É que fundar é determinar o indeterminado. Mas esta operação não é simples. Quando “a” determinação se exerce, ela não se contenta em dar uma forma, de informar matérias sob a condição de categorias. Alguma coisa do fundo sobe à superfície, e sobe sem tomar forma, insinuando-se, antes de tudo, entre as formas, existência autônoma sem rosto, base informal. Na medida em que ele se encontra agora na superfície, este fundo chama-se profundo, sem-fundo. Inversamente, as formas se decompõem quando elas se refletem nele, todo modelado se desfaz, todos os rostos morrem, subsistindo apenas a linha abstrata como determinação absolutamente adequada ao indeterminado, como relâmpago igual à noite, ácido igual à base, distinção adequada à obscuridade inteira: o monstro. (Uma determinação que não se opõe ao indeterminado e que não o limita.) Eis por que o par matéria-forma é bastante insuficiente para descrever o mecanismo da determinação; a matéria já é informada, a forma não é separável do modelado da species ou da morphé, o conjunto está sob a proteção das categorias. De fato, este par é totalmente interior à representação e define seu primeiro estado, que Aristóteles fixou, fá é um progresso invocar [414] a complementariedade da força e do fundo como razão suficiente da forma, da matéria e de sua união. Mas ainda mais profundo e ameaçador é o par da linha abstrata e do sem-fundo que dissolve as matérias e desfaz os modelados. É preciso que o pensamento, como determinação pura, como linha abstrata, afronte este sem-fundo que é o indeterminado. Este indeterminado, este sem-fundo, é igualmente a animalidade própria ao pensamento, a genitalidade do pensamento: não esta ou aquela forma animal, mas a besteira. Com efeito, se o pensamento só pensa coagido e forçado, se ele permanece estúpido enquanto nada o força a pensar, aquilo que o força a pensar não é também a existência da besteira, a saber, que ele não pensa enquanto nada o força? Retomemos a palavra de Heidegger: “O que mais nos dá a pensar é que nós não pensamos ainda”. O pensamento é a mais elevada determinação, efetuando-se em face da besteira como do indeterminado que lhe é adequado. A besteira (e não o erro) constitui a maior impotência do pensamento, mas também a fonte de seu mais elevado poder naquilo que o força a pensar. Esta é a prodigiosa aventura de Bouvard e Pécuchet, ou o jogo do não-senso e do sentido3. Deste modo, o indeterminado e a determinação permanecem iguais sem avançar, um sempre adequado ao outro. Estranha repetição que os reconduz à máquina de fiar ou, antes, à mesma dupla escrivaninha. Chestov via em Dostoievski o resultado, isto é, o acabamento e a saída da Crítica da Razão Pura. Que nos seja por um momento permitido ver em Bouvard e Pécuchet o resultado do Discurso do Método. O cogito é uma besteira? É necessariamente um não-senso, na medida em que essa proposição pretende dizer ela própria e o seu sentido. Mas é também um contra-senso (e isto Kant o mostrava), na medida em que a determinação Eu penso pretende incidir imediatamente sobre a existência indeterminada existo, sem assinalar a forma sob a qual o indeterminado é determinável. O sujeito do cogito cartesiano não pensa; ele tem apenas a possibilidade de pensar e se mantém estúpido no seio dessa possibilidade. Falta-lhe a forma do determinável; não uma especificidade, não uma forma específica informando uma matéria, não uma memória informando um presente, mas a forma pura e vazia do tempo. É a forma vazia do tempo que introduz, que constitui a Diferença no pensamento, a partir da qual ele pensa, como diferença do indeterminado e da determinação. É ela que reparte, de uma parte a outra de si mesma, um Eu rachado pela linha abstrata, um eu passivo saído de um sem-fundo que ele contempla. Ê ela que engendra pensar no pensamento, pois o pensamento só pensa com a diferença, em torno desse ponto de a-fundamento. É a diferença, ou a forma do determinável, que faz com que o pensamento funcione, isto é, que faz com que funcione a máquina inteira do indeterminado e da determinação. A teoria do pensamento é como a pintura: tem necessidade dessa revolução que faz com que ela passe da representação à arte abstrata; é este o objeto de uma teoria do pensamento sem imagem.
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Deleuze (1988:413-414) – O pensamento é a mais elevada determinação
sábado 26 de outubro de 2024, por
Ver online : Gilles Deleuze
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tr. Luiz Orlandi e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988