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Dastur (2015:110-115) – Boss e Binswanger

quarta-feira 7 de fevereiro de 2024, por Cardoso de Castro

A diferença entre Binswanger   e Boss aparece com isso que se poderia chamar de querela dos existenciais, e que apresenta um duplo aspecto: a caracterização heideggeriana   do Dasein como ser-no-mundo e a possibilidade ou impossibilidade de completar a analítica existencial. De fato, Boss condena Binswanger   por definir o Dasein unicamente a partir de seu ser-no-mundo e, ao mesmo tempo, por não compreender o pensamento de Heidegger. Sem dúvida, a caracterização do Dasein como ser-no-mundo não é falsa e já permite, o que não é pouco, evitar a abstração de um pensamento do homem reduzido ao sujeito mutilado, ou seja, sem mundo (weltlos). Ela permanece, entretanto, insuficiente e puramente formal, na medida em que o Dasein não é compreendido ao mesmo tempo em seu ser como “compreensão originária do ser”, “clareira do ser”. A porta está, então, aberta a uma compreensão subjetivista da transcendência do Dasein. É o que se pode facilmente constatar quando se relê a conferência de Binswanger  , publicada em 1946 e intitulada: “Sobre a condução da pesquisa analítico-existencial (daseinsanalytische) em [110] psiquiatria”, que põe no centro da análise existencial o ser-no-mundo enquanto transcendente. Este último conceito, ao qual o próprio Heidegger acabará renunciando, conduz Binswanger   a descrever o Dasein em termos de superação (Überstieg), uma vez que o mundo é posto independentemente do Dasein e como aquilo em referência a que se faz a superação. Ele deduz, por exemplo, que as diferentes psicoses aparecem como flexões ou variações (Abwandlungen) determinadas da transcendência, isto é, do ser-no-mundo, de tal modo que o mundo do esquizofrênico, o mundo do maníaco, o mundo do paranoico etc. tornam-se doravante mundos subjetivos, distintos uns dos outros, que respondem a diferentes projetos de mundo (Weltentwürfe), tendo cada um seu a priori específico. Desse ponto de vista, como se diz às vezes, os “doentes mentais” vivem no “mundo deles”, e, seguindo essa lógica, e se inspirando em Heráclito  , Binswanger   atribui ao terapeuta a tarefa de permitir ao doente o abandono de seu mundo privado ou idios cosmos, a fim de voltar ao mundo comum ou koinos cosmos.

Para Boss, Binswanger   comete no fundo o mesmo erro que Sartre   na sua leitura de Ser e tempo   — ainda que Boss seja claramente mais severo com este último. Isso porque um e outro se equivocam quanto à real significação da transcendência ou do ser-no-mundo do Dasein que eles encaram como o movimento de uma subjetividade que sairia de si mesma, que se ultrapassaria em referência ao que está dado e que ela reconheceria fora, no mundo. Semelhante interpretação comete pelo menos três contrassensos: de um lado, ela reinstaura a oposição entre o sujeito e o objeto sob a forma de uma imanência primeira e de um objeto transcendental; de outro lado, ela retoma a concepção tradicional do mundo como totalidade do ente ou soma das coisas simplesmente dadas; por último, ela [111] reduz a explicação do mundo a um conjunto de significações que seria, como escreve Boss, “chapado como um filete por uma subjetividade humana sobre um material simplesmente dado”. Bem ao contrário, a transcendência deve ser compreendida — ainda que se tenha de conservar este termo — “como superação de todo ente enquanto tal na ‘direção’ de seu ser em si, do ser daquilo que é presente (Anwesenden)”. E o mundo não designa, então, nem um ente nem mesmo o ente na totalidade, mas a clareira do ser na qual o homem se sustem a partir do ser jogado.

Compreendemos, assim, que, como Boss escreve, “não pode haver aí Variações’ (Abwandlungen) do ser-no—mundo”, e “os homens atacados de problemas neuróticos ou psicóticos não podem mais se mover em ‘projetos-de-mundo’ particulares que lhes seriam próprios”. Essa concepção subjetivista do mundo supõe que o projeto-de-mundo seja obra de uma consciência ou de uma subjetividade humana, ao passo que ele deve, na verdade, ser compreendido de maneira resolutamente não subjetivista como a clareira projetada pelo ser. Desse ponto de vista, a concepção binswangeriana da terapia como retorno à vida universal, ao koinos cosmos, fica desprovida de significação pela simples razão de que o mundo é necessariamente koinos cosmos ou ainda Mitwelt. Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer que essa concepção subjetivista compreende uma dimensão irrecusável da existência, que convém expressar segundo uma outra terminologia. Ninguém nem sonha em contestar que, seguindo sua [112] disposição afetiva ou afinada (Stimmungslage), o Dasein percebe e compreende o que ele encontra no interior do mundo segundo modalidades extremamente diferentes. E ainda que o próximo e o longínquo no sentido temporal tanto quanto no espacial não sejam as mesmas coisas para um apaixonado, um soldado em combate, um técnico ou um comerciante, ainda assim as características espaço-temporais daquilo que é percebido por um doente expressa à cada vez sua disposição afetiva.

Boss se opõe a Binswanger   também quanto à estrutura mesma do Dasein, cuja analítica, segundo este último, deveria ser completada, a fim de poder tomar em conta certos fenômenos dos quais Heidegger teria, em Ser e tempo  , subestimado a importância. Vimos que em sua grande obra, publicada em 1942, Grundformen und Erkenntinis menschlichen Daseins, Binswanger   declara na introdução que, virando as costas à psicologia objetificante, o conhecimento do Dasein encontra seu fundamento e seu solo próprios “no amor recíproco do eu e do tu (im liebenden Miteinandersein von Ich und Du)”. Desse modo, como escreve Binswanger   um pouco mais adiante, “ao lado do a gente (neben dem Man-selbst) e do si autêntico, há um outro quem do Dasein, o nós dual no sentido do ser-um-com-o-outro do eu e do teu, o nós do amor (das duale Wir-selbst im Sinne des Miteinanderseins von Mir und Dir, das Wir der Liebe). E esse nós, diferentemente do ser-no-mundo do si, seria um “ser-para-além-do-mundo (ein Über-die-Welt-hinaus-Sein)”. É possível adivinhar sem dúvida a objeção de Boss que é também a de Heidegger: o que viria a significar um “ser-para-além-do-mundo”? Sobre que base de compreensão da noção de mundo tal [113] “ser-para-além-do-mundo” reside? Bisnwanger parece admitir a ideia de que um para-além do mundo poderia se estender para além dos limites do mundo um pouco como o divino ou o celeste com relação ao humano ou ao terrestre. Mas isso, mais uma vez, é não compreender a significação ontológica da noção de mundo e desconhecer que o divino ele mesmo tanto quanto o celeste é um fenômeno necessariamente intra-mundano que supõe a abertura do mundo”.

Essa crítica não deve, entretanto, ser interpretada como um modo de não aceitar de boa vontade a tarefa de “completar” a analítica existencial. Heidegger mesmo reconhece, em Ser e tempo  , que sua pesquisa “não aspira a uma ontologia do Dasein que seja tematicamente exaustiva, e ainda menos a uma antropologia concreta”. Mas não é totalmente absurda a ideia de querer vislumbrar a possibilidade de novos existenciais. Em contrapartida, a ideia de completar a estrutura do cuidado pelo fenômeno do amor é certamente inaceitável na medida em que ela reside na confusão entre ôntico e ontológico. Boss escreve: “o cuidado é, na ontologia fundamental, o nome que designa a constituição ekstatico-temporal e o traço fundamental do Dasein, ou seja, a compreensão de ser. Eis porque o amor, a amizade e a esperança voltadas para o futuro não encontram menos resolutamente seu fundamento no cuidado enquanto compreensão do ser do que no cuidado em sua acepção antropológica. Noutros termos, é necessário distinguir os sentidos ontológicos e antropológicos do 114] cuidado e compreender que se uma descrição existencial do amor ou da amizade é possível, ela o é apenas a partir do cuidado compreendido do ponto de vista ontológico, isto é, a partir da constituição ekstatico-temporal do Dasein. No entanto, aí temos uma outra maneira de completar a analítica existencial de Ser e tempo  , e é isso, como vamos ver, que se propõe Boss a fazer a propósito do sonho.

A maneira como Boss lê Ser e tempo   e os desacordos que daí resultam em relação a Binswanger   delineiam já duas concepções da Daseinsanálise médica. De um lado, uma concepção existencial, cujo ponto de partida é a diferença ontológica e a determinação do Dasein como clareira do ser (Lichtung des Seins). De outro lado, uma concepção subjetivista, desenvolvida a partir da determinação formal do Dasein como ser-no-mundo. Sem dúvida alguma, é vão tentar cruzar o fosso entre essas duas concepções que, como vimos a propósito do modo inconstante da mania, podem se imiscuir uma na outra. A distância entre elas é certamente bem menor do que entre a Daseinsanálise e as psicanálises freudiana ou jungiana, isso sem falar da psiquiatria objetivante cuja fidelidade reside apenas nas neurociências. Seria, porém, do mesmo modo vão ignorar o que as separa. Para Boss, é evidente que toda descrição existencial só pode encontrar sua plena legitimidade na sua retomada existencial, sob a luz de uma compreensão originária do Dasein como clareira do ser.


Ver online : Françoise Dastur


CABESTAN, Philippe; DASTUR, Françoise. Daseinsanálise: fenomenologia e psicanálise. Rio de Janeiro: Via Verita, 2015