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Ferreira da Silva (2010:240-241) — pensar do ente e pensar do ser
terça-feira 12 de novembro de 2024
[…] É pelo fato de poder habitar na proximidade do Ser que o homem é capaz de elaborar um pensamento independente do Ente, daquilo que é, abandonando as formas do já dado. Esse pensamento, que não significa mais uma consagração ao Ente, mas sim um devotamento à verdade do Ser, é um pensamento do próprio Ser, isto é, o próprio Ser é que pensa no pensar. Como diz Heidegger: “O pensar é igualmente um pensar do Ser, na medida em que o pensar, pertencendo ao Ser, ouve o Ser”. Diante desse novo modo de especulação, o pensamento tradicional, que sempre permaneceu aderido às sugestões do Ente revelado e a ele se ateve, se nos afigura o produto de um longo esquecimento, o esquecimento do Ser. O pensar do Ente, a filosofia como exploração das possibilidades dadas, se nos revela por outro lado como um pensamento ingênuo, como um pensamento que não conhece o abismo de uma verdade abscondita e original. A essência da ingenuidade Naivität e da inocência consiste no desconhecimento da possibilidade do pecado. Esse desconhecimento não anula, entretanto, a existência do pecado, mas o põe como um espaço ainda fechado para o desenvolvimento do “eu” espiritual. A ingenuidade é um estado imediato e natural, uma perfeição que não conhece a elaboração superior do processo espiritual. Eis por que, do ponto de vista da subjetividade, a ingenuidade é algo que deve ser superado em vista das próprias possibilidades de desenvolvimento e realização superiores do “eu”. Analogamente, o pensamento que vive na inadvertência da verdade do Ser, ou do Ser como Verdade, isto é, o conjunto do pensar filosófico tradicional, passa a ser compreendido como uma forma ingênua da consciência filosófica. O pensar inadvertido pensou as possibilidades dadas – a matéria, a essência, a ideia – mas não alcançou a dimensão transcendental e desveladora, a partir da qual se originam estas possibilidades oferecidas e disponíveis. Da filosofia de Platão aos nossos dias, nada se encontra relativamente ao fundamental problema do oferecer do oferecido, [240] ou seja, relativamente ao problema da verdade compreendida como desvelamento originário. O pensar do Ser, entretanto, não se mantém no horizonte do disponível e do já dado, não apresa e elabora unicamente o Ente mas, ultrapassando o pensar das possibilidades, mantém-se na advertência do que nos pro-voca além do mundo daquilo que nos concerne. Desse ponto de vista, portanto, a nova consciência filosófica é marcada por um novo sentido de emancipação e de agilidade, critérios substanciais de um novo começo especulativo.
[FERREIRA DA SILVA , Vicente. Transcendência do Mundo. São Paulo : É Realizações, 2010]
Ver online : Vicente Ferreira da Silva