o protótipo do desespero da vontade rebelada (de “l’homme revolte”) que se quer e que precisa se querer a si própria, é a substância moderno-contemporânea. O nosso “arché-tipo”.
A verdade respectivamente a realidade é reduzida ao grau, maior ou menor, da eficiência do controle, do apode-ramento, da antecipação asseguradora. Com isto é identificada e igualada a força, o poder — a virtus da virtualidade cibernética. Desde a apropriação-interpretação desse programa vital é preciso ouvir-se a formulação de Nietzsche a respeito do critério, da medida da verdade e do real, que é a medida com a qual e desde a qual a metafísica invertida, isto é, a tecnologia, vai assenhorear-se da Terra: “O critério de verdade está no crescimento e na elevação do sentimento de poder”13. Entrando no “espírito” desse querer, será preciso acrescentar: (crescimento e elevação) “in-finitos”, “i-limitados” (do sentimento de poder). Isso é o imperativo da culpa, da má consciência…
[194] Mas, e a Terra — o que é a Terra? Também esquecimento. Nada querer. Nada poder. Até mesmo nada ser. Puro abandono. Absoluta inutilidade. E mesmo a satisfação, a festa e a celebração disso…