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Figal (2007:351-352) – a repetição
quarta-feira 13 de novembro de 2024
No entanto, também há uma experiência de constância na chegada e no ir embora: a repetição. Parece claro o que isto significa: algo acontece que já aconteceu uma vez ou várias vezes. Por exemplo, um dia começa uma vez mais e fazemos novamente o mesmo que tínhamos feito nos dias anteriores. Aqui, algo se repete, nós mesmos repetimos algo, mas quase não o experimentamos como repetição. Ele é por demais uniforme, há aí muito pouca tensão. Em verdade, o dia começa “uma vez mais”, mas isto acontece na mudança familiar que se repete. Aquilo que se transformou em hábito não sai da continuidade do cotidiano. Com efeito, as coisas se comportam de maneira diversa quando uma festa ou um ritual se repetem. Também neste caso, contudo, a repetição quase não salta aos olhos enquanto tal. Mesmo quando pensamos na mesma festa do ano anterior, a festa se encontra totalmente por si a cada vez em que se festeja. A celebração da festa ou do ritual é aqui o decisivo, não a repetição [1].
A repetição também não é quase experimentada enquanto tal, quando ela é realizada intencionalmente, üm tal fato só se mostra como paradoxal em um primeiro momento. Quando repetimos o que fizemos ou dissemos anteriormente, quando até mesmo o anunciamos, o novo é predominante; mais importante do que o “uma vez mais” é o fazer. A memória só fornece, por assim dizer, o salto para a visão da finalidade. É neste sentido que Kierkegaard denomina a repetição uma “lembrança voltada para frente”, enquanto ele designa a memória como uma “repetição voltada para trás” [2]. E ele acrescenta que a repetição torna o homem feliz, a memória o deixa triste; a repetição conduz a algo passível de ser alcançado, enquanto a memória nunca tem nada em comum senão com aquilo que passou em sua retração. É somente por isto que a repetição ativa não está ligada ao que é lembrado; no “uma vez mais”, o mesmo não retorna, mas, em contraposição a ele, nós estabelecemos uma diferença; como agentes, nós somos agora diversos ou outros frente àquilo que éramos no passado. É por isto que Gilles Deleuze pode designar a repetição como um “puro movimento criador” [3] e dizer que nela um “elemento diferencial” seria dissimulado [4]. Deste modo, sob o aspecto da repetição ativa, até mesmo o irrepetível pode se mostrar como passível de repetição. O experimento [352] de pensamento nietzschiano do eterno retorno do mesmo é efetivamente uma apoteose da unicidade. Se tudo retorna exatamente como já foi uma vez — “esta aranha e esta luz do luar entre as árvores e igualmente este instante” [5] então a experiência do retorno não pode pertencer àquilo que retorna. Ou seja, aquilo que retorna não é experimentável enquanto tal. Apesar disto, porém, podemos dizer que queremos mais uma vez isto que é exatamente como ele é.
Ver online : Günter Figal
[1] Gadamer, Verdade e método, GW 1, p. 129. Cf. também: Gadamer. A atualidade do belo, GW 8, aqui p. 132-133, assim como Gadamer, Zur Phänomenologie von Ritual und Sprache (Para a fenomenologia de ritual e linguagem), GW 8, p. 400-440, aqui p. 414-415.
[2] Soren Kierkegaard, Gjentagelsen (A repetição), SV 111, Copenhagen 1901, p. 169-264, p. 173.
[3] Gilles Deleuze, Diferença e repetição, primeira edição, Paris, 1968, p. 36: “pure mouvement créateur”.
[4] Ibid., p. 2. Cf. também Bernhard Waldenfels, Die verändernde Kraft der Wiederholung (A força transformadora da repetição), Zeitschrift für Ästhetik und allgemeine Kunstwissenschaft 46 (2001), p. 5-17.
[5] Nietzsche, A gaia ciência, p. 341; KSA 3, p. 570.