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Arendt (CH:§13) – vida - mundo
terça-feira 28 de abril de 2020
Roberto Raposo
A natureza e o movimento cíclico que ela imprime, à força, a todas as coisas vivas, desconhecem o nascimento e a morte tais como os compreendemos. O nascimento e a morte de seres humanos não são ocorrências simples e naturais, mas referem-se a um mundo ao qual vêm e do qual partem indivíduos únicos, entidades singulares, impermutáveis e irrepetíveis. O nascimento e a morte pressupõem um mundo que não está em constante movimento, mas cuja durabilidade e relativa permanência tornam possível o aparecimento e o desaparecimento; e essa durabilidade, essa relativa permanência já existiam antes que qualquer indivíduo nele aparecesse, e sobreviverão à sua eventual partida. Sem um mundo ao qual os homens vêm pelo nascimento e do qual se vão com a morte, nada existiria a não ser a recorrência imutável e eterna, a perenidade imortal da espécie humana como a de todas as outras espécies animais. Uma filosofia que não chegue, como Nietzsche chegou, à afirmação da «eterna recorrência» (ewige Wiederkehr) como o mais alto princípio de toda a existência, simplesmente não sabe do que está falando.
A palavra «vida», porém, tem significado inteiramente diferente quando usada em relação ao mundo para designar o intervalo de tempo entre o nascimento e a morte. Limitada por um começo e um fim, isto é, pelos dois supremos eventos do aparecimento e do desaparecimento do indivíduo no mundo, a vida segue sempre uma trajetória estritamente linear, cujo movimento, não obstante, é transmitido pela força motriz da vida biológica que o homem compartilha com outros seres vivos e que conserva, sempre, o movimento cíclico da natureza. A principal característica desta vida especificamente humana, cujo aparecimento e desaparecimento constituem eventos mundanos, é que ela, em si, é plena de eventos que posteriormente podem ser narrados como história e estabelecer uma biografia; era a esta vida, bios, em contraposição à mera zoe, que Aristóteles se referia quando dizia que ela é, «de certa forma, uma espécie de praxis» [Política 1254a7]. Pois a ação e o discurso que, como vimos, estavam intimamente interligados no conceito grego de política, são realmente duas atividades cujo resultado final será sempre uma história suficientemente coerente para ser narrada, por mais acidentais ou aleatórios que sejam os eventos e as circunstâncias que os causaram.
É somente dentro do mundo humano que o movimento cíclico da natureza se manifesta como crescimento e declínio". Estes, como o nascimento e a morte, não são ocorrências naturais propriamente ditas; não têm lugar no ciclo incessante e incansável no qual todo o reino da natureza perpetuamente evolve. Somente quando ingressam no mundo feito pelo homem podem os processos da natureza ser descritos como crescimento e declínio; somente quando consideramos os produtos da natureza — determinada árvore ou determinado animal — como coisas individuais, retirando-os, com isso, do seu ambiente «natural» e colocando-os em nosso mundo, é que eles começam a ter crescimento e declínio. Embora a natureza se manifeste na existência humana através do movimento circular de nossas funções corporais, faz-se presente no mundo fabricado pelo homem através da constante ameaça de sobrepujá-lo ou fazê-lo perecer. A característica comum ao processo biológico do homem e ao processo de crescimento e declínio do mundo é que ambos fazem parte do movimento cíclico da natureza; sendo cíclico, esse movimento é infinitamente repetitivo; todas as atividades humanas provocadas pela necessidade de fazer face a esses processos estão vinculadas aos ciclos recorrentes da natureza, e não têm, em si, qualquer começo ou fim propriamente dito. Ao contrário do processo de trabalhar, que termina quando o objeto está acabado, pronto para ser acrescentado ao mundo comum das coisas, o processo do labor move-se sempre no mesmo círculo prescrito pelo processo biológico do organismo vivo, e o fim das «fadigas e penas» só advém com a morte desse organismo.
Original
Nature and the cyclical movement into which she forces all living things know neither birth nor death as we understand them. The birth and death of human beings are not simple natural occurrences, but are related to a world into which single individuals, unique, unexchangeable, and unrepeatable entities, appear and from which they depart. Birth and death presuppose a world which is not in constant movement, but whose durability and relative permanence makes appearance and disappearance possible, which existed before any one individual appeared into it and will survive his eventual departure. Without a world into which men are born and from which they die, there would be nothing but changeless eternal recurrence, the deathless everlastingness of the human as of all other animal species. A philosophy of life that does not arrive, as did Nietzsche , at the affirmation of “eternal recurrence” (ewige Wiederkehr) as the highest principle of all being, simply does not know what it is talking about.
The word “life,” however, has an altogether different meaning if it is related to the world and meant to designate the time interval between birth and death. Limited by a beginning and an end, that is, by the two supreme events of appearance and disappearance within the world, it follows a strictly linear movement whose very motion nevertheless is driven by the motor of biological life which man shares with other living things and which forever retains the cyclical movement of nature. The chief characteristic of this specifically human life, whose appearance and disappearance constitute worldly events, is that it is itself always full of events which ultimately can be told as a story, establish a biography; it is of this life, bios as distinguished from mere zōē, that Aristotle said that it “somehow is a kind of praxis.” For action and speech, which, as we saw before, belonged close together in the Greek understanding of politics, are indeed the two activities whose end result will always be a story with enough coherence to be told, no matter how accidental or haphazard the single events and their causation may appear to be.
It is only within the human world that nature’s cyclical movement manifests itself as growth and decay. Like birth and death, they, too, are not natural occurrences, properly speaking; they have no place in the unceasing, indefatigable cycle in which the whole household of nature swings perpetually. Only when they enter the man-made world can nature’s processes be characterized by growth and decay; only if we consider nature’s products, this tree or this dog, as individual things, thereby already removing them from their “natural” surroundings and putting them into our world, do they begin to grow and to decay. While nature manifests itself in human existence through the circular movement of our bodily functions, she makes her presence felt in the man-made world through the constant threat of overgrowing or decaying it. The common characteristic of both, the biological process in man and the process of growth and decay in the world, is that they are part of the cyclical movement of nature and therefore endlessly repetitive; all human activities which arise out of the necessity to cope with them are bound to the recurring cycles of nature and have in themselves no beginning and no end, properly speaking; unlike working, whose end has come when the object is finished, ready to be added to the common world of things, laboring always moves in the same circle, which is prescribed by the biological process of the living organism and the end of its “toil and trouble” comes only with the death of this organism.
ARENDT , H. The human condition. 2nd ed ed. Chicago: University of Chicago Press, 1998. [HC:§13]
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