Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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ser-no-mundo

quarta-feira 13 de dezembro de 2023

In-der-Welt-Sein  

Porque se diz que o ser do homem [Sein   des Menschen] consiste em "SER-NO-MUNDO", acha-se que o homem [Mensch  ] foi degradado, reduzido a um ser meramente mundano (diesseitig), com o que a filosofia cai no positivismo. Pois, o que é "mais lógico" do que isto: quem afirma a mundaneidade do ser do homem, só dá valor ao mundano, nega o Além (das Jenseitige) e renuncia a toda "transcendência"? [CartaH]


A indicação do "SER-NO-MUNDO", como sendo o traço fundamental da humanitas do homo humanus não afirma que o homem é, meramente, um ser "mundano" no sentido cristão do termo, qual seja, apartado de Deus e desligado da "transcendência" [Transzendenz  ]. Procura-se exprimir com a palavra "transcendência" o que, com maior clareza, deveria ser chamado de transcendente. Pois o transcendente é o ente supra-sensível, considerado o ente supremo no sentido da causa primeira de todo ente. Pensa-se Deus como essa causa primeira. Ora, "mundo", na expressão, "SER-NO-MUNDO", não significa, de forma alguma, ente terreno em oposição ao celeste nem "mundano" em oposição ao "espiritual’. "Mundo" não significa nenhum ente ou domínio de entes mas a abertura do Ser [Offenheit   des Seins]. O homem é — e é homem — na medida em que é o ec-sistente [Ek-sistierende]. O homem está ex-posto à abertura do Ser, que é como abertura. Sendo o lance, (Wurf), o Ser lançou para si a Essência do homem na "cura" [Sorge  ]. Lançado desse modo, o homem está "na" abertura do Ser. "Mundo" é a clareira do Ser [Lichtung   des Seins], à qual o homem se ex-põe por sua Essência lançada. O "SER-NO-MUNDO" evoca a Essência da ec-sistência no tocante (im Hinblick auf  ) à dimensão clareada, a partir da qual se essencializa o "ec-" da ec-sistência. Pensado a partir da ec-sistência, o "mundo" é, de certo modo, o além (das Jenseitige) dentro e para a ec-sistência. O homem nunca é homem, aquém do mundo, como um "sujeito" [Subjekt  ], quer se entenda sujeito como "eu" [Ich  ] ou como "nós" [Wir]. Nem tampouco o homem é primeiro e somente sujeito enquanto se refere sempre a objetos, de sorte que sua Essência esteja na relação sujeito-objeto. Ao contrário, o homem é, em sua Essência, primeiro ec-sistente na abertura do Ser. E é o que se abre na abertura (das Offene), que clareia o meio" (das "Zwischen  ") no qual pode "ser" uma "relação" [Beziehung  ] do sujeito [Subjekt] para o objeto [Objekt].

A frase: a Essência do homem repousa no SER-NO-MUNDO, também não contém nenhuma decisão [Entscheidung  ], se, tomando o termo em sentido teológico-metafísico, o homem é apenas um ser desse mundo (diesseitig) ou um ser do outro mundo (jenseitig). [CartaH]


A expressão "SER-NO-MUNDO" que caracteriza a transcendência [Transzendenz] nomeia um "estado de coisas" [Sachverhalt e, na verdade, um que aparentemente se compreende com facilidade. Contudo, o que com isto é visado depende da condição de o conceito de mundo ser tomado num sentido pré-filosófico vulgar ou num sentido transcendental. A análise de uma dupla significação do discurso sobre o SER-NO-MUNDO pode esclarecer isto.

Transcendência concebida como SER-NO-MUNDO, quer atribuir-se ao ser-aí humano [menschlichen Dasein  ]. Isto é, porém, afinal o mais trivial e o mais vazio que se deixa enunciar: o ser-aí [Dasein] também aparece entre os outros entes e é por isso também encontrável. Transcendência significa então: fazer parte do resto do ente que já subsiste puramente ou que respectivamente pode ser multiplicado continuamente até o ilimitado. Mundo [Welt  ] é, então, a expressão que resume tudo o que é, a totalidade [Allheit], como unidade [Einheit  ] que determina o "tudo" [Alles] como uma reunião [Zusammennehmung] e nada mais além. Se se toma como base para o discurso sobre o SER-NO-MUNDO este conceito de mundo, então, sem dúvida, a "transcendência" deve ser atribuída a cada ente como puramente subsistente. Puramente subsistente [Vorhandenes], isto é, o que ocorre entre outras coisas, "está no mundo". Se "transcendente" não diz nada mais que "fazendo parte dos restantes entes", então é evidentemente impossível predicar a transcendência como constituição essencial característica do ser-aí humano. A proposição: da essência do ser-aí humano faz parte o SER-NO-MUNDO é então mesmo evidentemente falsa. Pois não é essencialmente necessário que entes como o ser-aí humano existam faticamente. É claro que pode não ser.

Se, no entanto, por outro lado o SER-NO-MUNDO é predicado do ser-aí com razão e exclusividade, e em verdade como constituição fundamental, então esta expressão não pode ter a significação acima citada. Então mundo também significa algo diferente que a totalidade do ente subsistente, que por acaso subsiste.

Predicar do ser-aí o SER-NO-MUNDO como constituição fundamental [Grundverfassung  ] significa enunciar algo sobre sua essência [Wesen  ] (sua mais própria possibilidade interna enquanto ser-aí [seine eigenste innere   Möglichkeit   als Dasein]). Neste caso não se pode justamente considerar-se como instância orientadora se e qual ser-aí, agora justamente, existe faticamente [faktisch  ] ou não. O discurso [Rede  ] que trata do SER-NO-MUNDO não é uma verificação da ocorrência fática de ser-aí [faktischen Vorkommens von Dasein]; é, aliás, de maneira alguma, uma enunciação ôntica [ontische Aussage  ]. Ela se refere a um estado de coisas essencial (Wesensverhalt) que determina o ser-aí em geral e tem como consequência o caráter de uma tese ontológica. Por conseguinte, importa: o ser-aí não é um SER-NO-MUNDO pelo fato de, e apenas pelo fato de, existir faticamente; mas, pelo contrário, somente pode ser como existente, isto é, como ser-aí, porque sua constituição essencial reside no SER-NO-MUNDO.

A proposição: o ser-aí fático está num mundo (ocorre entre outros entes) se trai como uma tautologia que nada diz. A enunciação: faz parte da essência do ser-aí o fato de estar no mundo (de também ocorrer "ao lado" de outros entes) se mostra falsa. A tese: da essência do ser-aí como tal faz parte o SER-NO-MUNDO contém o problema de transcendência.

A tese é originária e simples. Disto não segue a facilidade de sua revelação, ainda que o SER-NO-MUNDO somente possa - sempre apenas num único projeto com diferentes graus de transparência - ser elevado ao nível de uma compreensão preparatória a ser novamente (em verdade sempre relativamente) complementada conceitualmente.

Com a caracterização de SER-NO-MUNDO realizada até agora, a transcendência do ser-aí foi determinada apenas defensivamente. Da transcendência faz parte mundo, como o horizonte em direção do qual acontece a ultrapassagem [Überstieg]. O problema positivo do que se deve entender por mundo, de como se deve determinar a "referência" do ser-aí [»Bezug« des Daseins] ao mundo, isto é, de como deve ser compreendido o SER-NO-MUNDO como constituição do ser-aí [Daseinsverfassung] originariamente unida, tudo isto somente será analisado por nós naquela direção e nos limites que são exigidos pelo problema do fundamento [Problem des Grundes] que nos orienta. Com esta intenção [Absicht] tentaremos uma interpretação do fenômeno do mundo [Weltphänomens], que deverá ser de utilidade para a clarificação da transcendência como tal. [GA9  :140-142; MHeidegger SOBRE A ESSÊNCIA DO FUNDAMENTO]


A presença [Dasein] não é apenas um ente que ocorre entre outros entes. Ao contrário, ela se distingue onticamente pelo privilégio de, em seu ser, isto é, sendo, estar em jogo seu próprio ser. Mas também pertence a essa constituição de ser da presença [Dasein] a característica de, em seu ser, isto é, sendo, estabelecer uma relação de ser com seu próprio ser. Isso significa, explicitamente e de alguma maneira, que a presença [Dasein] se compreende em seu ser, isto é, sendo. É próprio deste ente que seu ser se lhe abra e manifeste com e por meio de seu próprio ser, isto é, sendo. A compreensão de ser é em si mesma uma determinação de ser da presença [Dasein] [NH: ser aqui não apenas como ser do homem (existência). Isso se esclarece pelo seguinte: o SER-NO-MUNDO abriga em si a remissão da existência ao ser em seu todo: compreensão de ser]. O privilégio ôntico que distingue a presença [Dasein] está em ela ser ontológica. STMSCC: §4

O ente que temos a tarefa de analisar somos nós [NH: cada vez "eu"] mesmos. O ser deste ente é sempre e cada vez meu. Em seu ser, isto é, sendo, este ente se relaciona com o seu ser. Como um ente deste ser [NH: mas este é historicamente SER-NO-MUNDO], a presença [Dasein] se entrega à responsabilidade de assumir seu próprio ser. Ser [NH: qual? ser o pre [das Da  ] e, com isso, resistir ao ser em geral] é o que neste ente está sempre em jogo. Desta caracterização da presença [Dasein] resultam duas coisas: STMSCC: §9

§12. Caracterização prévia do SER-NO-MUNDO a partir do ser-em como tal STMSCC: §12

Estas determinações do ser da presença [Dasein], todavia, devem agora ser vistas e compreendidas a priori  , com base na constituição de ser que designamos de SER-NO-MUNDO. O ponto de partida adequado para a analítica da presença [Dasein] consiste em se interpretar esta constituição. STMSCC: §12

A expressão composta "SER-NO-MUNDO", já na sua cunhagem, mostra que pretende referir-se a um fenômeno de unidade. Deve-se considerar este primeiro achado em seu todo. A impossibilidade de dissolvê-la em elementos, que podem ser posteriormente compostos, [98] não exclui a multiplicidade de momentos estruturais que compõem esta constituição. O achado fenomenal indicado nesta expressão comporta, de fato, uma tríplice visualização. Ao se examinar esse achado, mantendo-se previamente a totalidade do fenômeno, pode-se ressaltar o seguinte: STMSCC: §12

2. O ente que sempre é, segundo o modo de SER-NO-MUNDO. Investiga-se aqui o que indagamos com a interrogação "quem?" Numa demonstração fenomenal devemos determinar quem é e está no modo da cotidianidade mediana da presença [Dasein] (cf. cap. 4 desta seção). STMSCC: §12

3. O ser-em como tal; deve-se expor a constituição ontológica do próprio em (cf. cap. 5 desta seção). Todo destaque de um destes momentos constitutivos significa destacar também os demais, isto é, significa ver, cada vez, todo o fenômeno. O SER-NO-MUNDO é, sem dúvida, uma constituição necessária e a priori da presença [Dasein], mas de forma nenhuma suficiente para determinar por completo o seu ser. Antes das análises temáticas particulares destes três fenômenos, devemos buscar uma caracterização orientadora do momento constitutivo por último mencionado. STMSCC: §12

O ser-em, ao contrário, significa uma constituição de ser da presença [Dasein] e é um existencial. Com ele, portanto, não se pode pensar no ser simplesmente dado de uma coisa corpórea (o corpo vivo do humano) "dentro" de um ente simplesmente dado. O ser-em não pode indicar que uma coisa simplesmente dada está, espacialmente, "dentro de outra" porque, em sua origem, o "em" não significa de forma alguma uma relação espacial desta espécie ; "em" deriva-se de innan-, morar, habitar, deter-se; "an" significa: estou acostumado a, habituado a, familiarizado com, cultivo alguma coisa; possui o significado de colo, no sentido de habito e diligo. O ente, ao qual pertence o ser-em, neste sentido, é o ente que sempre eu mesmo sou. A expressão "sou" conecta-se a "junto"; "eu sou" diz, por sua vez: eu moro, detenho-me junto… ao mundo, como alguma coisa que, deste ou daquele modo, me é familiar. Como infinitivo de "eu sou", isto é, como existencial, ser [NH: ser é também infinitivo de "é": o ente é] significa morar junto a, ser familiar com. O ser-em é, pois, a expressão formal   e existencial do ser da presença [Dasein] [NH: mas não do ser em geral e nem mesmo do próprio ser – pura e simplesmente] que possui a constituição essencial de SER-NO-MUNDO. STMSCC: §12

Como existencial, o "ser-junto" ao mundo nunca indica um simplesmente dar-se em conjunto de coisas que ocorrem. Não há nenhuma espécie de "justaposição" de um ente chamado "presença [Dasein]" a um outro ente chamado "mundo". Por vezes, sem dúvida, costumamos exprimir com os recursos da língua o conjunto de dois entes simplesmente dados, dizendo: "a mesa está junto à porta", "a cadeira ‘toca’ a parede". Rigorosamente, nunca se poderá falar aqui de um "tocar", não porque sempre se pode constatar, num exame preciso, um espaço entre a cadeira e a parede, mas porque, em princípio, a cadeira não pode tocar a parede mesmo que o espaço entre ambas fosse igual a zero. Para tanto, seria necessário pressupor que a parede viesse ao encontro "da" cadeira. Um ente só poderá tocar um outro ente simplesmente dado dentro do mundo se, por natureza, tiver o modo do ser-em, se, com sua presença [Dasein], já se lhe houver sido descoberto um mundo. Pois a partir do mundo o ente poderá, então, revelar-se no toque e, assim, tornar-se acessível em seu ser simplesmente dado. Dois entes que se dão simplesmente dentro do mundo e que, além disso, são em si mesmos destituídos de mundo, nunca podem "tocar"-se, nunca um deles pode "ser e estar junto ao" outro. Não pode faltar o acréscimo: "e, além disso, são em si mesmos destituídos de mundo", porque também o ente que não é destituído de mundo, por exemplo, a própria presença [Dasein], se dá simplesmente "no" mundo ou, mais precisamente, também pode ser apreendido, com certa razão e dentro de certos limites, como algo simplesmente dado. Para isso, no entanto, é preciso que se desconsidere inteiramente, isto é, que não se veja a constituição existencial do ser-em. Mas não se deve confundir essa possibilidade de apreender a "presença [Dasein]" como um dado e somente como simples dado com um modo de "ser simplesmente dado", próprio da presença [Dasein]. Pois este ser simplesmente dado não é acessível quando se desconsideram as estruturas específicas da presença [Dasein]. Ele só se torna acessível em sua compreensão prévia. A presença [Dasein] compreende o [101] seu ser mais próprio no sentido de um certo "ser simplesmente dado fatual". Na verdade, a "fatualidade" do fato da própria presença [Dasein] é, em seu ser, fundamentalmente diferente da ocorrência fatual de uma espécie qualquer de pedras. Chamamos de facticidade o caráter de fatualidade do fato da presença [Dasein] em que, como tal, cada presença [Dasein] sempre é. À luz da elaboração das constituições existenciais básicas da presença [Dasein], a estrutura complexa desta determinação ontológica só poderá ser apreendida em si mesma como problema. O conceito de facticidade abriga em si o SER-NO-MUNDO de um ente "intramundano", de maneira que este ente possa ser compreendido como algo que, em seu "destino", está ligado ao dos entes que lhe vêm ao encontro dentro de seu próprio mundo. STMSCC: §12

De início, trata-se apenas de ver a diferença ontológica entre o ser-em, como existencial, e a "interioridade" recíproca dos entes simplesmente dados, como categoria. Ao delimitarmos dessa maneira o ser-em, a presença [Dasein] não se vê despojada de toda e qualquer espécie de "espacialidade". Ao contrário, a presença [Dasein] tem seu próprio "ser no espaço", o qual, no entanto, só é possível com base e fundamento no SER-NO-MUNDO em geral. Não se pode, por conseguinte, esclarecer ontologicamente o ser-em mediante uma caracterização ôntica, dizendo: o ser-em um mundo é uma propriedade espiritual e a "espacialidade" do homem é uma qualidade de sua corporeidade (Leiblichkeit  ), fundada sempre num ser corpóreo (Kõrperlichkeit). Pois, com isso, se estaria novamente diante do ser simplesmente dado de uma coisa espiritual assim qualificada junto a uma coisa [44] corpórea, permanecendo obscuro o ser como tal do ente assim composto. A compreensão de SER-NO-MUNDO como estrutura essencial da presença [Dasein] é que possibilita a visão penetrante da espacialidade existencial da presença [Dasein]. É ela que impede a eliminação antecipada desta estrutura. Essa eliminação prévia não é motivada ontologicamente, mas "metafisicamente", pela opinião   ingênua de que primeiro o homem é uma coisa espiritual e que, só então, coloca-se "em" um espaço. STMSCC: §12

Com a facticidade, o SER-NO-MUNDO da presença [Dasein] já se dispersou ou até mesmo se fragmentou em determinados modos de ser-em. [102] Pode-se exemplificar a multiplicidade desses modos de ser-em através da seguinte enumeração: ter o que fazer com alguma coisa, produzir alguma coisa, tratar e cuidar de alguma coisa, aplicar alguma coisa, fazer desaparecer ou deixar perder-se alguma coisa, empreender, impor, pesquisar, interrogar, considerar, discutir, determinar… Estes modos de ser-em possuem o modo de ser da ocupação, que ainda será caracterizada mais profundamente. Modos de ocupação são também os modos deficientes de omitir, descuidar, renunciar, descansar, todos os modos de "ainda apenas", no tocante às possibilidades da ocupação. O termo "ocupação" tem, de início, um significado pré-científico e pode designar: realizar alguma coisa, cumprir, "levar a cabo". Mas a expressão ocupar-se de alguma coisa pode também significar "arranjar alguma coisa". Ademais, usamos ainda a mesma expressão numa fórmula característica: preocupar-se com que uma empresa fracasse. "Preocupar-se" indica, neste caso, uma espécie de ter medo. Em oposição a estes significados pré-científicos e ônticos, a presente investigação usa a expressão "ocupar-se" para designar o ser de um possível SER-NO-MUNDO. Esta escolha não foi feita porque a presença [Dasein] é, em primeiro lugar e em larga escala, "prática" e econômica, mas porque o ser da presença [Dasein] deve tornar-se visível em si mesmo como cura. Mais uma vez, deve-se tomar a expressão como um conceito ontológico de estrutura (cf. cap. 6 desta seção). Esta expressão nada tem a ver com as "penas", "tristezas" ou "preocupações" da vida as quais, do ponto de vista ôntico, podem ser encontradas em qualquer presença [Dasein]. Tudo isso, assim como a "jovialidade" e "despreocupação" só são onticamente possíveis porque, entendida ontologicamente, a presença [Dasein] é cura. Como SER-NO-MUNDO pertence ontologicamente à presença [Dasein], o seu ser para com o mundo é, essencialmente, ocupação [NH: aqui ser-homem e presença [Dasein] se equivalem]. STMSCC: §12

De acordo com o que foi dito, o SER-NO-MUNDO não é uma "propriedade" que a presença [Dasein] às vezes apresenta e outras não, como se pudesse ser igualmente com ela ou sem ela. O homem não "é" no sentido de ser e, além disso, ter uma relação com o mundo, o qual por vezes lhe viesse a ser acrescentado. A presença [Dasein] nunca é "numa primeira aproximação" um ente, por assim dizer, livre de ser-em que, algumas vezes, tem gana de assumir uma "relação" com o mundo. Esse assumir relações com o mundo só é possível porque a presença [Dasein], sendo-no-mundo, é como é. Tal constituição de ser não surge porque, além dos entes dotados do caráter da presença [Dasein], ainda se dão outros entes, os simplesmente dados, que com ela se deparam. Esses outros entes só podem deparar-se "com" a presença [Dasein] quando conseguem mostrar-se, por si mesmos, dentro de um mundo. STMSCC: §12

A formulação, hoje muito em voga, de que o homem "tem seu mundo circundante" nada diz do ponto de vista ontológico, enquanto esse "ter" permanecer indeterminado. É que, em sua possibilidade, "ter" se funda na constituição existencial do ser-em. Sendo essencialmente desse modo, a presença [Dasein] pode, então, descobrir explicitamente o ente que lhe vem ao encontro no mundo circundante, saber algo a seu respeito, dele dispor, ter "mundo". A formulação "ter um mundo circundante", tão trivial do ponto de vista ôntico, é, do ponto de vista ontológico, um problema. Para resolvê-lo é imprescindível determinar, primeiro, de maneira suficiente e ontológica, o ser da presença [Dasein]. Porque a biologia se vale dessa constituição de ser – sobretudo depois de K.E. von Baer – não se deve deduzir um "biologismo" do uso filosófico dessa constituição. É que também a biologia, enquanto ciência positiva, não pode encontrar e determinar essa estrutura. Ao contrário, deve pressupô-la e dela a fazer [NH: será que aqui se trata mesmo de "mundo"? Apenas meio ambiente! Essa "ambiência" corresponde ao "ter". Presença jamais "tem" mundo] um uso constante. Em si mesma essa estrutura só poderá ser filosoficamente explicitada como um a priori do objeto temático da biologia, depois de ter sido compreendida como estrutura da presença [Dasein]. Apenas orientando-se pela estrutura ontológica assim concebida é que se poderá definir a priori, através de uma privação, a constituição de ser da "vida". Tanto do ponto de vista ôntico como ontológico, o SER-NO-MUNDO, enquanto ocupação tem a primazia. Na analítica da presença [Dasein], essa estrutura recebe uma interpretação fundamental. STMSCC: §12

Mas será que a determinação desta constituição de ser, fornecida até aqui, não se move exclusivamente em proposições negativas? Só ouvimos o que não é este ser-em, pretensamente fundamental. De fato. Mas esta predominância de caracteres negativos não é mero acaso. Ao contrário, indica a peculiaridade do fenômeno e, portanto, num sentido autêntico e correspondente ao próprio fenômeno, algo de positivo. A demonstração fenomenológica do [104] SER-NO-MUNDO tem o caráter de uma recusa de encobrimentos e distorções porque este fenômeno já é sempre, de certo modo, "visto" em toda presença [Dasein]. E isto ocorre porque ele participa da constituição fundamental da presença [Dasein] na medida em que, com o seu ser, já se abriu à sua própria compreensão de ser. O fenômeno é, porém, na maioria das vezes, profundamente mal compreendido ou insuficientemente interpretado [NH: de fato! Ele não é absolutamente na medida do ser], do ponto de vista ontológico. Todavia, a esse "ver de certo modo e na maioria das vezes compreender mal" também se funda na constituição de ser da presença [Dasein] ela mesma, segundo a qual a presença [Dasein], numa primeira aproximação, compreende ontologicamente a si mesma (e, portanto, também o seu SER-NO-MUNDO) a partir dos entes e de seu ser, que ela mesma não é, mas que lhe vêm ao encontro [NH: uma significação retroativa] "dentro" de seu mundo. STMSCC: §12

Na própria presença [Dasein] e para ela, esta constituição de ser é, desde sempre e de alguma maneira, reconhecida. No entanto, para ser também conhecida, o conhecer explícito nessa tarefa toma a si mesmo, enquanto conhecimento do mundo, como relação exemplar entre "alma" e mundo. Por isso, conhecer o mundo (noein  ), dizer e discutir o "mundo" (logos  ) funcionam como modo primário de SER-NO-MUNDO, embora este último não seja concebido como tal. Porque, no entanto, esta estrutura de ser permanece ontologicamente inacessível, ela é experimentada onticamente como "relação" de um ente (mundo) com outro ente (alma). Ademais, porque ser é, numa primeira aproximação, compreendido apoiando-se ontologicamente no ente como ente intramundano, tenta-se compreender esta relação entre os entes mencionados com base nestes entes e no sentido de seu ser, isto é, como ser simplesmente dado. Embora experienciado e reconhecido pré-fenomenologicamente, o SER-NO-MUNDO se torna invisível por via de uma interpretação ontologicamente inadequada. Agora só se conhece a constituição da presença [Dasein] e, na verdade, como algo evidente por si mesmo, na pregnância de uma interpretação inadequada. Desse modo, esta interpretação torna-se o ponto de partida "evidente" para os problemas da epistemologia ou "metafísica do conhecimento". Pois, o que é mais evidente do que um "sujeito" referir-se a um "objeto" e vice-versa? Esta correlação de sujeito-objeto é um pressuposto necessário. Mas tudo isso, embora inatacável em sua facticidade, ou melhor, justamente por isso, permanece [105] um pressuposto fatal, quando se deixa obscura a sua necessidade e, sobretudo, o seu sentido ontológico. STMSCC: §12

Se SER-NO-MUNDO é uma constituição fundamental da presença [Dasein] em que ela se move não apenas em geral mas, sobretudo, no modo da cotidianidade, então a presença [Dasein] já deve ter sido sempre experimentada onticamente. Permanecer totalmente velada seria incompreensível, principalmente porque a presença [Dasein] dispõe de uma compreensão ontológica de si mesma, por mais indeterminada que seja. Mas logo que "o fenômeno do conhecimento do mundo" se apreende em si mesmo, sempre recai numa interpretação formal e "externa". Um indicador disso é a suposição, hoje tão corrente, do conhecimento como uma "relação de sujeito e objeto", que se mostra tão "verdadeira" quanto vazia. Sujeito e objeto não coincidem, porém a com presença [Dasein] e mundo [NH: na verdade não! Tão pouco que, já na composição, o que recusa é fatal]. STMSCC: §13

Mesmo que se lograsse determinar ontológica e primariamente o ser-em a partir do SER-NO-MUNDO que conhece, isso implicaria, como primeira tarefa indispensável, uma caracterização fenomenal do conhecimento enquanto caracterização do ser-em e para o mundo. Ao se refletir sobre esta relação de ser, dá-se, logo de início, um ente, chamado natureza, como aquilo que primeiro se conhece. Neste ente não se encontra conhecimento. Quando "há" conhecimento, este pertence unicamente ao ente que conhece. Entretanto, o conhecimento também não é simplesmente dado nesse ente, a coisa homem. De todo modo, não pode ser constatado externamente [106] como, por exemplo, propriedades de nosso corpo. Não lhe pertencendo como uma qualidade externa, o conhecimento deve estar "dentro". Assim, quanto mais univocamente se admite, em princípio, que o conhecimento está propriamente "dentro" e que nada possui do modo de ser de um ente físico e psíquico, tanto mais se acredita proceder sem pressuposições, na questão sobre a essência do conhecimento e sobre o esclarecimento da relação entre sujeito e objeto. Pois, só então é que poderá surgir o problema ou a seguinte questão: Como este sujeito que conhece sai de sua "esfera" interna e chega a uma "outra" esfera, a "externa"? Como o conhecimento pode ter um objeto? Como se deve pensar o objeto em si mesmo de modo que o sujeito chegue por fim a conhecê-lo, sem precisar arriscar o salto numa outra esfera? Nesse ponto de partida com suas múltiplas variações, abre-se mão constantemente de questionar o modo de ser do sujeito que conhece, embora, sempre, ao se tratar de seu conhecimento, esse modo de ser esteja implícito. Sem dúvida, se nos assegura que o interior ou a "esfera interna" do sujeito não é, decerto, pensada como uma "caixa" ou um "casulo". Mas reina um grande silêncio sobre o que significa positivamente o "interior" da imanência em que o conhecimento está, de início, trancado, e como o caráter ontológico deste "estar dentro" do conhecimento se funda no modo de ser do sujeito. Como quer que se interprete esta esfera interna, ao se questionar como o conhecimento dela "sai" e a "transcende", logo aparece que se considera o conhecimento problemático, sem que antes se tenha esclarecido como é e o que é em si mesmo este conhecimento que impõe a tarefa de um tal enigma. STMSCC: §13

Partindo dessa suposição, não se vê o que já está implicitamente dito na tematização mais provisória do fenômeno do conhecimento, a saber, que conhecer é um modo de ser da presença [Dasein] enquanto SER-NO-MUNDO, isto é, que o conhecer tem seu fundamento ôntico nesta constituição de ser. Contra esta indicação do achado fenomenal de que conhecer é um modo ontológico do SER-NO-MUNDO, poder-se-ia objetar que, com uma tal interpretação do conhecimento, aniquila-se o problema do conhecimento; pois o que ainda haveria de se questionar, quando se pressupõe que o conhecimento já está em seu mundo e que, na verdade, ele só poderia ser alcançado, [107] transcendendo o sujeito? Mesmo não se considerando que, na questão assim formulada, reaparece, mais uma vez, o "ponto de vista" construtivista, não demonstrado nos fenômenos, há de se perguntar que instância decide se e em qual sentido deve haver um problema do conhecimento, a não ser o próprio fenômeno do conhecimento e o modo de ser de quem conhece. STMSCC: §13

Se perguntarmos, agora, o que se mostra nos dados fenomenais do próprio conhecimento, deve-se admitir que o conhecer em si mesmo se funda previamente num já-ser-junto-ao-mundo, no qual o ser da presença [Dasein] se constitui de modo essencial. Mas esse já-ser-junto-a não é, de início, apenas agarrar com rigidez algo simplesmente dado. Enquanto ocupação, o SER-NO-MUNDO é tomado pelo mundo de que se ocupa. É necessário que ocorra previamente uma deficiência do afazer que se ocupa do mundo para que o conhecimento, no sentido de determinação observadora de algo simplesmente dado, se torne possível. Abstendo-se de todo produzir, manusear etc, a ocupação se concentra no único modo ainda restante de ser-em, ou seja, no simples demorar-se junto a… com base nesse modo de ser para o mundo, que só permite um encontro com o ente intramundano em sua pura configuração (eidos  ) e como modo dessa maneira de ser, é que se torna possível [NH: com a ab-stração ainda não se tem a visualização, pois esta possui uma origem própria e tem como consequência necessária a abstração; a consideração possui sua própria originariedade. A visão do eidos requer algo diferente] uma visualização explícita do que assim vem ao encontro. Essa visualização é sempre um direcionamento para…, um encarar o ente simplesmente dado. Retira antecipadamente do ente que vem ao encontro um "ponto de vista". Essa visualização se dá em si mesma, demorando-se, de modo autônomo, junto ao ente intramundano. Nessa "demora" enquanto abstenção de todo manuseio e utilização – cumpre-se a percepção de um ente simplesmente dado. Esse perceber se realiza no modo de dizer e discutir algo como algo. A percepção torna-se determinação com base neste interpretar, entendido em sentido amplo. O que se percebe e determina pode ser pronunciado em proposições e manter-se e preservar-se nessa qualidade de enunciado. A manutenção perceptiva de um enunciado sobre… já é, em si mesma, um modo de SER-NO-MUNDO e não pode ser interpretada como um "processo", através do qual um sujeito cria para si representações de alguma coisa, de tal maneira que estas representações, assim apropriadas, se conservem "dentro", para, somente então, por [108] vezes, ser possível a pergunta de como elas haverão de "concordar" com a realidade. STMSCC: §13

Ao dirigir-se para… e apreender, a presença [Dasein] não sai de uma esfera interna em que antes estava encapsulada. Em seu modo de ser originária, a presença [Dasein] já está sempre "fora", junto a um ente que lhe vem ao encontro no mundo já descoberto. E o deter-se determinante junto ao ente a ser conhecido não é uma espécie de abandono da esfera interna. De forma nenhuma. Nesse "estar fora", junto ao objeto, a presença [Dasein] está "dentro", num sentido que deve ser entendido corretamente, ou seja, é ela mesma que, como SER-NO-MUNDO, conhece. E, mais uma vez, a percepção do que é conhecido não é um retorno para o "casulo" da consciência (Bewusstsein  ) com uma presa na mão, após se ter saído em busca de apreender alguma coisa. De forma nenhuma. Quando, em sua atividade de conhecer, a presença [Dasein] percebe, conserva e mantém, ela, como presença [Dasein], permanece fora. Tanto num mero saber acerca do contexto ontológico de um ente, num "mero" representar a si mesmo, num "simples" "pensar" em alguma coisa, como numa apreensão originária, eu estou fora no mundo, junto ao ente. Da mesma maneira que todo engano e erro, o esquecimento de alguma coisa em que, aparentemente, se apaga qualquer relação de ser com o que antes se sabia, deve ser concebido como uma modificação do ser-em originário. STMSCC: §13

Esse contexto de fundamentação dos modos de SER-NO-MUNDO constitutivos do conhecimento de mundo evidencia que, ao conhecer, a presença [Dasein] adquire um novo estado de ser, no tocante ao mundo já sempre descoberto. Esta nova possibilidade de ser pode desenvolver-se autonomamente, pode tornar-se uma tarefa e, como ciência, assumir a direção do SER-NO-MUNDO. Todavia, não é o conhecimento quem cria pela primeira vez um "commercium" do sujeito com um mundo e nem este commercium surge de uma ação exercida pelo mundo sobre o sujeito. Conhecer, ao contrário, é um modo da presença [Dasein] fundado no SER-NO-MUNDO. É por isso também que, como constituição fundamental, o SER-NO-MUNDO requer uma interpretação preliminar. [109] STMSCC: §13

Em primeiro lugar, deve-se tornar visível o SER-NO-MUNDO no tocante ao momento estrutural "mundo". O cumprimento desta tarefa parece tão fácil e trivial que sempre se acredita poder-se dela prescindir. O que poderia significar descrever o "mundo" como fenômeno? Seria deixar e fazer ver o que se mostra no "ente" dentro do mundo. O primeiro passo consistiria, então, em elencar tudo o que se dá no mundo: casas, árvores, homens, montes, estrelas. Podemos retratar a "configuração" desses entes e contar o que neles e com eles ocorre. Mas é evidente que tudo isso permanecerá um "ofício" pré-fenomenológico que, do ponto de vista fenomenológico, não pode ser relevante. A descrição fica presa aos entes. É ôntica. O que, porém, se procura é o ser. Em sentido fenomenológico, determinou-se a estrutura formal de "fenômeno" como o que se mostra enquanto ser e estrutura de ser. STMSCC: §14

"Mundanidade" é um conceito ontológico e significa a estrutura de um momento constitutivo de SER-NO-MUNDO. Este, nós o conhecemos como uma determinação existencial da presença [Dasein]. Assim, a mundanidade já é em si mesma um existencial. Quando investigamos ontologicamente o "mundo", não abandonamos, de forma nenhuma, o campo temático da analítica da presença [Dasein]. Do ponto de [111] vista ontológico, "mundo" não é determinação de um ente que a presença [Dasein] em sua essência não é. "Mundo" é um caráter da própria presença [Dasein]. Isto não exclui que o caminho de investigação do fenômeno "mundo" deva seguir os entes intramundanos e seu ser. A tarefa de "descrição" fenomenológica do mundo é tão pouco clara que já a sua determinação suficiente exige esclarecimentos ontológicos essenciais. STMSCC: §14

Um passar de olhos pela ontologia tradicional mostrará que, junto com a ausência da constituição da presença [Dasein] como SER-NO-MUNDO, também se salta por cima do fenômeno da mundanidade. Em seu lugar, tenta-se interpretar o mundo a partir do ser de um ente intramundano e, ademais, de um ente intramundano não descoberto como tal, ou seja, a partir da natureza [NH: "natureza" aqui entendida kantianamente, no sentido da física moderna]. Entendida em sentido ontológico-categorial, a natureza é um caso limite do ser de um possível ente intramundano. A presença [Dasein] só pode descobrir o ente como natureza num determinado modo de seu SER-NO-MUNDO. Esse conhecimento tem o caráter de uma determinada desmundanização do mundo. Enquanto conjunto categorial das estruturas de ser de um ente determinado, que vem ao encontro dentro do mundo, a "natureza" nunca poderá tornar [NH: mas o contrário!] compreensível a mundanidade. Do mesmo modo, o fenômeno "natureza", no sentido do conceito romântico de natureza, só poderá ser apreendido ontologicamente a partir do conceito de mundo, ou seja, através da analítica da presença [Dasein]. STMSCC: §14

As indicações metodológicas já foram assim apresentadas. O SER-NO-MUNDO e com isso também o mundo deve tornar-se tema da analítica no horizonte da cotidianidade mediana enquanto modo de ser mais próximo da presença [Dasein]. Para se ver o mundo é, pois, necessário visualizar o SER-NO-MUNDO cotidiano em sua sustentação fenomenal. STMSCC: §14

O mundo mais próximo da presença [Dasein] cotidiana é o mundo circundante . Para se chegar à ideia de mundanidade, a investigação seguirá o caminho que parte desse caráter existencial do SER-NO-MUNDO mediano. Passando por uma interpretação ontológica dos entes que vêm ao encontro dentro do mundo circundante, poderemos buscar a mundanidade do mundo circundante (circumundanidade). A expressão mundo circundante aponta no "circundante" para uma espacialidade. O "circundar", constitutivo do mundo circundante, não possui, de maneira nenhuma, um sentido primordialmente "espacial". O caráter espacial que pertence indiscutivelmente ao mundo circundante há de ser esclarecido, ao contrário, a partir da estrutura da mundanidade. Somente a partir daí poder-se-á ver o fenômeno da espacialidade da presença [Dasein], esboçado no §12. Ora, a ontologia tentou justamente interpretar o ser do "mundo" como res extensa  , partindo da espacialidade. É em Descartes   que se mostra a tendência mais extremada para uma ontologia do "mundo" desta espécie, ontologia edificada em contraposição à res cogitans   que, porém, não coincide, nem do ponto de vista ôntico, nem do ontológico, com a presença [Dasein]. Pode-se esclarecer a análise da mundanidade aqui tentada, distinguindo-a desta tendência ontológica cartesiana. É o que se haverá de cumprir em três etapas: A. Análise da mundanidade circundante e da mundanidade em geral. B. Esclarecimento da análise da mundanidade por contraposição à ontologia do "mundo" de Descartes. C. O circundante do mundo circundante e a "espacialidade" da presença [Dasein]. STMSCC: §14

A demonstração fenomenológica do ser dos entes que se encontram mais próximos faz-se pelo fio condutor do SER-NO-MUNDO cotidiano, que também chamamos de modo de lidar no mundo e com o ente intramundano. Esse modo de lidar já sempre se dispersou numa multiplicidade de modos de ocupação. Como se viu, o modo mais imediato de lidar não é o conhecer meramente perceptivo [114] e sim a ocupação no manuseio e uso, a qual possui um "conhecimento" próprio. A questão fenomenológica vale, sobretudo, para o ser dos entes que vêm ao encontro nessa ocupação. Para se assegurar a visão aqui exigida, faz-se necessária uma observação metodológica preliminar. STMSCC: §15

O modo de ser desse ente é a manualidade. Não se pode compreendê-la, porém, como mero caráter de apreensão [NH: mas na verdade somente caráter de encontro], como se tais "aspectos" fossem impostos numa fala ao "ente" que de imediato vem ao encontro, ou como se uma matéria do mundo, já simplesmente dada em si, fosse desse modo "colorida subjetivamente". Uma interpretação assim orientada desconsidera que, para tanto, o ente deveria ser previamente compreendido como algo pura e simplesmente dado e que, em decorrência, um modo de lidar com o "mundo" que o descobre e dele se apropria passa a ter primado e autoridade. Isso já contradiz o sentido ontológico do conhecimento que demonstramos como modo fundado do SER-NO-MUNDO. Esse SER-NO-MUNDO só chega a explicitar o que é simplesmente dado, através do que está à mão na ocupação. Manualidade é a determinação categorial dos entes tais como são "em si". Todavia, a manualidade apenas se dá com base em algo simplesmente dado. Admitindo-se essa tese, seguir-se-ia, então, que a manualidade está fundada ontologicamente no ser simplesmente dado? STMSCC: §15

O mundo ele mesmo não é um ente intramundano, embora o determine de tal modo que, ao ser descoberto e encontrado em seu ser, o ente intramundano só possa mostrar-se porque mundo "se dá" . Como, porém, "dá-se" mundo? Se a presença [Dasein] se constitui onticamente pelo SER-NO-MUNDO e se também pertence essencialmente ao seu ser uma compreensão do ser de si mesmo, por mais indeterminada que seja, não haveria, pois, uma compreensão de mundo, uma compreensão pré-ontológica, que pudesse dispensar uma visão ontológica explícita e assim o fizesse? Será que para o SER-NO-MUNDO que se acha na ocupação do ente intramundano, ou seja, a sua intramundanidade, não se mostra algo assim como mundo? Não será que esse fenômeno sempre se apresenta numa visão pré-fenomenológica? Não será que sempre se dá numa tal visão, mesmo sem exigir tematicamente uma interpretação ontológica? A própria presença [Dasein], no âmbito de seu empenho ocupacional com o instrumento manual, não possui uma possibilidade ontológica em que, de certo modo, a mundanidade se lhe evidencia junto com o ente intramundano da ocupação? STMSCC: §16

À cotidianidade de SER-NO-MUNDO pertencem modos de ocupação que permitem o encontro com o ente de que se ocupa, de tal maneira que apareça a determinação mundana dos entes intramundanos. Na ocupação, o ente que está mais imediatamente à mão pode ser encontrado como algo que não é passível de ser empregado ou como algo que não se acha em condições de cumprir seu emprego específico. O utensílio se apresenta danificado, o material inadequado. Em todo caso, um instrumento está aqui à mão. Mas o que a impossibilidade de emprego descobre não é a constatação visual de propriedades e sim a circunvisão da lida no uso. Nessa descoberta da impossibilidade de emprego, o instrumento surpreende. [121] A surpresa proporciona o instrumento num determinado modo de não estar à mão. Entretanto, aí se acha o seguinte: o que não pode ser usado está simplesmente aí – mostra-se como coisa-instrumento, dotada de tal e tal configuração, e que, em sua manualidade, é sempre simplesmente dada nessa configuração. O puro ser simplesmente dado anuncia-se no instrumento de modo a, contudo, recolher-se novamente à manualidade do que se acha em ocupação, ou seja, do que se encontra na possibilidade de se pôr de novo em condições. Esse ser simplesmente dado do que não pode ser usado não carece, todavia inteiramente de manualidade. O instrumento assim simplesmente dado ainda não é uma coisa que aparece em algum lugar. A danificação do instrumento também ainda não é sua transformação em simples coisa ou uma mera troca de características de algo simplesmente dado. STMSCC: §16

Segundo a interpretação feita até aqui, SER-NO-MUNDO significa: empenhar-se de maneira não temática, guiando-se pela circunvisão, nas referências constitutivas da manualidade de um conjunto instrumental. A ocupação já é o que é, com base numa familiaridade com o mundo. Nessa familiaridade, a presença [Dasein] pode perder-se e ser absorvida pelo ente intramundano que vem ao seu encontro. O que é isso com que a presença [Dasein] se familiariza e por que a determinação mundana dos entes intramundanos pode aparecer? Como se deve compreender mais precisamente a totalidade referencial em que se "move" a circunvisão e cujas possíveis quebras impõem o ser simplesmente dado dos entes? STMSCC: §16

O que diz a ação de mostrar de um sinal? A resposta só é possível, determinando-se o modo de lidar adequado com o instrumento-sinal. Para isso, deve ser também possível apreender, de modo genuíno, a sua manualidade. Qual a maneira adequada de tratar com sinais? Seguindo a orientação do exemplo mencionado (seta), deve-se dizer: o comportamento correspondente (ser) aos sinais encontrados é o "desvio" ou o "ficar parado" diante do veículo que se aproxima com uma seta acionada. O desviar-se, enquanto tomada de uma direção, pertence essencialmente ao SER-NO-MUNDO da presença [Dasein]. Ela sempre está, de algum modo, a caminho e numa direção; ficar e parar são apenas casos limites desse "estar a caminho" direcionado. [128] O sinal se dirige a um SER-NO-MUNDO especificamente espacial. Propriamente, não "apreendemos" o sinal quando somente o olhamos e constatamos ser ele uma coisa que mostra. Mesmo quando seguimos com os olhos a direção mostrada pela seta e vemos algo simplesmente dado no sentido em que aponta a seta, também não nos encontramos, em sentido próprio, com o sinal. Ele se volta para a circunvisão do modo de lidar da ocupação e isso de tal maneira que a circunvisão, seguindo-lhe a indicação, dá uma "visão panorâmica" explícita de cada envergadura do mundo circundante. A visão panorâmica da circunvisão não apreende o que está à mão; ao contrário, ela recebe uma orientação no mundo circundante. Uma outra possibilidade da experiência do instrumento consiste na seta se apresentar como um instrumento pertencente ao veículo; com isso, não é preciso que se tenha descoberto o caráter instrumental específico da seta, podendo permanecer inteiramente indeterminado o que e como ele mostra e, apesar disso, o que assim vem ao encontro não é uma simples coisa. Ao contrário da constatação imediata de uma multiplicidade indeterminada de instrumentos, a experiência de uma coisa exige a sua determinação própria. STMSCC: §17

Poder-se-ia ficar tentado a ilustrar o papel primordial do sinal na ocupação cotidiana para a própria compreensão do mundo com o uso abundante de "sinais", característico da presença [Dasein] primitiva, ou seja, com o fetiche e a magia. Decerto, a criação de sinais à base desse tipo de uso de sinais não se faz segundo uma intenção teórica nem através de uma especulação teórica. O uso de sinais permanece inteiramente no âmbito de um SER-NO-MUNDO "imediato". Num exame mais minucioso, porém, torna-se claro que a interpretação de fetiche e magia feita pela ideia de sinal não é, de modo algum, suficiente para apreender o modo de "estar à mão" dos entes que vêm ao encontro no mundo primitivo. No que concerne ao fenômeno do sinal, poder-se-ia fazer a seguinte interpretação: para o homem primitivo, o sinal e o assinalado coincidem. O próprio sinal pode representar o assinalado não somente no sentido de substituí-lo, mas, sobretudo, no sentido de que o próprio sinal é sempre o assinalado. Essa estranha coincidência de sinal e assinalado não reside, contudo, em a coisa sinal já ter feito a experiência de uma certa "objetivação", sendo experimentada como pura coisa e, desse modo, transferida com o assinalado para o mesmo âmbito ontológico do simplesmente dado. A "coincidência" não é identificação do que antes estava isolado mas um sinal que ainda-não-está-livre do designado. Esse uso de sinal desaparece inteiramente em ser para o assinalado, a ponto de ainda não se poder separar um sinal como tal. A coincidência não se funda numa primeira objetivação mas na total falta de objetivação. Isso significa, no entanto, que os sinais não foram descobertos como instrumento e que, por fim, o "manual" intramundano ainda não possui de forma alguma o modo de ser do instrumento. Presumivelmente, esse diapasão ontológico (manualidade e instrumento), bem como a ontologia da coisalidade, não podem contribuir em nada para uma interpretação do mundo primitivo. Se, no entanto, uma compreensão de ser é constitutiva da presença [Dasein] primitiva e do mundo primitivo em geral, então torna-se ainda mais urgente a elaboração da ideia "formal" de mundanidade, ou seja, de um fenômeno que é de tal maneira passível de modificações que todos os enunciados ontológicos, seja no contexto fenomenal prefixado do que ainda não é isso ou do que já não é mais isso, recebam um sentido fenomenal positivo a partir do que não é. STMSCC: §17

Mas o que significa dizer que a perspectiva para a qual se libera, pela primeira vez, o ente intramundano deve estar previamente aberta? Ao ser da presença [Dasein] pertence uma compreensão de ser. Compreensão tem o seu ser num compreender. Se convém essencialmente à presença [Dasein] o modo de SER-NO-MUNDO, é que compreender SER-NO-MUNDO pertence ao teor essencial de sua compreensão de ser. A abertura prévia da perspectiva, em que acontece a liberação dos entes intramundanos que vêm ao encontro, nada mais é do que o compreender de mundo com que a presença [Dasein], enquanto ente, já está sempre em relação. STMSCC: §18

O deixar e fazer previamente junto… com… funda-se num compreender de algo como deixar e fazer em conjunto, numa compreensão de ser e estar junto e de estar com de uma conjuntura. Isso e o que lhe subjaz mais remotamente como o ser para isso, em cuja conjuntura se dá o em virtude de para onde retorna, em última instância, todo para quê (Wozu  ), tudo isso já deve estar previamente aberto numa compreensibilidade. Mas em que a presença [Dasein] se compreende pré-ontologicamente como SER-NO-MUNDO? Ao compreender o contexto de remissões supramencionado, a presença [Dasein] já se referiu a um ser para, a partir de um poder ser explícito ou implícito, próprio ou impróprio, em virtude do qual ela mesma é. Assim, delineia-se um ser para isso, como possível estar junto de um deixar e [136] fazer em conjunto, o qual estruturalmente deixa e faz entrar junto com alguma coisa. A partir de um em virtude de, a presença [Dasein] sempre se refere ao estar com de uma conjuntura, ou seja, já permite sempre, em sendo, que o ente venha ao encontro como manual. A perspectiva dentro da qual se deixa e se faz o encontro prévio dos entes constitui o contexto em que a presença [Dasein] se compreende previamente segundo o modo de referência. O fenômeno do mundo é o em quê (Worin) da compreensão referencial, enquanto perspectiva de um deixar e fazer encontrar um ente no modo de ser da conjuntura. A estrutura da perspectiva em que a presença [Dasein] se refere constitui a mundanidade do mundo. STMSCC: §18

O compreender, que a seguir será analisado mais profundamente (cf. §31), contém, numa abertura prévia, as remissões mencionadas. Detendo-se nessa familiaridade, o compreender atém-se a estas remissões como o contexto em que se movem as suas referências. O próprio compreender se deixa referenciar nessas e para essas remissões. Apreendemos o caráter de remissão dessas remissões de referência como ação de signi-ficar . Na familiaridade com essas remissões, a presença [Dasein] "significa" para si mesma, ela oferece o seu ser e seu poder-ser a si mesma para uma compreensão originária, no tocante ao SER-NO-MUNDO. O em virtude de significa um ser para, este um ser para isso, esse um estar junto em que se [137] deixa e faz em conjunto, esse um estar com da conjuntura. Essas remissões estão acopladas entre si como totalidade originária. Elas são o que são enquanto ação de signi-ficar (Be-deuten), onde a própria presença [Dasein] se dá a compreender previamente a si mesma no seu SER-NO-MUNDO. Chamamos de significância o todo das remissões dessa ação de significar (Bedeuten  ). A significância é o que constitui a estrutura de mundo em que a presença [Dasein] [NH: a presença [Dasein] em que o homem vigora] já é sempre como é. Em sua familiaridade com a significância, a presença [Dasein] é a condição ôntica de possibilidade para se poder descobrir os entes que num mundo vêm ao encontro no modo de ser da conjuntura (manualidade) e que se podem anunciar em seu em-si. A presença [Dasein] como tal é sempre esta presença [Dasein] com a qual já se descobre essencialmente um contexto de manuais. Sendo, a presença [Dasein] já se [NH: mas não como uma ação e feito, dotados de eu, de um sujeito. Mas, presença [Dasein] e ser.] referiu a um "mundo" que lhe vem ao encontro, pois pertence essencialmente a seu ser uma referencialidade. STMSCC: §18

A abertura da significância como constituição existencial da presença [Dasein], o SER-NO-MUNDO, é a condição ôntica da possibilidade de se descobrir uma totalidade conjuntural. STMSCC: §18

No âmbito do presente campo de investigação, as diferenças repetidas vezes marcadas entre as estruturas e dimensões da problemática ontológica devem-se manter fundamentalmente separadas: 1) o ser dos entes intramundanos, que primeiro vêm ao encontro (manualidade); 2) o ser dos entes (ser simplesmente dado) que se acham e se podem determinar num percurso autônomo de descoberta através dos entes que primeiro vêm ao encontro; 3) o ser da condição ôntica de possibilidade da descoberta de entes intramundanos em geral, a mundanidade [NH: melhor, a vigência do mundo] do mundo. Este último é uma determinação [138] existencial do SER-NO-MUNDO, ou seja, da presença [Dasein]. Os outros dois conceitos de ser são categorias e abrangem entes que não possuem o modo de ser da presença [Dasein]. Pode-se apreender formalmente o conceito referencial que constitui o mundo como significância no sentido de um sistema de relações. Deve-se, porém, observar que tais formalizações nivelam de tal modo os fenômenos que, em remissões tão "simples" como as que a significância abriga, perdem o conteúdo propriamente fenomenal. Essas "relações" e "relatas" do ser-para, do ser em virtude de, do estar com de uma conjuntura, em seu conteúdo fenomenal, resistem a toda funcionalização matemática; também não são algo pensado, posto pela primeira vez pelo pensamento, mas remissões em que a circunvisão da ocupação sempre se detém como tal. Esse "sistema de relações" constitutivo da mundanidade dissolve tão pouco o ser do manual intramundano que, na verdade, é só com base na mundanidade do mundo que ele pode descobrir-se em seu "em-si substancial". E somente quando o ente intramundano em geral puder vir ao encontro é que subsiste a possibilidade de se tornar acessível o que, no âmbito deste ente, é simplesmente dado. Com base neste ser simplesmente dado é que se podem determinar matematicamente "propriedades" desses entes em "conceitos de funções". Conceitos de função dessa espécie só se tornam ontologicamente possíveis remetendo-se a um ente cujo ser possui o caráter de pura substancialidade. Conceitos de função não são outra coisa do que conceitos formalizados de substância. STMSCC: §18

A ideia de ser como constância do ser simplesmente dado motiva não apenas uma determinação extremada do ser dos entes intramundanos e de sua identificação com o mundo em geral, como também impede que se perceba, de maneira ontologicamente adequada, os comportamentos da presença [Dasein]. com isso veda-se completamente o caminho para se ver o caráter fundado de toda percepção sensível e intelectual e para compreendê-las como uma possibilidade do SER-NO-MUNDO. Descartes, no entanto, apreende o ser da "presença [Dasein]", a cuja constituição fundamental pertence o SER-NO-MUNDO, da mesma maneira que o ser da res extensa, isto é, como substância. STMSCC: §21

No contexto de uma primeira caracterização do ser-em (cf. §12), a presença [Dasein] teve de ser delimitada frente a um modo de ser no espaço, que denominamos interioridade. Esta significa: um ser constituído em si mesmo pela extensão está cercado pelos limites extensos de alguma coisa extensa. O ente interior e a cerca são ambos simplesmente dados no espaço. A recusa de uma tal interioridade da presença [Dasein] num continente espacial não significa, contudo, excluir em princípio toda espacialidade da presença [Dasein]. Trata-se apenas de deixar livre o caminho para se perceber a espacialidade essencial da presença [Dasein]. É esta agora que deve ser explicitada. Como, porém, o ente intramundano está igualmente no espaço, também a sua essa espacialidade acha-se [NH: portanto, mundo é também espacial] numa ligação ontológica com o mundo. Por isso, deve-se determinar em que sentido o espaço é um constitutivo do mundo que, por sua vez, foi caracterizado como momento estrutural de SER-NO-MUNDO. De modo especial, há de se mostrar como o circundante do mundo circundante, a espacialidade específica do próprio ente que vem ao encontro no mundo circundante, funda-se na mundanidade do mundo e não o contrário, isto é, que o mundo seria simplesmente dado no espaço. A investigação da espacialidade da presença [Dasein] e da determinação espacial do mundo parte de uma análise do manual intramundano no espaço. Essa consideração percorre três etapas: 1. A espacialidade do manual intramundano (§22); 2. A espacialidade do SER-NO-MUNDO (§23); 3. A espacialidade da presença [Dasein] e o espaço (§24). STMSCC: §21

Regiões não se formam a partir de coisas simplesmente dadas em conjunto, mas estão sempre à mão nos vários lugares específicos. Os próprios lugares dependem dos entes que se acham à mão na circunvisão da ocupação ou que, como tais, são encontrados. O que constantemente está à mão não tem um lugar, pois é previamente levado em conta pelo SER-NO-MUNDO da circunvisão. O onde de sua manualidade é levado em conta na ocupação e se orienta [156] para os demais entes à mão. Assim, por exemplo, o sol cuja luz e calor são usados cotidianamente possui seus lugares marcados e descobertos pela circunvisão, a partir da possibilidade de emprego variável daquilo que ele propicia: o nascente, o meio-dia, o poente, a meia-noite. Os lugares deste manual em contínua mudança, e não obstante uniforme, tornam-se "indicações" privilegiadas de suas regiões. Esses pontos cardeais, que ainda não precisam ter um sentido geográfico, proporcionam previamente o para onde de todo delineamento ulterior de qualquer região que possa vir a ser ocupada por lugares. A casa tem o seu lado do sol e o seu lado da ventilação; por ele se orienta a distribuição dos "cômodos" e nestes, novamente, a "instalação" de acordo com o seu caráter instrumental. Igrejas e sepulturas, por exemplo, são situadas segundo o nascente e o poente, regiões da vida e da morte, a partir das quais a própria presença [Dasein] se determina no tocante às suas possibilidades mais próprias de SER-NO-MUNDO. A ocupação da presença [Dasein] que, sendo, está em jogo seu próprio ser, descobre previamente as regiões em que, cada vez, está em jogo uma conjuntura decisiva. A descoberta prévia das regiões também se determina pela totalidade conjuntural em que se libera o manual enquanto aquilo que vem ao encontro. STMSCC: §22

A manualidade prévia de cada região possui um sentido ainda mais originário do que o ser do manual, a saber, o caráter de familiaridade que não causa surpresa. Ela mesma só se torna visível no modo da surpresa, numa descoberta do que está à mão, guiada pela circunvisão segundo os modos deficientes de ocupação. A região do lugar, muitas vezes, torna-se explicitamente acessível como tal pela primeira vez quando alguma coisa não se encontra em seu lugar. O espaço que, no SER-NO-MUNDO da circunvisão, descobre-se como espacialidade do todo instrumental, pertence sempre ao próprio ente como o seu lugar. O mero espaço ainda se acha velado. O espaço está fragmentado [NH: não, justamente uma unidade dos locais, especial e não fragmentada] em lugares. Essa espacialidade, no entanto, dispõe de sua própria unidade através da totalidade conjuntural mundana do que está à mão no espaço. O "mundo circundante" não se orienta num espaço previamente dado, mas a sua manualidade específica articula, na significância, o contexto conjuntural de uma totalidade específica de lugares referidos à circunvisão. Cada mundo sempre descobre a espacialidade do espaço que lhe pertence. Do ponto de vista ôntico, a possibilidade de encontro com um manual em seu espaço circundante só é possível porque a própria presença [Dasein] é "espacial", no tocante a seu SER-NO-MUNDO. STMSCC: §22

§23. A espacialidade do SER-NO-MUNDO STMSCC: §23

Quando, em suas ocupações, a presença [Dasein] aproxima de si alguma coisa, isto não significa que a tenha fixado numa posição do espaço que possua o menor intervalo de algum ponto do seu corpo. Aproximar significa: na periferia do que está imediatamente à mão numa circunvisão. A aproximação não se orienta pela coisa-eu dotada de corpo, mas pelo SER-NO-MUNDO da ocupação, isto é, pelo que sempre vem ao encontro imediatamente no SER-NO-MUNDO. A espacialidade da presença [Dasein] também não se determina, indicando-se a posição em que uma coisa corpórea é simplesmente dada. Sem dúvida, também dizemos que a presença [Dasein] sempre ocupa um lugar. Este "ocupar", no entanto, deve ser em princípio distinto do estar à mão num lugar, dentro de uma região. Ocupar um lugar deve ser concebido como distanciar o manual do mundo circundante dentro de uma região previamente descoberta numa circunvisão. A presença [Dasein] compreende o aqui a partir de um lá do mundo circundante. O aqui não indica o [161] onde de algo simplesmente dado, mas o estar junto de um ser que produz simultaneamente com esse dis-tanciamento. De acordo com sua espacialidade, a presença [Dasein], numa primeira aproximada, nunca esta aqui, mas sempre lá, de onde retorna para aqui. Todavia, tudo isso apenas se dá no modo em que a presença [Dasein] interpreta o seu ser-para… das ocupações a partir do que lá está a mão. É o que se torna totalmente claro pela particularidade fenomenal inerente a estrutura do dis-tanciamento, própria do ser-em. STMSCC: §23

Como SER-NO-MUNDO, a presença [Dasein] se mantém essencialmente num distanciar. A presença [Dasein] nunca pode cruzar esse dis-tanciamento, a distância em que o manual está de si mesmo. A distância de um manual pode, sem dúvida, ser constatada pela presença [Dasein] como intervalo quando, por exemplo, se determina a distância com relação a uma coisa que se pensa dada simplesmente num lugar que antes a presença [Dasein] havia ocupado. Este entre do intervalo só poderá ser atravessado posteriormente pela presença [Dasein] na condição de o próprio intervalo tornar-se distante. A presença [Dasein] não cruza de forma alguma o seu dis-tanciamento e isso a tal ponto que o leva consigo constantemente, pois a presença [Dasein] é essencialmente dis-tanciamento, ou seja, é espacial. A presença [Dasein] não pode percorrer a periferia de seus dis-tanciamentos. Ela pode apenas transformá-los. Espacial, a presença [Dasein] existe segundo o modo da descoberta do espaço inerente a circunvisão, no sentido de se relacionar num continuo distanciamento com os entes que lhe vêm ao encontro no espaço. STMSCC: §23

Em seu ser-em, que instala dis-tanciamento, a presença [Dasein] também possui o caráter de direcionamento. Toda aproximação toma antecipadamente uma direção dentro de uma região, a partir da qual o dis-tanciado se aproxima para poder ser encontrado em seu lugar. A ocupação exercida na circunvisão é um distanciamento direcional. Nessa ocupação, isto é, no SER-NO-MUNDO da própria presença [Dasein], já se dá previamente a necessidade de "sinais"; é esse instrumento que assume a indicação explicita e facilmente manuseável das direções. E ele que mantém expressamente abertas as regiões utilizadas na circunvisão, cada destino do pertencer, do encaminhar-se, do ir buscar e levar. Sendo, a presença [Dasein], na qualidade de um ser que distancia e se direciona, possui um regido já desde sempre descoberta. Assim como o dis-tanciamento, o direcionamento [162] direcionamento é conduzido, previamente, como modo de SER-NO-MUNDO pela circunvisão da ocupação. STMSCC: §23

Deve-se, porém, considerar que o direcionamento próprio do distanciamento funda-se no SER-NO-MUNDO. Assim, a direita e a esquerda não são coisas "subjetivas" das quais o sujeito possui uma sensação, mas sim direções do direcionamento, dentro de um mundo já sempre à mão. "Pelo puro sentimento da diferença de meus dois lados", nunca poderia localizar-me corretamente no mundo. O sujeito com "puros sentimentos" desta diferença é um ponto de partida construtivo que desconsidera a verdadeira constituição do sujeito, a saber, que para poder orientar-se, a presença [Dasein] já está e já deve estar num mundo junto com esse "puro sentimento". É o que aparece claramente no exemplo com que Kant   tenta esclarecer o fenômeno da orientação. STMSCC: §23

Suponha-se que eu entre num quarto conhecido mas escuro que, durante minha ausência, foi rearrumado de tal maneira que tudo que estava à direita esteja agora à esquerda. Para me orientar, de nada serve o "puro sentimento da diferença" de meus dois lados, enquanto não tiver tocado um determinado objeto, diz Kant, [163] "cuja posição tenho na memória". O que isto significa sendo que eu me oriento necessariamente num mundo e a partir de um mundo já "conhecido"? O conjunto instrumental de um mundo [NH: a partir da pertinência conhecida que eu preservo e segundo a qual me transformo] já deve ter sido dado previamente a presença [Dasein]. Que eu já sempre esteja num mundo, isto não e menos constitutivo da possibilidade de orientação do que o sentimento de direita e esquerda. A evidência dessa constituição de ser da presença [Dasein] não justifica que se diminua o seu papel ontologicamente constitutivo. Kant não o diminuiu assim como qualquer outra interpretação da presença [Dasein]. A contínua utilização dessa constituição não dispensa porem uma explicação ontológica adequada, ao contrario, ela a exige. A interpretação psicológica de que o eu possui algo "na memória", no fundo, tem em mente a constituição existencial de SER-NO-MUNDO. Como Kant não vê essa estrutura, também não reconhece todo o contexto de constituição de uma orientação possível. O direcionamento pela direita e esquerda baseia-se no direcionamento essencial da presença [Dasein] que, por sua vez, determina-se também essencialmente pelo SER-NO-MUNDO. Sem dúvida, Kant não esta preocupado com uma interpretação temática da orientação. Ele pretende apenas mostrar que toda orientação necessita de um "principio   subjetivo". "Subjetivo" significa aqui a priori. O a priori do direcionamento segundo direita e esquerda funda-se, por sua vez, no a priori "subjetivo" de SER-NO-MUNDO, que nada tem a ver com uma determinação previamente restrita a um sujeito destituído de mundo. STMSCC: §23

Dis-tanciamento e direcionamento enquanto características constitutivas do serem determinam a espacialidade da presença [Dasein] de estar no espaço intramundano, descoberto na circunvisão das ocupações. A explicação dada ate aqui sobre a espacialidade do manual intramundano e a espacialidade do SER-NO-MUNDO propicia as pressuposições para se elaborar o fenômeno da espacialidade do mundo e se colocar o problema ontológico do espaço. STMSCC: §23

Enquanto SER-NO-MUNDO, a presença [Dasein] já descobriu a cada passo um "mundo". Caracterizou-se esse descobrir, fundado na mundanidade [164] do mundo, como liberação dos entes numa totalidade conjuntural. A ação liberadora de deixar e fazer em conjunto se perfaz no modo da referência, guiada pela circunvisão e fundada numa compreensão prévia da significância. Mostra-se assim que, dentro de uma circunvisão, o SER-NO-MUNDO é espacial. E somente porque a presença [Dasein] é espacial, tanto no modo de dis-tanciamento quanto no modo de direcionamento, o que se acha à mão no mundo circundante pode vir ao encontro em sua espacialidade. A liberação de uma totalidade conjuntural é, de maneira igualmente originária, um deixar e fazer em conjunto que, numa região, dis-tancia e direciona, ou seja, libera a pertinência espacial do que está à mão. Na significância, familiar à presença [Dasein] nas ocupações de seu ser-em, reside também a abertura essencial do espaço. STMSCC: §24

O deixar e fazer vir ao encontro, constitutivo do SER-NO-MUNDO dos entes intramundanos, é um "dar-espaço". Esse "dar-espaço", [165] que também denominamos de arrumar , consiste na liberação do que está à mão para a sua espacialidade. É este arrumar como doação preliminar que descobre um conjunto possível de lugares determinados pela conjuntura e que possibilita a orientação fática de cada passo. Enquanto ocupação com o mundo numa circunvisão, a presença [Dasein] pode tanto "arrumar" como desarrumar e mudar a arrumação, e isso porque o arrumar, entendido como existencial, pertence a seu SER-NO-MUNDO. Contudo, nem a região previamente descoberta a cada vez e nem mesmo a espacialidade de cada passo são explicitamente visíveis. Em si mesma, ela está presente à circunvisão na não surpresa do manual a cuja ocupação se entrega a circunvisão. Com o SER-NO-MUNDO, o espaço se descobre, de início, nessa espacialidade. Com base na espacialidade assim descoberta, o espaço em si torna-se acessível ao conhecimento. STMSCC: §24

O espaço nem está no sujeito nem o mundo está no espaço. Ao contrário, o espaço está no mundo à medida que o SER-NO-MUNDO constitutivo da presença [Dasein] já sempre descobriu um espaço. O espaço não se encontra no sujeito nem o sujeito considera o mundo "como se" estivesse num espaço. É o "sujeito", entendido ontologicamente, a presença [Dasein], que é espacial em sentido originário. Porque a presença [Dasein] é nesse sentido espacial, o espaço se apresenta como a priori. Este termo não indica a pertinência prévia a um sujeito que de saída seria destituído de mundo e projetaria de si um espaço. Aprioridade significa aqui precedência do encontro com o espaço (como região) em cada encontro do que está à mão no mundo circundante. STMSCC: §24

De acordo com o seu SER-NO-MUNDO, a presença [Dasein] já sempre dispõe previamente, embora de forma implícita, de um espaço já descoberto. Em contrapartida, o espaço em si mesmo fica, de início, encoberto no tocante às possibilidades puras de simples espacialidades de alguma coisa. Por mostrar-se essencialmente num mundo, o espaço não decide sobre a modalidade de seu ser. O espaço não precisa ter o modo de ser espacial do que se acha à mão nem o modo de algo simplesmente dado. O ser do espaço também não possui o modo de ser da presença [Dasein]. Porque o próprio ser do espaço não pode ser concebido como res extensa, não se segue que deva ser determinado ontologicamente como "fenômeno" desta res – na verdade, ele não seria dela distinto – nem que o ser do espaço pudesse ser equiparado ao da res cogitans e compreendido como pu-ramente "subjetivo", mesmo que se desconsiderasse toda a problemática referente ao ser deste sujeito. STMSCC: §24

No fenômeno do espaço, não se pode encontrar nem a única e nem a determinação ontológica primordial do ser dos entes intramundanos. Tampouco ele constitui o fenômeno do mundo. O espaço só pode ser concebido recorrendo-se ao mundo. Não se tem acesso ao espaço, de modo exclusivo ou primordial, através da desmundanização do mundo circundante. A espacialidade só pode ser descoberta a partir do mundo e isso de tal maneira que o próprio espaço se mostra também um constitutivo do mundo, de acordo com a espacialidade essencial da presença [Dasein], no que respeita à sua constituição fundamental de SER-NO-MUNDO. STMSCC: §24

Além disso, a interpretação positiva da presença [Dasein] feita até aqui impede que se parta do dado formal do eu com vistas a uma resposta fenomenalmente suficiente da questão quem. O esclarecimento do SER-NO-MUNDO mostrou que, de início, um mero sujeito não "é" e nunca é dado sem mundo. Da mesma maneira, também, de início, não é dado um eu isolado sem os outros. Se, pois, os "outros" já estão co-presentes no SER-NO-MUNDO, esta constatação fenomenal não deve considerar evidente e dispensada de uma investigação a estrutura ontológica do que assim é "dado". A tarefa é tornar fenomenalmente visível e interpretar ontologicamente de maneira adequada o modo de ser dessa co-presença na cotidianidade mais próxima. STMSCC: §25

É na análise do modo de ser em que a presença [Dasein] se mantém, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, que se deve buscar a resposta à questão do quem da presença [Dasein] cotidiana. A investigação orienta-se pelo SER-NO-MUNDO cuja constituição fundamental também determina todo e qualquer modo de ser da presença [Dasein]. Quando dissemos com todo direito que as explicações precedentes do mundo permitiram visualizar os demais momentos estruturais de SER-NO-MUNDO, a resposta à questão quem já deveria estar de certo modo preparada. STMSCC: §26

A "descrição" do mundo circundante mais próximo, por exemplo, do mundo do artesão, mostrou que, com o instrumento em ação, também "vêm ao encontro" os outros, aos quais a "obra" se destina. No modo de ser desse manual, ou seja, em sua conjuntura, subsiste uma referência essencial a possíveis portadores para os quais a obra está "talhada sob medida". Do mesmo modo, junto com o material empregado, também vem ao encontro o seu produtor ou "fornecedor", enquanto aquele que "serve" bem ou mal. O campo, por exemplo, onde passeamos "lá fora" mostra-se como o [173] campo que pertence a alguém, que é por ele mantido em ordem; o livro usado foi comprado em tal livreiro, foi presenteado por… e assim por diante. Em seu ser-em-si, o barco ancorado na praia refere-se a um conhecido que nele viaja ou então um "barco desconhecido" mostra outros. Os outros que assim "vêm ao encontro", no conjunto instrumental à mão no mundo circundante, não são algo acrescentado pelo pensamento a uma coisa já antes simplesmente dada. Todas essas coisas vêm ao encontro a partir do mundo em que elas estão à mão para os outros. Este mundo já é previamente sempre o meu. Na análise feita até aqui, a periferia daquilo que vem ao encontro dentro do mundo restringiu-se, de início, ao instrumento manual e à natureza simplesmente dada e, assim, aos entes destituídos do caráter da presença [Dasein]. Esta restrição não apenas era necessária para simplificar a explicação, mas, sobretudo, porque o modo de ser da presença [Dasein] dos outros que vêm ao encontro dentro do mundo diferencia-se da manualidade e do ser simplesmente dado. O mundo da presença [Dasein] libera, portanto, entes que não apenas se distinguem dos instrumentos e das coisas mas que, de acordo com seu modo de ser de presença [Dasein], são e estão "no" mundo em que vêm ao encontro segundo o modo de SER-NO-MUNDO. Não são algo simplesmente dado e nem algo à mão. São como a própria presença [Dasein] liberadora – são também co-presenças. Ao se querer identificar o mundo em geral com o ente intramundano, dever-se-ia então dizer: "mundo" é também presença [Dasein]. STMSCC: §26

A caracterização do encontro com os outros também se orienta segundo a própria presença [Dasein]. Será que essa caracterização não provém de uma distinção e isolamento do "eu", de maneira que se devesse buscar uma passagem do sujeito isolado para os outros? Para evitar esse mal-entendido, é preciso atentar em que sentido se fala aqui dos "outros". Os "outros" não significam todo o resto dos demais além de mim, do qual o eu se isolaria. Os outros, ao contrário, são aqueles dos quais, na maior parte das vezes, não se consegue propriamente diferenciar, são aqueles entre os quais também se está. Esse estar também com os outros não possui o caráter ontológico de um ser simplesmente dado "em conjunto" dentro de um mundo. O "com" é uma determinação da presença [Dasein]. O "também" significa a igualdade no ser enquanto SER-NO-MUNDO que se ocupa dentro de uma circunvisão. "com" e "também" devem ser [174] entendidos existencialmente e não categorialmente. À base desse SER-NO-MUNDO determinado pelo com, o mundo é sempre o mundo compartilhado com os outros. O mundo da presença [Dasein] é mundo compartilhado . O ser-em é ser-com os outros. O ser-em-si intramundano desses outros é co-presença. STMSCC: §26

Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] se entende a partir de seu mundo e a co-presença dos outros vêm ao encontro nas mais diversas formas, a partir do que está à mão dentro do mundo. Mas mesmo quando a presença [Dasein] dos outros se torna, por assim dizer, temática, eles não chegam ao encontro como pessoas simplesmente dadas. Nos as encontramos, por exemplo, "junto ao trabalho", o que significa, primordialmente, em seu SER-NO-MUNDO. Mesmo quando vemos o outro meramente "em volta de nós", ele nunca é apreendido como coisa-homem simplesmente dada. O "estar em volta" é um modo existencial de ser: o ficar desocupado e desprovido de circunvisão junto a tudo e a nada. O outro vêm ao encontro em sua co-presença no mundo. STMSCC: §26

A expressão "presença [Dasein]" mostra claramente que, "numa primeira aproximação", esse ente não se acha remetido a outros e que apenas posteriormente é que também pode ser "co"-presente com outros. Não se deve, contudo, desconsiderar que usamos o termo co-presença para designar o ser em direção qual os outros sã liberados dentro do mundo. Dentro do mundo, essa co-presença dos outros só se abre para uma presença [Dasein] e assim também para os co-presentes, visto que a presença [Dasein] e em si mesma, essencialmente, ser-com. O enunciado fenomenológico: presença [Dasein] é, essencialmente, ser-com possui um sentido ontológico-existencial. Ela não quer constatar onticamente [176] que eu, de fato, não estou sozinho como algo simplesmente dado ou que ocorrem outros de minha espécie. Se a frase: o SER-NO-MUNDO da presença [Dasein] se constitui essencialmente pelo ser-com quisesse dizer isto, então o ser-com não seria uma determinação existencial que conviria à presença [Dasein] segundo o seu modo próprio de ser. Seria uma propriedade que, devido à ocorrência dos outros, introduzir-se-ia a cada vez. O ser-com determina existencialmente a presença [Dasein], mesmo quando um outro não é, de fato, dado ou percebido. Mesmo o estar-só da presença [Dasein] é ser-com no mundo. Somente num ser-com e para um ser-com e que o outro pode faltar. O estar-só é um modo deficiente de ser-com, e sua possibilidade é a prova disso. Por outro lado, não se elimina o estar só porque "junto" a mim ocorre um outro exemplar de homem ou dez outros. A presença [Dasein] pode estar só mesmo quando esse e ainda outros tantos são simplesmente dados. O ser-com e a facticidade da co-presença não se fundam, pois, numa ocorrência simultânea de vários "sujeitos". O estar só "entre" muitos também não diz, com referência ao ser dos muitos, que eles sejam algo simplesmente dado. Nesse estar "entre eles", eles são co-presentes; sua co-presença vem ao encontro no modo da indiferença e da estranheza. A falta e "ausência" são modos da co-presença, apenas possíveis porque a presença [Dasein], enquanto ser-com, permite o encontro de muitos em seu mundo. Ser-com é sempre uma determinação da própria presença [Dasein]; ser co-presente caracteriza a presença [Dasein] de outros na medida em que, pelo mundo da presença [Dasein], libera-se a possibilidade para um ser-com. A própria presença [Dasein] só é possuindo a estrutura essencial do ser-com, enquanto co-presença que vem ao encontro de outros. STMSCC: §26

Se o ser-com constitui existencialmente o SER-NO-MUNDO, ele deve poder ser interpretado pelo fenômeno da cura, da mesma forma que o modo de lidar da circunvisão com o manual intramundano que, previamente, concebemos como ocupação. Pois esse fenômeno determina o ser da presença [Dasein] em geral (cf. cap. VI desta seção). O caráter ontológico da ocupação não é próprio do ser-com, embora esse modo de ser seja um ser para os entes que vem ao encontro dentro do mundo como ocupação. O ente, com o qual a presença [Dasein] se relaciona enquanto ser-com, também não possui o modo de ser do instrumento à mão, pois ele mesmo é presença [Dasein]. Desse ente não se ocupa, com ele se preocupa.[177] STMSCC: §26

De acordo com a análise aqui desenvolvida, o ser com os outros pertence ao ser da presença [Dasein] que, sendo, põe em jogo seu próprio ser. Enquanto ser-com, a presença [Dasein] "é", essencialmente, em virtude dos outros. Isso deve ser entendido, em sua essência, como um enunciado existencial. Mesmo quando cada presença [Dasein] fática não se volta para os outros quando acredita não precisar deles ou quando os dispensa, ela ainda é no modo de ser-com. No ser-com, enquanto o existencial de ser em virtude dos outros, os outros já estão abertos em sua presença [Dasein]. Essa abertura dos outros, previamente constituída pelo ser-com, também perfaz a significância, isto é, a mundanidade que se consolida como tal no existencial de ser-em-virtude-de. Por isso, a mundanidade do mundo assim constituída, em que a presença [Dasein] já sempre é e está de modo essencial, deixa que o manual do mundo circundante venha ao encontro junto com a co-presença dos outros, na própria ocupação guiada pela circunvisão. Na estrutura da mundanidade do mundo, os outros não são, de saída, simplesmente dados como sujeitos soltos no ar ao lado de outras coisas. Eles se mostram em seu SER-NO-MUNDO, empenhado nas ocupações do mundo circundante, a partir do ser que, no mundo, está à mão. STMSCC: §26

A abertura da co-presença dos outros, pertencente ao ser-com, significa: na compreensão do ser da presença [Dasein] já subsiste uma compreensão dos outros, porque seu ser é ser-com. Como todo compreender, esse compreender não é um conhecer nascido de uma tomada de conhecimento. É um modo de ser originariamente existencial que só então torna possível conhecer e tomada de conhecimento. Este conhecer-se está fundado no ser-com que compreende originariamente. Ele se move, de início, segundo o modo de ser mais imediato do SER-NO-MUNDO que é com, no conhecer compreensivo do que a presença [Dasein] encontra e do que ela se ocupa na circunvisão do mundo circundante. A partir da ocupação e do que nela se compreende é que se pode entender a ocupação da preocupação. O outro se descobre, assim, antes de tudo, na preocupação das ocupações. STMSCC: §26

Que "empatia" não constitua um fenômeno existencial originário e nem um conhecer, isso não significa, porém, que ela não coloque problemas a seu respeito. Sua hermenêutica específica terá de mostrar como as diversas possibilidades ontológicas da própria presença [Dasein] desviam e impedem a convivência e seu respectivo conhecimento, de tal modo que um seu "compreender" autêntico se vê sufocado, e a presença [Dasein] passa a recorrer a seus sucedâneos; ademais, terá também de mostrar a possibilidade que supõe a condição existencial positiva de uma compreensão adequada do outro. A análise mostrou: o ser-com é um constitutivo existencial do SER-NO-MUNDO. A co-presença se comprova como modo de ser próprio dos entes que vêm ao encontro dentro do mundo. Porque a presença [Dasein] é, ela possui o modo de ser da convivência. Esta não pode ser concebida como o resultado da soma de vários "sujeitos". O deparar-se com o contingente numérico de "sujeitos" só é possível quando os outros que vêm ao encontro na co-presença são tratados meramente como "números". Tal contingente só se descobre por meio de um determinado ser-com e para os outros. Esse ser-com "desconsiderado" "conta" os outros sem "levá-los em conta" seriamente, sem querer "ter algo a ver" com eles. STMSCC: §26

O si-mesmo da presença [Dasein] cotidiana é o impessoalmente-si-mesmo , que distinguimos do propriamente si mesmo, ou seja, do si mesmo apreendido como próprio. Enquanto impessoalmente-si-mesma, cada presença [Dasein] se acha dispersa no impessoal, precisando ainda encontrar a si mesma. Essa dispersão caracteriza o [186] "sujeito" do modo de ser que conhecemos como a ocupação que se empenha no mundo que vem imediatamente ao encontro. Que a presença [Dasein] esteja familiarizada consigo enquanto o impessoalmente-si-mesmo, isso também significa que o impessoal prelineia a primeira interpretação do mundo e do SER-NO-MUNDO. O impessoalmente-si-mesmo, em virtude de que a presença [Dasein] é cotidianamente, articula o contexto referencial da significância. O mundo da presença [Dasein] libera o ente que vem ao encontro numa totalidade conjuntural, familiar ao impessoal e nos limites estabelecidos pela medianidade. Numa primeira aproximação, a presença [Dasein] fática esta no mundo comum, descoberto pela medianidade. Numa primeira aproximação, "eu" não "sou" no sentido do propriamente si mesmo e sim os outros nos moldes do impessoal. É a partir deste e como este que, numa primeira aproximação, eu "sou dado" a mim mesmo. Numa primeira aproximação, a presença [Dasein] é impessoal, assim permanecendo na maior parte das vezes. Quando a presença [Dasein] descobre o mundo e o aproxima de si, quando abre para si mesma seu próprio ser, este descobrimento de "mundo" e esta abertura da presença [Dasein] se cumprem e realizam como uma eliminação das obstruções, encobrimentos, obscurecimentos, como um romper das distorções em que a presença [Dasein] se tranca contra si mesma. STMSCC: §27

Com a interpretação do ser-com e do ser-si-mesmo no impessoal, respondeu-se a pergunta quem da convivência cotidiana. Estas reflexões propiciam, ao mesmo tempo, uma compreensão concreta da constituição fundamental da presença [Dasein]. O SER-NO-MUNDO tornou-se visível em sua cotidianidade e em sua medianidade. STMSCC: §27

A presença [Dasein] cotidiana retira a interpretação pré-ontológica de seu ser do modo de ser mais imediato do impessoal. A interpretação ontológica segue inicialmente esta tendência e entende a presença [Dasein] a partir do mundo, onde a encontra como ente intramundano. E não somente isto; a ontologia "mais imediata" da presença [Dasein] recebe previamente do "mundo" o sentido do ser em virtude do qual estes "sujeitos" se compreendem. Entretanto, uma vez que neste concentrar-se no mundo salta-se por cima do próprio fenômeno do mundo, em seu lugar aparece o que é simplesmente dado dentro do mundo: as coisas. O ser dos entes em sua co-presença é então compreendido como ser simplesmente dado. Dessa maneira, a demonstração [187] do fenômeno positivo do SER-NO-MUNDO mais cotidiano possibilita adentrar as raízes da interpretação ontologicamente desviada desta constituição de ser. É ela mesma que, em seu modo de ser cotidiano, de início se encobre e não é encontrada. STMSCC: §27

Em sua fase preparatória, a analítica existencial da presença [Dasein] tem como tema orientador a constituição fundamental desse ente, o SER-NO-MUNDO. A sua meta mais imediata consiste em relevar fenomenalmente a estrutura unitária e originária do ser da presença [Dasein] que determina ontologicamente suas possibilidades e modos "de ser". Até agora, a caracterização fenomenal do SER-NO-MUNDO voltou-se para o momento estrutural mundo, no intuito de responder à questão quem deste ente em sua cotidianidade. Contudo, já nas primeiras caracterizações das tarefas de preparação para uma análise fundamental da presença [Dasein], adiantou-se uma orientação sobre o ser-em como tal, que se demonstrou concretamente no modo de conhecer o mundo. STMSCC: §28

A antecipação desse momento estrutural básico surgiu da intenção de se manter, desde o princípio, a análise dos diversos momentos singulares numa visão prévia de toda a estrutura e assim evitar qualquer fragmentação e disseminação da unidade do fenômeno. Agora, porém, trata-se de reconduzir a interpretação ao fenômeno do ser-em, conservando o que se adquiriu nas análises concretas do mundo e do quem. Deve-se não apenas considerá-la ainda uma vez de maneira mais profunda e visualizar com mais segurança [189] a totalidade da estrutura SER-NO-MUNDO, numa perspectiva fenomenológica, mas também abrir um caminho para se apreender o ser originário da própria presença [Dasein], isto é, da cura. STMSCC: §28

O que ainda se deve mostrar no SER-NO-MUNDO, além das remissões essenciais de ser-junto-ao-mundo (ocupação), de ser-com (preocupação) e de ser-si-mesmo (quem)? Com efeito, pode-se sempre ainda ampliar a análise no sentido de se distinguir a presença [Dasein] dos entes não dotados do caráter de presença [Dasein], mediante uma caracterização comparativa dos desdobramentos da ocupação e sua circunvisão, da preocupação e sua consideração, e através de uma explicação mais apurada do ser de todos os entes intramundanos possíveis. Sem dúvida, nesta direção há muitas tarefas a serem cumpridas. O que se explicitou até aqui ainda carece de complementos no tocante a uma elaboração completa do a priori existencial de uma antropologia filosófica. Mas esse não é o propósito da presente investigação. O seu escopo é uma ontologia fundamental. Se é assim que questionamos tematicamente o ser-em, sem dúvida não poderemos pretender esgotar a originariedade deste fenômeno, derivando-o de outros, isto é, mediante uma análise inadequada, no sentido de uma solução. Todavia, a impossibilidade de se derivar o que é originário não exclui uma variedade multiforme de características ontológicas constitutivas. Quando elas se mostram, são igualmente originárias do ponto de vista existencial. O fenômeno da igualdade originária dos momentos constitutivos foi, muitas vezes, desconsiderado na ontologia, em consequência de uma tendência metodológica incontrolável para comprovar a proveniência de tudo e de todos a partir de um "fundamento primordial" único e simples. STMSCC: §28

O que se constitui essencialmente pelo SER-NO-MUNDO é sempre em si mesmo o "pre [das Da]" de sua presença [Dasein]. Segundo o significado corrente da palavra, o "pre [das Da]" da presença [Dasein] remete ao "aqui" e "lá". O "aqui" de um "eu-aqui" sempre se compreende a partir de um "lá" à mão, no sentido de um ser que se dis-tancia e se direciona numa ocupação. A espacialidade existencial da presença [Dasein] que lhe determina o "lugar" já está fundada no SER-NO-MUNDO. O "lá" é a determinação daquilo que vem ao encontro dentro do mundo. "Aqui" e "lá" são apenas possíveis no "pre [das Da]" da presença [Dasein], isto é, quando se da um ente que, enquanto ser do "pre [das Da]" da presença [Dasein], abriu a espacialidade. Em seu ser mais próprio, este ente traz o caráter de não fechamento. A expressão "pre [das Da]" refere-se a essa abertura essencial. Através dela, esse ente (a presença [Dasein]) está junto à pre-sença [Da-sein] do mundo, fazendo-se presença [Dasein] para si mesmo. STMSCC: §28

Numa imagem ôntica, falar de lumen naturale   no homem não indica mais do que a estrutura ontológico-existencial deste ente, ou seja, de ser no modo do pre [das Da] de sua presença [Dasein]. Ser "esclarecido" significa: estar em si mesmo iluminado [NH: aletheia   – abertura – claridade, luminosidade, iluminar] como SER-NO-MUNDO, não através de um outro ente, mas de tal maneira que ele mesmo seja [NH: mas não produzido] a clareira. É para um ente existencialmente iluminado desse modo [191] que um ser simplesmente dado faz-se acessível na luz e inacessível no escuro. A presença [Dasein] sempre traz consigo o seu pre [das Da] e, desprovida dele, ela não apenas deixa faticamente de ser, como deixa de ser o ente dessa essência. A presença [Dasein] é [NH: presença [Dasein] existe e só ela; com isso existência, o estar fora e exposto no aberto do pre [das Da]: ek-sistência] a sua abertura. STMSCC: §28

Esse "que é" constitui um caráter ontológico da presença [Dasein], encoberto em seu de onde e para onde, que, no entanto, tanto mais se abre em si mesmo quanto mais encoberto permanece. Chamamos esse "que é" de estar-lançado em seu pre [das Da], no sentido de, enquanto SER-NO-MUNDO, este ente ser sempre o seu pre [das Da]. A expressão estar-lançado deve indicar a facticidade da responsabilidade . Esse "que é e [comporta um] ter de ser", aberto na disposição da presença [Dasein], não é aquele "que", o qual do ponto de vista ontológico-categorial exprime a fatualidade pertencente ao ser simplesmente dado. Esse só se faz acessível numa constatação observadora. Em contrapartida, deve-se conceber esse que aberto na disposição, como determinação existencial deste ente que é no modo de SER-NO-MUNDO. Facticidade não é a fatualidade do factum brutum de um ser simplesmente dado, mas um caráter ontológico da presença [Dasein] assumido na existência, embora, desde o início, reprimido. Esse que da facticidade jamais pode ser encontrado numa intuição. STMSCC: §29

Isto é o que mostra o mau-humor. Nele, a presença [Dasein] se faz cega para si mesma, o mundo circundante da ocupação se vela, a circunvisão da ocupação se desencaminha. A disposição é tão pouco trabalhada pela reflexão que faz com que a presença [Dasein] se precipite para o "mundo" das ocupações numa dedicação e abandono irrefletidos. O humor se precipita. Ele não vem de "fora" nem de "dentro". Cresce a partir de si mesmo como modo de SER-NO-MUNDO. Com isso, porém, passamos de uma delimitação negativa da disposição frente à apreensão reflexiva do "interior" para uma compreensão positiva de seu caráter de abertura. O humor já abriu o SER-NO-MUNDO em sua totalidade e só assim torna possível um direcionar-se para… O estado de humor não remete, de início, a algo psíquico e não é, em si mesmo, um estado interior que, então, se exteriorizasse de forma enigmática, dando cor as coisas e pessoas. Nisto mostra-se o segundo caráter essencial da disposição: ela é um modo existencial básico da abertura igualmente originária de mundo, de co-presença e existência, pois também este modo é em si mesmo SER-NO-MUNDO. STMSCC: §29

Além dessas duas determinações essenciais da disposição aqui explicitadas: a abertura do estar-lançado e a abertura do SER-NO-MUNDO em sua totalidade, deve-se considerar ainda uma terceira, que contribui sobremaneira para uma compreensão mais profunda da mundanidade do mundo. Como dissemos anteriormente, o mundo que já se abriu deixa e faz com que o ente intramundano venha ao encontro. Essa abertura prévia do mundo, que pertence ao ser-em, também se constitui de disposição. Deixar e fazer vir ao encontro é, primariamente, uma circunvisão e não simplesmente sensação ou observação. Numa ocupação dotada de circunvisão, deixar e fazer vir ao encontro tem o caráter de ser atingido, como agora se pode ver mais agudamente a partir da disposição. Do ponto de vista ontológico, inutilidade, resistência, ameaça, são apenas possíveis, porque o ser-em como tal se acha determinado previamente em sua existência, de modo a poder ser tocado dessa maneira pelo que vem ao encontro dentro do mundo. Esse ser tocado funda-se na disposição, descobrindo o mundo como tal, no sentido, por exemplo, de ameaça. Apenas o que é na disposição do medo, o sem medo, pode descobrir o que esta à mão no mundo circundante como algo [196] ameaçador. O estado de humor da disposição constitui, existencialmente, a abertura mundana da presença [Dasein]. STMSCC: §29

Que a circunvisão cotidiana se equivoque, devido à abertura primordial da disposição e esteja amplamente sujeita a ilusão, isto é, segundo a ideia de um conhecimento absoluto de "mundo", um me ón  . Em razão dessas avaliações ontologicamente inadequadas, desconsidera-se inteiramente a positividade existencial da possibilidade de ilusão. É justamente na visão instável e de humor variável do "mundo" que o manual se mostra em sua mundanidade específica, a qual nunca é a mesma. A observação teórica sempre reduziu o mundo à uniformidade do que é simplesmente dado; dentro dessa uniformidade subsiste encoberta sem dúvida uma nova riqueza de determinações, passíveis de descoberta. Contudo, mesmo a mais pura theoria   não conseguiu ultrapassar todos os humores; o que é ainda simplesmente dado em sua pura configuração apenas se mostra para a observação quando consegue chegar a si, demorando tranquilamente junto a…, na rastone e diagoge. O demonstrar da constituição ontológico-existencial de toda determinação de conhecimento na disposição do SER-NO-MUNDO não deve ser confundido com a tentativa de abandonar onticamente a ciência ao "sentimento". STMSCC: §29

O ter medo ele mesmo libera a ameaça que assim caracterizada se deixa e faz tocar a si mesma. Não se constata primeiro um mal futuro (malum futurum  ) para então se ter medo. O ter medo também não constata primeiro o que se aproxima, mas, em seu ser amedrontador, já o descobriu previamente. É tendo medo que o medo pode ter claro para si o de que tem medo, "esclarecendo-o". A circunvisão vê o amedrontador por já estar na disposição do medo. Como possibilidade adormecida do SER-NO-MUNDO disposto, o ter medo é "medrosidade" e, como tal, já abriu o mundo para que o amedrontador dele possa aproximar-se. A própria possibilidade de aproximação é liberada pela espacialidade essencialmente existencial de SER-NO-MUNDO. STMSCC: §30

O próprio ente que tem medo, a presença [Dasein], é aquilo pelo que o medo tem medo. Apenas o ente em que, sendo, está em jogo seu próprio ser, pode ter medo. O ter medo abre esse ente no conjunto de seus perigos, no abandono a si mesmo. Embora em diversos graus de explicitação, o medo desvela a presença [Dasein] no ser de seu pre [das Da]. Se tememos pela casa ou pela propriedade, isso não contradiz em nada a determinação anterior daquilo pelo que se teme. Pois enquanto SER-NO-MUNDO, a presença [Dasein] é um ser em ocupações junto a. Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] é a partir do que se ocupa. Estar em perigo é a ameaça de ser e estar junto a. Predominantemente, o medo revela a presença [Dasein] de maneira privativa. Ele confunde e faz "perder a cabeça". O medo vela, ao mesmo tempo, o estar e ser-em perigo, já que deixa ver o perigo a ponto de a presença [Dasein] precisar se recompor depois que ele passa. STMSCC: §30

Os momentos constitutivos de todo o fenômeno do medo podem variar. Nessas variações, surgem diferentes possibilidades de ser do ter medo. A aproximação na proximidade pertence à estrutura de encontro daquilo que ameaça. Como uma ameaça, em seu "na verdade ainda não, mas a qualquer momento sim" subitamente se abate sobre o SER-NO-MUNDO da ocupação, o medo se transforma em pavor. Desse modo, deve-se distinguir na ameaça: a aproximação mais próxima do que ameaça e o modo de encontro com a própria aproximação, o súbito. O referente do pavor e, de início, algo conhecido e familiar. Se, ao contrário, o que ameaça possuir o caráter de algo totalmente não familiar, o medo transforma-se em horror. E somente quando o que ameaça vem ao encontro com o caráter de horror, possuindo ao mesmo tempo o caráter de pavor, a saber, o súbito, o medo torna-se, então, terror. Outras variações do medo nos são conhecidas como timidez, acanhamento, receio e estupor. Enquanto possibilidades da disposição, todas as modificações do medo indicam que, como SER-NO-MUNDO, a presença [Dasein] é "medrosa". Essa "medrosidade" não deve ser compreendida onticamente no sentido de uma predisposição fatual e "singular", mas como possibilidade existencial da disposição essencial de toda presença [Dasein] que, de certo modo, não é única. STMSCC: §30

A presente investigação já se deparou com esse compreender originário sem, no entanto, permitir que aflorasse explicitamente como tema. Dizer que a presença [Dasein] existindo é o seu pre [das Da] significa, por um lado, que o mundo é "presença [Dasein]", a sua presença [Dasein] é o ser-em. Este é igualmente "presença [Dasein]" como aquilo em virtude de que a presença [Dasein] é. Nesse em virtude de, o SER-NO-MUNDO existente se abre como tal. Chamou-se essa abertura de compreender. No compreender desse em virtude de, abre-se conjuntamente a significância nele fundada. Enquanto abertura do em virtude de e da significância, a abertura do compreender diz respeito, de maneira igualmente originária, a todo o SER-NO-MUNDO. Significância é a perspectiva em virtude da qual o mundo se abre como tal. Dizer que o em virtude de e a significância se abrem na presença [Dasein] significa dizer que a presença [Dasein] é um ente em que, como SER-NO-MUNDO, está em jogo seu próprio ser. STMSCC: §31

Como abertura, o compreender sempre alcança toda a constituição fundamental do SER-NO-MUNDO. Como poder-ser, o ser-em é sempre um poder-SER-NO-MUNDO. Este não apenas se abre como mundo, no sentido de possível significância, mas a liberação de tudo que é intramundano libera esse ente para suas possibilidades. O manual se descobre, então, como tal em sua utilidade, aplicabilidade e prejudicialidade. A totalidade conjuntural desvela-se como o todo categorial de uma possibilidade do contexto manual. Por outro lado, também a "unidade" do que é simplesmente dado numa variedade multiforme, a natureza, só pode ser descoberta com base na abertura de uma possibilidade que lhe pertence. Será por acaso que a questão do ser da natureza visa as "condições de sua possibilidade"? Em que se funda esse questionamento? Nele não pode faltar a questão: por que o ente, destituído do caráter de presença [Dasein], é compreendido em seu ser quando se abre nas condições de sua possibilidade? Kant pressupõe algo assim, talvez com razão. Mas essa pressuposição não pode mais permanecer sem verificar seu direito. STMSCC: §31

Por que o compreender, em todas as dimensões essenciais do que nele se pode abrir, sempre conduz as possibilidades? Porque, em si mesmo, compreender possui a estrutura existencial que chamamos de projeto . O compreender projeta o ser da presença [Dasein] para o seu em virtude de e isso de maneira tão originária como para a significância, entendida como mundanidade de seu mundo. O caráter projetivo do compreender constitui o SER-NO-MUNDO no tocante a abertura do seu pre [das Da], enquanto pre [das Da] de um poder-ser. O projeto é a constituição ontológico-existencial do espaço de articulação do poder-ser fático. E, na condição de lançada, a presença [Dasein] se lança no modo de ser do projeto. O projetar-se nada tem a ver com um possível relacionamento frente a um plano previamente concebido, segundo o qual a presença [Dasein] instalaria o seu ser. Ao contrário, como presença [Dasein], ela já sempre se projetou e só é em se projetando. Na medida em que é, a presença [Dasein] já se compreendeu e sempre se compreenderá a partir de possibilidades. O caráter projetivo do compreender diz, ademais, que a perspectiva em virtude da qual ele se projeta apreende as possibilidades mesmo que não o faça tematicamente. [205] Essa apreensão retira do que é projetado justamente o seu caráter de possibilidade, arrastando-o para um teor dado e referido, ao passo que, no projetar, o projeto lança previamente para si mesmo a possibilidade como possibilidade e assim a deixa ser. Enquanto projeto, compreender é o modo de ser da presença [Dasein] em que a presença [Dasein] é as suas possibilidades enquanto possibilidades. STMSCC: §31

O projeto sempre diz respeito a toda a abertura de SER-NO-MUNDO; como poder-ser, o próprio compreender possui possibilidades prelineadas pelo âmbito do que nele é passível de se abrir essencialmente. O compreender pode colocar-se primariamente na abertura de mundo, ou seja, a presença [Dasein] pode, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, compreender-se a partir de seu mundo. Ou ainda, o compreender lança-se primariamente para o em virtude de, isto é, a presença [Dasein] existe como ela mesma [NH: mas não como sujeito, indivíduo ou pessoa]. Brotando de seu si mesmo em sentido próprio, o compreender é próprio ou impróprio. "Im"-próprio não significa que a presença [Dasein] rompa consigo mesma e "só" compreenda o mundo. Mundo pertence ao seu ser-si-mesmo como SER-NO-MUNDO. Por isso, o compreender propriamente é o compreender impropriamente podem ser autênticos ou inautênticos. Enquanto um poder-ser, o compreender está inteiramente impregnado de possibilidade. O translado para uma dessas possibilidades fundamentais da compreensão não deixa de lado as demais. A transferência inerente ao compreender é uma modificação existencial do projeto como um todo porque o compreender sempre diz respeito a toda a abertura da presença [Dasein] como SER-NO-MUNDO. No compreender [206] de mundo, o ser-em também é sempre compreendido. Compreender de existência como tal é sempre compreender mundo. STMSCC: §31

Em seu caráter existencial de projeto, compreender constitui o que chamamos de visão da presença [Dasein]. A visão que, junto com a abertura do pre [das Da], se dá existencialmente e, de modo igualmente originário, a presença [Dasein], nos modos básicos de seu ser já caracterizados, a saber, a circunvisão da ocupação, a consideração da preocupação, a visão de ser em virtude da qual a presença [Dasein] é sempre como ela é. Chamamos de transparência (Durchsichtigkeit  ) a visão que se refere primeira e totalmente à existência. Escolhemos esse termo para designar o "conhecimento de si mesmo", bem entendendo-se que não se trata de um exame perceptivo e nem tampouco da inspeção de si mesmo como um ponto, mas de uma captação compreensiva de toda a abertura do SER-NO-MUNDO através dos momentos essenciais de sua constituição. O ente que existe tem a visão de "si" somente à medida que ele se faz, de modo igualmente originário, transparente em seu ser junto ao mundo, em seu ser-com os outros, enquanto momentos constitutivos de sua existência. STMSCC: §31

A abertura do pre [das Da] da presença [Dasein] no compreender é ela mesma um modo do poder-ser da presença [Dasein]. A abertura do ser em geral [NH: como ela está aí e o que significa ser?] consiste na projeção do ser da presença [Dasein] para o em virtude de e para a significância (mundo). No projetar de possibilidades já se antecipou uma compreensão de ser. Ser é compreendido [NH: não significa, porém, que o ser "seja" por graça do projeto] no projeto e não concebido ontologicamente. O ente que possui o modo de ser do projeto essencial de SER-NO-MUNDO tem a compreensão de ser como um constitutivo de seu ser. O que anteriormente foi suposto de forma dogmática recebe agora sua demonstração a partir da constituição de ser em que a presença [Dasein] como um compreender é o seu pre [das Da]. Dentro dos limites dessa investigação, só se poderá alcançar um esclarecimento satisfatório do sentido existencial dessa compreensão de ser com base na interpretação temporânea de ser. STMSCC: §31

Enquanto existenciais, a disposição é o compreender caracterizam a abertura originária de SER-NO-MUNDO. No modo de ser do humor, a presença [Dasein] "vê" possibilidades a partir das quais ela é. Na abertura projetiva dessas possibilidades, ela já está sempre afinada pelo humor. O projeto do poder-ser mais próprio está entregue ao fato de ser lançado no pre [das Da] da presença [Dasein]. Mas não será que, com a explicação da constituição existencial do ser do pre [das Da], no sentido do projeto projetado, o ser da presença [Dasein] se torna ainda mais enigmático? Com efeito. Devemos primeiro deixar despontar todo o enigma desse ser, quer para fracassar com autenticidade na tentativa de [208] "resolvê-lo", quer para recolocar de modo novo a questão do SER-NO-MUNDO que se lançou em projetos. STMSCC: §31

No projetar-se do compreender, o ente se abre em sua possibilidade. O caráter de possibilidade sempre corresponde ao modo de ser de um ente compreendido. O ente intramundano em geral é projetado para o mundo, ou seja, para um todo de significância em cujas remissões referenciais a ocupação se consolida previamente como SER-NO-MUNDO. Se junto com o ser da presença [Dasein] o ente intramundano também se descobre, isto é, chega a uma compreensão, dizemos que ele tem sentido. Rigorosamente, porém, o que é compreendido não é o sentido, mas o ente e o ser. Sentido é aquilo em que se sustenta a compreensibilidade de alguma coisa. Chamamos de sentido aquilo que pode articular-se na abertura compreensiva. STMSCC: §32

O conceito de sentido abrange o aparelhamento formal daquilo que pertence necessariamente ao que é articulado pela interpretação que compreende. Sentido é a perspectiva na qual se estrutura [212] o projeto pela posição prévia, visão prévia e concepção prévia. É a partir dela que algo se torna compreensível como algo. Como compreender e interpretação constituem existencialmente o ser do pre [das Da], o sentido deve ser concebido como o aparelhamento existencial-formal da abertura pertencente ao compreender. Sentido é um existencial da presença [Dasein] e não uma propriedade colada sobre o ente, que se acha por "detrás" dele ou que paira não se sabe onde, numa espécie de "reino intermediário". A presença [Dasein] só "tem" sentido na medida em que a abertura do SER-NO-MUNDO pode ser "preenchida" por um ente que nela se pode descobrir. Somente a presença [Dasein] pode ser com sentido ou sem sentido. Isso significa: o seu próprio ser e o ente que se lhe abre podem ser apropriados na compreensão ou recusados na incompreensão. STMSCC: §32

Enquanto abertura do pre [das Da], o compreender sempre diz respeito a todo o SER-NO-MUNDO. Em todo compreender de mundo, a existência também esta compreendida e vice-versa. Toda interpretação, ademais, move-se na estrutura prévia já caracterizada. Toda interpretação que se coloca no movimento de compreender já deve ter compreendido o que se quer interpretar. Esse fato foi sempre observado na interpretação filológica, embora apenas nos setores dos modos derivados de compreensão e interpretação. A interpretação [213] filológica pertence ao âmbito do conhecimento científico. Esse conhecimento exige o rigor de uma demonstração fundamentada. A prova científica não deve pressupor aquilo que ela há de fundamentar. Se, porém, a interpretação já sempre se movimenta no já compreendido e dele se deve alimentar, como poderá produzir resultados científicos sem se mover num círculo, sobretudo se a compreensão pressuposta se articula no conhecimento comum de homem e mundo? Segundo as regras mais elementares da lógica, no entanto, o circulo e um circulus vitiosus. Com isso, porém, o ofício da interpretação histórica se acha a priori banido do campo de todo conhecimento rigoroso. Enquanto não se abolir do compreender esse círculo, a historiografia deve satisfazer-se com possibilidades menos rigorosas de conhecimentos. Permite-se-lhe que preencha, de certo modo, essa falta mediante o "significado espiritual" de seus "objetos". Segundo a opinião dos próprios historiadores, o ideal   seria que se pudesse evitar o circulo na esperança de se criar, pela primeira vez, uma historiografia tão independente do ponto de vista do observador como se presume que seja o conhecimento da natureza. STMSCC: §32

O "círculo" do compreender pertence a estrutura do sentido, cujo fenômeno tem suas raízes na constituição existencial da presença [Dasein], enquanto um compreender que interpreta. O ente em que esta em jogo seu próprio [NH: esse "seu próprio ser", porém, é determinado em si pela compreensão de ser, isto é, por in-sistir na claridade da vigência em que nem a claridade como tal e nem a vigência como tal são temas de representação] ser como SER-NO-MUNDO possui uma estrutura de círculo ontológico. Deve-se, no entanto, observar que, se do ponto de vista ontológico, o "círculo" pertence a um modo de ser do que e simplesmente dado, deve-se evitar caracterizar ontologicamente a presença [Dasein] mediante esse fenômeno. STMSCC: §32

3. Enunciado significa ainda comunicação, declaração. Enquanto comunicação, o enunciado está diretamente relacionado com os dois significados anteriores. Ele e um deixar ver conjuntamente o que se mostra a partir de si mesmo e por si mesmo no modo de um determinar-se. O deixar ver conjuntamente comunica e partilha com os outros o ente mostrado a partir de si mesmo e por si mesmo em sua determinação. O que se "comunica e partilha com" e o ser-para o que se mostra por si mesmo e a partir de si mesmo numa visão comum. Deve-se preservar este ser como SER-NO-MUNDO, a saber, no mundo em que e a partir do qual o que ai se mostra por e a partir de si mesmo vem ao encontro. A necessidade de pronunciar-se pertence ao enunciado, entendido como comunicação ou um partilhar-com existencial. Enquanto comunicado, o que se enuncia pode ser compartilhado ou não entre os que enunciam e os outros, sem que necessitem ter próximo a mao e a visão o ente que se mostra e determina. O que se enuncia pode ser "passado adiante". A periferia do que se compartilha entre um e outro numa visão se amplia. Ao mesmo tempo, porém, o que se mostra a partir de si mesmo e por si mesmo pode, nesse passar adiante, novamente voltar a velar-se, embora o próprio saber e conhecer, formados nesse ouvir dizer, sempre vise ao próprio ente e não afirme um "sentido" com valor de circulação. Mesmo o ouvir dizer e um SER-NO-MUNDO e um ser para o que se ouviu. STMSCC: §33

Reunindo esses três significados de "enunciado" numa visão unitária de todo o fenômeno, teremos a seguinte definição: o enunciado é um mostrar a partir de si mesmo e por si mesmo, que determina e comunica. Todavia, ainda é preciso perguntar: com que direito entendemos o enunciado como modo de interpretação? Nesse caso, as estruturas essenciais da interpretação devem reaparecer no enunciado. O mostrar a partir de si mesmo e por si mesmo no enunciado se dá com base no que já se abriu no compreender e descobriu na circunvisão. O enunciado não paira no ar, desligado e solto, a ponto de poder por si mesmo abrir pela primeira vez o ente como tal; mas já se detém no SER-NO-MUNDO. O que antes se esclareceu [218] a respeito do conhecimento do mundo vale também para o enunciado. O enunciado necessita de uma posição prévia do que se abriu, a fim de mostrá-lo a partir de si mesmo e por si mesmo segundo os modos de determinação. Ademais, já reside no ponto de partida da determinação uma perspectiva orientada para o que se vai enunciar. A perspectiva a partir da qual se encara o ente preliminarmente dado assume, no processo de determinação, a função de determinante. O enunciado necessita de uma visão prévia que desloque, por assim dizer, o predicado a ser explicitado e indicado, incluindo-o implicitamente no próprio ente. Uma articulação do significado daquilo que se mostra a partir de si mesmo e por si mesmo pertence ao enunciado enquanto comunicação determinante. É por isso que ela se move numa determinada conceituação: o martelo é pesado, o peso é do martelo, o martelo tem a propriedade de ser pesado. A concepção prévia sempre presente em todo enunciado permanece, na maior parte das vezes, sem surpresas, pois toda língua já guarda em si uma conceituação elaborada. Tanto o enunciado quanto a interpretação têm necessariamente seus fundamentos existenciais numa posição prévia, visão prévia e concepção prévia. STMSCC: §33

Disposição e compreender são os existenciais fundamentais que constituem o ser do pre [das Da], ou seja, a abertura do SER-NO-MUNDO. O compreender guarda em si a possibilidade de interpretação, isto é, de uma apropriação do que se compreende. Sendo disposição e compreender igualmente originários, a disposição se mantém numa certa compreensão. Corresponde-lhe também uma certa possibilidade de interpretação. O enunciado tornou visível um derivado extremo da interpretação. O esclarecimento do terceiro significado de enunciado como comunicação (declaração) levou ao conceito de dizer e pronunciar, até aqui propositadamente desconsiderado. Que somente agora se tematize a linguagem, isso deve indicar que este fenômeno se radica na constituição existencial da abertura da presença [Dasein]. O fundamento ontológico-existencial da linguagem é a fala. Embora tenhamos excluído esse fenômeno de uma análise temática, dele nos servimos constantemente nas interpretações feitas até aqui da disposição, do compreender, da interpretação e do enunciado. STMSCC: §34

Do ponto de vista existencial, a fala é igualmente originária à disposição e ao compreender. A compreensibilidade já está sempre articulada, antes mesmo de qualquer interpretação apropriadora. A fala é a articulação da compreensibilidade. Por isso, a fala se acha à base de toda interpretação e enunciado. Chamamos de sentido o que pode ser articulado na interpretação e, por conseguinte, mais originariamente ainda já na fala. Chamamos de totalidade significativa aquilo que, como tal, se estrutura na articulação da fala. Esta pode desmembrar-se em significações. Enquanto aquilo que se articula nas possibilidades de articulação, todas as significações sempre têm sentido. Uma vez que, enquanto articulação da compreensibilidade do pre [das Da], a fala é um existencial originário da [223] abertura, constituído primordialmente pelo SER-NO-MUNDO, ela também deve possuir, em sua essência, um modo de ser especificamente mundano. A compreensibilidade do SER-NO-MUNDO, trabalhada por uma disposição, pronuncia-se como fala. A totalidade significativa da compreensibilidade vem à palavra. Dos significados brotam palavras. As palavras, porém, não são coisas dotadas de significados. STMSCC: §34

A linguagem é o pronunciamento da fala. Como um ente intramundano, essa totalidade de palavras em que e como tal a fala possui seu próprio ser "mundano" pode ser encontrada à maneira de algo à mão. Nesse caso, a linguagem pode ser despedaçada em coisas-palavras simplesmente dadas. Existencialmente, a fala é linguagem porque aquele ente, cuja abertura se articula em significações, possui [NH: para a linguagem, estar-lançado é essencial] o modo de SER-NO-MUNDO, de ser lançado e remetido a um "mundo". STMSCC: §34

A fala é a articulação "significativa" da compreensibilidade do SER-NO-MUNDO, a que pertence o ser-com, e que já sempre se mantém num determinado modo de convivência ocupacional. Essa convivência está sempre falando, tanto ao dizer sim quanto ao dizer não, tanto provocando quanto avisando, tanto pronunciando, recuperando ou intercedendo, e ainda "emitindo enunciados" ou fazendo "discursos". Falar é falar sobre… Aquilo sobre que se fala não possui necessariamente, nem mesmo na maior parte das vezes, o caráter de tema de um enunciado que estabelece determinações. Também uma ordem é exercício de uma fala sobre; o desejo também possui aquilo sobre que deseja. O interceder não se acha desprovido de algo sobre que. A fala possui necessariamente esta estrutura, já que constitui também a abertura do SER-NO-MUNDO e sua própria estrutura é pré-moldada por essa constituição fundamental da presença [Dasein]. O referencial da fala é sempre "endereçado" dentro de determinados limites e numa determinada perspectiva. Toda fala tem algo sobre que fala (Geredetes) que, como tal, constitui [224] propriamente o dito dos desejos, das perguntas, dos pronunciamentos. Nele, a fala se comunica. STMSCC: §34

Toda fala sobre alguma coisa comunica através daquilo sobre que fala e sempre possui o caráter de pronunciar-se. Na fala, a presença [Dasein] se pronuncia. Entretanto, isso não ocorre porque a presença [Dasein] se acharia, de início, encapsulada num "interior" que se opõe a um exterior, mas porque, como SER-NO-MUNDO, ao compreender, ela já se acha "fora". O que se pronuncia é justamente o estar fora [NH: o pre [das Da]; estar exposto como posição aberta], isto é, o modo cada vez diferente da disposição (ou do humor) que, como se indicou, alcança toda a abertura do ser-em. O índice linguístico próprio da fala em que se anuncia o ser-em da disposição está no tom, na modulação, no ritmo da fala, "no modo de dizer". A comunicação das possibilidades existenciais da disposição, ou seja, da abertura da existência, pode tornar-se a meta explícita da fala "poética". STMSCC: §34

A fala é a articulação em significações da compreensibilidade inserida na disposição do SER-NO-MUNDO. Seus momentos constitutivos são os seguintes: o referencial da fala (Beredete), aquilo sobre que se fala como tal (Geredete), a comunicação e o anúncio. Estes não são propriedades que só se possam reunir empiricamente na linguagem. São caracteres existenciais arraigados na constituição de ser da presença [Dasein], que tornam possível a estrutura ontológica da linguagem. Na configuração linguística fática de uma determinada fala, alguns desses momentos podem faltar ou não ser observados. Que estes momentos, muitas vezes, não se exprimem "em palavras", isso deve ser apenas o indicador de um determinado modo [225] de fala que, em sendo, deve sempre articular-se com a totalidade dessas estruturas. STMSCC: §34

O nexo da fala com o compreender e a sua compreensibilidade torna-se claro a partir de uma possibilidade existencial inerente à própria fala, que é a escuta. Não dizemos por acaso que não "compreendemos" quando não escutamos "bem". A escuta é constitutiva da fala. E, assim como a articulação verbal está fundada na fala, assim também a percepção acústica funda-se na escuta. Escutar é o estar aberto existencial da presença [Dasein] enquanto ser-com os outros. Enquanto escuta da voz do amigo que toda presença [Dasein] traz consigo, o escutar constitui até mesmo a abertura primordial e própria da presença [Dasein] para o seu poder-ser mais próprio. A presença [Dasein] escuta porque compreende. Como SER-NO-MUNDO articulado em compreensões com os outros, a presença [Dasein] obedece na escuta à coexistência e a si própria como "pertencente" a essa obediência. O escutar recíproco de um e outro, onde se forma e elabora o ser-com, possui os modos possíveis de seguir, acompanhar e os modos privativos de não ouvir, resistir, fazer frente a, defender-se. STMSCC: §34

Somente numa atitude artificial e complexa é que se pode "escutar" um "ruído puro". Que escutamos primeiramente motocicletas e carros, isso constitui, porém, um testemunho fenomenal de que a presença [Dasein], enquanto SER-NO-MUNDO, já sempre se detém junto ao que está à mão dentro do mundo e não junto a "sensações", cujo turbilhão tivesse de ser primeiro formado para propiciar o trampolim de onde o sujeito pudesse saltar para finalmente alcançar o "mundo". Sendo, em sua essência, compreensiva, a presença [Dasein] está, desde o início, junto ao que ela compreende. STMSCC: §34

Porque a fala é constitutiva do ser do pre [das Da], isto é, da disposição e do compreender, a presença [Dasein] significa então: como SER-NO-MUNDO, a presença [Dasein] se pronunciou como ser-em uma fala. A presença [Dasein] possui linguagem. Terá sido mero acaso que os gregos depositaram a sua existência cotidiana predominantemente no espaço aberto pela fala convivial, guardando ao mesmo tempo olhos para ver, tanto na interpretação filosófica como na pré-filosófica da presença [Dasein], a essência do homem determinada como zoon logon echon   [NH: o homem como o que "colhe", recolhendo-se no ser-vigente na abertura dos entes (mas estes em segundo plano)]? A interpretação posterior dessa caracterização do homem, no sentido de animal rationale, "animal racional", não é, com efeito, "falsa", mas encobre o solo fenomenal que deu origem a essa definição da presença [Dasein]. O homem mostra-se como um ente que é na fala. Isso não significa que a possibilidade de articulação verbal seja apenas própria do homem, e sim que o homem se realiza no modo de descoberta de mundo e da própria presença [Dasein]. Os gregos não dispunham de uma palavra própria para linguagem porque entendiam esse fenômeno "sobretudo" como fala. Por outro lado, porque na reflexão filosófica o logos foi visualizado, sobretudo como enunciado, a elaboração das estruturas básicas das formas e dos integrantes da fala se deu de acordo com este logos. A gramática buscou seus fundamentos na "lógica" deste logos. Esta, por sua vez, se funda na ontologia do simplesmente dado. O acervo das "categorias semânticas", herdado [228] pela linguística posterior e ainda hoje decisivo em seus princípios, orienta-se pela fala entendida como enunciado. Tomando, porém, esse fenômeno em toda a originariedade fundamental e em todo o alcance de um existencial, será necessário transpor a linguística para fundamentos mais originários do ponto de vista ontológico. A tarefa de libertar a gramática da lógica necessita de uma compreensão preliminar e positiva da estrutura a priori da fala como existencial. Essa tarefa não pode ser cumprida subsidiariamente através de correções e complementações do que foi legado pela tradição. Nesse propósito, devem-se questionar as formas fundamentais em que se funda a possibilidade semântica de articulação do que é susceptível de compreensão e não apenas dos entes intramundanos conhecidos teoricamente e expressos em proposições. A semântica não se constitui por si mesma de uma comparação ampla do maior número possível de línguas e das línguas mais distantes entre si. Também não basta assumir o horizonte filosófico em que W.v. Humboldt   problematizou a linguagem. A semântica tem suas raízes na ontologia da presença [Dasein]. O seu florescimento ou fenecimento está atrelado ao destino da presença [Dasein]. STMSCC: §34

Remontando às estruturas existenciais que compõem a abertura do SER-NO-MUNDO, a interpretação, de certo modo, perdeu de vista a cotidianidade da presença [Dasein]. A análise deve reconquistar mais uma vez o horizonte fenomenal, estabelecido para seu tema. Levanta-se então a pergunta: Quais são os caracteres existenciais da abertura do SER-NO-MUNDO quando o SER-NO-MUNDO cotidiano se detém no modo de ser do impessoal? Será que esse modo de ser possui uma disposição própria e específica, uma compreensão, uma fala e uma interpretação especiais? A resposta a essas perguntas torna-se tanto mais urgente quanto mais se recorda que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] sucumbe ao impessoal e por ele se deixa dominar. Como ser-lançado-nomundo, não será que a presença [Dasein] foi jogada de saída no caráter público do impessoal? E que mais significa esse ser público do que a abertura específica do impessoal? STMSCC: §34

A fala que pertence à constituição de ser essencial da presença [Dasein] também perfaz a sua abertura. Ela traz a possibilidade de se tornar falação e, com isso, de manter o SER-NO-MUNDO não tanto numa compreensão estruturada, mas de trancar e encobrir os entes intramundanos. Para isso, porém, não necessita da intenção de enganar. A falação não tem o modo de ser em que apresenta conscientemente algo como algo. O que é sem solo ou fundamento já lhe basta para transformar a abertura em fechamento. Pois o que foi dito já foi sempre compreendido como algo "que diz", ou seja, que descobre. A falação é, pois, por si mesma, um fechamento, devido à sua própria abstenção de retornar à base e ao fundamento do referencial. STMSCC: §35

Obstruindo da maneira descrita, a falação constitui o modo de ser da compreensão desenraizada de presença [Dasein]. Ela não se apresenta como estado simplesmente dado de algo simplesmente dado, mas, existencialmente sem raízes, ela mesma é no modo de um contínuo [233] desenraizamento. Do ponto de vista ontológico, isso significa: como SER-NO-MUNDO, a presença [Dasein] que se mantém na falação cortou suas remissões ontológicas primordiais, originárias e legítimas com o mundo, com a co-presença e com o próprio ser-em. Ela se mantém oscilante e, desse modo, sempre é e está junto ao "mundo", com os outros e consigo mesma. Somente um ente cuja abertura é constituída pela fala compreensiva e sintonizada numa disposição, ou seja, que tenha o seu pre [das Da], que é e está "no-mundo", nessa constituição ontológica, é que também traz a possibilidade ontológica de um tal desenraizamento. Mais do que um não-ser, esse desenraizamento perfaz sua "realidade" mais cotidiana e mais persistente. STMSCC: §35

O SER-NO-MUNDO está, numa primeira aproximação, empenhado no mundo das ocupações. A ocupação é dirigida pela circunvisão que descobre o que está à mão e o preserva nesse estado de descoberta. A circunvisão confere a todos os desempenhos e a todos os dispositivos a pista de procedimento, os meios de execução, a ocasião adequada e o momento apropriado. A ocupação pode descansar, no sentido de interromper o desempenho com o repouso ou de finalizá-lo. No descanso, a ocupação não desaparece. A circunvisão é que, sem dúvida, se libera por não mais se achar comprometida com o mundo do trabalho. No repouso, a cura se recolhe à liberdade da circunvisão. A descoberta do mundo do trabalho, própria da circunvisão, tem o caráter ontológico do dis-tanciar. A circunvisão liberada já não tem mais nada à mão, de cuja proximidade tivesse de se ocupar. Sendo essencialmente em dis-tanciando, cria para si novas possibilidades de distanciar; isto significa, tende e se movimenta partindo do que se acha mais proximamente à mão, rumo ao mundo distante e estranho. Repousando e permanecendo, a cura transforma-se em ocupação das possibilidades de ver o "mundo" somente em seus aspectos. A presença [Dasein] busca o distante somente para torná-lo, em seu aspecto, próximo de si. A presença [Dasein] só se deixa arrastar pelo aspecto do mundo. Trata-se de um modo de ser onde ela se ocupa em tornar-se desprendida de si mesma enquanto SER-NO-MUNDO, desprendida do ser junto ao que imediatamente está à mão na cotidianidade. STMSCC: §36

A curiosidade liberada, porém, ocupa-se em ver, não para compreender o que vê, ou seja, para chegar a ele num ser, mas apenas para ver. Ela busca apenas o novo a fim de, por ele renovada, correr para uma outra novidade. Esse acurar em ver não trata de apreender e nem de ser e estar na verdade através do saber, mas sim das possibilidades de abandonar-se ao mundo. Por isso, a curiosidade [236] caracteriza-se, especificamente, por uma impermanência junto ao que está mais próximo. Por isso também não busca o ócio de uma permanência contemplativa e sim a excitação e inquietação mediante o sempre novo e as mudanças do que vem ao encontro. Em sua impermanência, a curiosidade se ocupa da possibilidade contínua de dispersão. A curiosidade nada tem a ver com a contemplação admiradora dos entes, o thaumazein  . Ela não se empenha em se deixar levar para o que não compreende através da admiração, do espanto. Ela se ocupa em providenciar um conhecimento para simplesmente ter-se tornado consciente. Os dois momentos constitutivos da curiosidade, a impermanência no mundo circundante das ocupações e a dispersão em novas possibilidades, fundam a terceira característica essencial desse fenômeno, que chamamos de desamparo. A curiosidade está em toda parte e em parte nenhuma. Este modo de SER-NO-MUNDO desvela um novo modo de ser da presença [Dasein] cotidiana em que ela se encontra constantemente desenraizada. STMSCC: §36

Esse modo de ser da abertura do SER-NO-MUNDO também domina inteiramente a convivência como tal. Numa primeira aproximação, o outro "está por aí" pelo que se ouviu impessoalmente dele, pelo que se sabe e se fala a seu respeito. A falação logo se insinua dentre as formas de convivência originária. Todo mundo presta primeiro atenção em como o outro se comporta, no que ele irá dizer. A convivência no impessoal não é, de forma alguma, uma justaposição acabada e indiferente, mas um prestar atenção uns nos outros, ambíguo e tenso. Trata-se de um escutar uns aos outros secretamente. Sob a máscara do ser um para o outro atua o ser um contra o outro. STMSCC: §37

A falação, a curiosidade e a ambiguidade caracterizam o modo em que a presença [Dasein] realiza cotidianamente o seu "pre [das Da]", a abertura de SER-NO-MUNDO. Como determinações existenciais, essas características não são algo simplesmente dado na presença [Dasein], constituindo também o seu ser. Nelas e em seu nexo ontológico, desvela-se um modo fundamental de ser da cotidianidade que denominamos com o termo decadência da presença [Dasein]. STMSCC: §38

Este termo não exprime qualquer avaliação negativa. Pretende apenas indicar que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] está junto e no "mundo" das ocupações. Este empenhar-se e estar junto a… possui, frequentemente, o caráter de perder-se no caráter público do impessoal. Por si mesma, em seu próprio poder-ser si mesmo mais autêntico, a presença [Dasein] já sempre caiu de si mesma e decaiu no "mundo". Decair no "mundo" indica o empenho na convivência, na medida em que esta é conduzida pela falação, curiosidade e ambiguidade. O que anteriormente denominamos de impropriedade da presença [Dasein] recebe agora, com a interpretação da decadência, uma determinação mais precisa. Impróprio e não próprio não significam, de forma alguma, "propriamente não", no sentido de a presença [Dasein] perder todo o seu ser nesse modo de ser. Impropriedade também não diz não mais ser e estar no mundo. Ao contrário, constitui justamente um modo especial de [240] SER-NO-MUNDO em que é totalmente absorvido pelo "mundo" e pela co-presença dos outros no impessoal. Não ser ele mesmo é uma possibilidade positiva dos entes que se empenham essencialmente nas ocupações de mundo. Deve-se conceber esse não-ser como o modo mais próximo de ser da presença [Dasein], o modo em que, na maioria das vezes, ela se mantém. STMSCC: §38

Enquanto SER-NO-MUNDO fático, a presença [Dasein], na decadência, já decaiu de si mesma; mas não decaiu em algo ôntico com o que ela se deparou ou não se deparou no curso de seu ser, e sim no mundo que, em si mesmo, pertence ao ser da presença [Dasein]. A decadência é uma determinação existencial da própria presença [Dasein] e não se refere a ela como algo simplesmente dado, nem a relações simplesmente dadas com o ente do qual ela "provém", ou com o qual ela posteriormente acaba entrando em um commercium. STMSCC: §38

Por ocasião da primeira indicação do SER-NO-MUNDO como constituição fundamental da presença [Dasein] e na caracterização de seus momentos constitutivos não se considerou fenomenalmente o seu modo de ser na análise da constituição de ser. Sem dúvida, os modos básicos possíveis de ser-em, ocupação e preocupação, foram descritos. Entretanto, não se discutiu a questão do modo de ser cotidiano dessas modalidades. Mostrou-se também que o ser-em difere inteiramente de um contrapor-se observador ou atuante, isto é, que não se trata do simplesmente dar-se em conjunto de um sujeito e um objeto. Não obstante, manteve-se a aparência de que o SER-NO-MUNDO constitui uma armação rígida dentro da qual se desenrolam as possíveis atitudes da presença [Dasein] com seu mundo, sem que se altere ou mesmo se toque na estrutura ontológica do próprio "aparelhamento". [241] Esse pretenso "aparelhamento", no entanto, também constitui o modo de ser da presença [Dasein]. No fenômeno da decadência, documenta-se um modo existencial de SER-NO-MUNDO. STMSCC: §38

A falação abre para a presença [Dasein] o ser, em compreendendo, para o seu mundo, para os outros e para consigo mesma, mas de maneira a que esse ser para… conserve o modo de uma oscilação sem solidez. A curiosidade abre toda e qualquer coisa, de maneira que o ser-em esteja em toda parte e em parte nenhuma. A ambiguidade não esconde nada à compreensão de presença [Dasein], mas só o faz para rebaixar o SER-NO-MUNDO ao desenraizamento do em toda parte e em parte nenhuma. STMSCC: §38

Com o esclarecimento ontológico do modo de SER-NO-MUNDO cotidiano, que transparece nesses fenômenos, poderemos adquirir uma determinação existencial suficiente da constituição fundamental da presença [Dasein]. Que estrutura mostra a "mobilidade" da presença [Dasein]? STMSCC: §38

A falação e a interpretação pública nela inscrita constituem-se na convivência. A falação não se dá dentro do mundo como um produto isolado da convivência e simplesmente dado para ela dentro do mundo. Também não pode ser esvaziada como uma "generalidade" que, não pertencendo essencialmente a ninguém, não seria "propriamente" nada e que só ocorreria "realmente" no dizer da presença [Dasein] singular. A falação é o modo de ser da própria convivência e não surge em certas circunstâncias que agiriam "de fora" sobre a presença [Dasein]. Se, porém, na falação e na interpretação pública, a própria presença [Dasein] confere a si mesma a possibilidade de perder-se no impessoal e de decair na falta de solidez, é porque a própria presença [Dasein] prepara para si mesma a tentação constante de decair. É que o SER-NO-MUNDO já é em si mesmo tentador. STMSCC: §38

Tornando-se desse modo tentação, a interpretação pública mantém a presença [Dasein] presa em sua decadência. A falação e a ambiguidade, o já ter visto tudo e já ter compreendido tudo, perfazem a pretensão de que a abertura da presença [Dasein], assim disponível e dominante, seria capaz de lhe assegurar a certeza, a autenticidade e a plenitude de todas as possibilidades de seu ser. A certeza de si mesmo e a decisão do impessoal espalham uma suficiência crescente no tocante à compreensão própria e disposta. A pretensão do impessoal, [242] de nutrir e dirigir toda "vida" autêntica, tranquiliza a presença [Dasein], assegurando que tudo "está em ordem" e que todas as portas estão abertas. O SER-NO-MUNDO da decadência é, em si mesmo, tanto tentador como tranquilizante. STMSCC: §38

Essa tranquilidade no ser impróprio não conduz, todavia, à inércia e à inatividade. Ao contrário, move para "promoções" desenfreadas. O decair no "mundo" já não tem mais repouso. A tranquilidade tentadora aumenta a decadência. No tocante à interpretação da presença [Dasein], pode surgir a convicção de que compreender as culturas mais estranhas e a sua "síntese" com a própria cultura levaria a um esclarecimento verdadeiro e total da presença [Dasein] a seu próprio respeito. A curiosidade multidirecionada e a inquietação de tudo saber dá a ilusão de uma compreensão universal de presença [Dasein]. Mas o que propriamente se deve compreender permanece, no fundo, indeterminado e inquestionado; não se compreende que compreender é um poder-ser que só pode ser liberado na presença [Dasein] mais própria. Essa comparação de si mesma com tudo, tranquila e que tudo "compreende", move a presença [Dasein] para uma alienação na qual se lhe encobre o seu poder-ser mais próprio. O SER-NO-MUNDO decadente, tentador e tranquilizante é também alienante . STMSCC: §38

A decadência não determina apenas existencialmente o SER-NO-MUNDO. O turbilhão também revela o caráter de mobilidade e de lance do estar-lançado que se pode impor a si mesmo na disposição da presença [Dasein]. O estar-lançado não só não é um "feito pronto" como também não é um fato acabado. Pertence à facticidade da presença [Dasein] ter de permanecer em lance enquanto for o que é e, ao mesmo tempo, de estar envolta no turbilhão da impropriedade do impessoal. Pertence à presença [Dasein] que, sendo, está em jogo o seu próprio ser, o estar-lançado no qual a facticidade se deixa e faz ver fenomenalmente. A presença [Dasein] existe faticamente. STMSCC: §38

Contudo, nessa demonstração da decadência não se evidencia um fenômeno que fala diretamente contra a determinação pela qual se indicou e caracterizou a ideia formal de existência? Será que a presença [Dasein] pode ser compreendida como no ente em cujo ser está em jogo o poder-ser, se justamente em sua cotidianidade a presença [Dasein] se perdeu a si mesma e, na decadência, "vive" fora de si mesma? A decadência no mundo só constituirá, porém, uma "prova" fenomenal contra a existencialidade da presença [Dasein], caso se admita a presença [Dasein] como um eu-sujeito isolado, como um si-mesmo pontual, do qual ela parte e se move. Nesse caso, o mundo seria um objeto. A decadência no mundo sofreria assim uma transformação em sua interpretação ontológica, tornando-se algo simplesmente dado nos moldes de um ente intramundano. Se, no entanto, mantivermos o ser da presença [Dasein] na constituição de SER-NO-MUNDO, revelar-se-á que enquanto modo de ser deste ser-em, a decadência apresenta a prova mais elementar a favor da existencialidade da presença [Dasein]. Na decadência, trata-se apenas de poder-SER-NO-MUNDO, embora no modo [244] da impropriedade. A presença [Dasein] só pode decair porque nela está em jogo o SER-NO-MUNDO, no modo de compreender e dispor-se. Em contrapartida, a existência própria não é nada que paire por sobre a decadência do cotidiano. Em sua estrutura existencial, ela é apenas uma apreensão modificada da cotidianidade. STMSCC: §38

A interpretação ontológico-existencial não se refere, portanto, a uma fala ôntica sobre a "corrupção da natureza humana", não apenas porque lhe faltam os recursos necessários, mas também porque a sua problemática antecede qualquer enunciado sobre corrupção ou incorruptibilidade. A decadência é um conceito ontológico de movimento. Do ponto de vista ôntico, não fica decidido se o homem foi ou não "sorvido no pecado", se está ou não no status corruptionis, se transmigrou para o status integritatis ou se encontra num estado intermediário, isto é, no status gratiae. Fé e "visão de mundo" é que deverão recorrer às estruturas existenciais explicitadas, a fim de poderem emitir tais e tais enunciados e enunciar a presença [Dasein] como SER-NO-MUNDO, supondo-se evidentemente que seus enunciados também pretendam uma compreensão conceitual. STMSCC: §38

A presença [Dasein] existe faticamente. O que se questiona é a unidade ontológica de existencialidade e facticidade, a copertinência essencial destas com relação àquela. A presença [Dasein], em razão da disposição a que pertence de modo essencial, possui um modo de ser em que ela é trazida para diante de si mesma e se abre para si em seu estar-lançado. O estar-lançado, porém, é o modo de ser de um ente [246] que sempre é ele mesmo as suas possibilidades e isso de tal maneira que ele se compreende nessas possibilidades e a partir delas (projeta-se para elas). O SER-NO-MUNDO, ao qual pertencem, de maneira igualmente originária, tanto o ser junto ao que está à mão quanto o ser-com os outros, é sempre em virtude de si mesmo. Todavia, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, o si-mesmo é o impropriamente si-mesmo. O SER-NO-MUNDO já está sempre em decadência. Pode-se, portanto, determinar a cotidianidade mediana da presença [Dasein] como SER-NO-MUNDO aberto na decadência que, lançado, projeta-se e que, em seu ser junto ao "mundo" e em seu ser-com os outros, está em jogo o seu poder-ser mais próprio. STMSCC: §39

Para se compreender o que se quer dizer com fuga decadente de si mesma, inerente à presença [Dasein], é preciso lembrar que a constituição fundamental da presença [Dasein] é SER-NO-MUNDO. Aquilo com que a angústia se angustia é o SER-NO-MUNDO como tal. Como se distingue fenomenalmente o com quê a angústia se angustia daquilo que o medo teme? O com quê da angústia não é, de modo algum, um ente intramundano. Por isso, com ele não se pode estabelecer nenhuma conjuntura essencial. A ameaça não possui o caráter de algo prejudicial que diria respeito ao ameaçado na perspectiva determinada de um específico poder-ser fático. O com quê da angústia é inteiramente indeterminado. Essa indeterminação não apenas deixa faticamente indefinido que ente intramundano "ameaça" como também diz que o ente intramundano é "irrelevante". Nada do que é simplesmente dado ou que se acha à mão no interior do mundo serve para a angústia com ele angustiar-se. A totalidade conjuntural [252] do manual e do ser simplesmente dado que se descobre no mundo não tem nenhuma importância, ela se perde em si. O mundo possui o caráter de total insignificância. Na angústia, não se dá o encontro disso ou daquilo com o qual se pudesse estabelecer uma conjuntura ameaçadora. STMSCC: §40

O que se estreita não é isso ou aquilo, também não é a totalidade do que é simplesmente dado no sentido de uma soma, e sim a possibilidade de tudo que está à mão, isto é, do próprio mundo. Quando a angústia passa, diz-se costumeiramente: "propriamente não foi nada". De fato, essa fala refere-se onticamente ao que foi. A fala cotidiana empenha-se em ocupar e discutir o que está à mão. O com quê a angústia se angustia nada tem a ver com o manual intramundano. Mesmo esse nada ter a ver, o único que a fala cotidiana da circunvisão é capaz de compreender, não é um nada completo. O nada da manualidade funda-se em "algo" [NH: portanto, aqui nada há que ver com "niilismo"] mais originário, isto é, a no mundo. Do ponto de vista ontológico, porém, ele pertence essencialmente ao ser da presença [Dasein] como SER-NO-MUNDO. Se, portanto, [253] o nada, ou seja, o mundo como tal, se apresenta como aquilo com que a angústia se angustia, isso significa que a angústia se angustia com o SER-NO-MUNDO ele mesmo [NH: enquanto determinante do ser como tal; o que é absolutamente inesperado e insuportável – estranho]. STMSCC: §40

A angústia não é somente angústia com… mas, enquanto disposição, é também angústia por… O por quê a angústia se angustia não é um modo determinado de ser e de possibilidade da presença [Dasein]. A própria ameaça é indeterminada, não chegando, portanto, a penetrar como ameaça nesse ou naquele poder-ser faticamente concreto. A angústia se angustia pelo próprio SER-NO-MUNDO. Na angústia perde-se o que se encontra à mão no mundo circundante, ou seja, o ente intramundano em geral. O "mundo" não é mais capaz de oferecer alguma coisa, nem sequer a co-presença dos outros. A angústia retira, pois, da presença [Dasein] a possibilidade de, na decadência, compreender a si mesma a partir do "mundo" e da interpretação pública. Ela remete a presença [Dasein] para aquilo por que a angústia se angustia, para o seu próprio poder-SER-NO-MUNDO. A angústia singulariza a presença [Dasein] em seu próprio SER-NO-MUNDO que, em compreendendo, se projeta essencialmente para possibilidades. Naquilo por que se angustia, a angústia abre a presença [Dasein] como ser-possível e, na verdade, como aquilo que, somente a partir de si mesmo, pode singularizar-se na singularidade. STMSCC: §40

Na presença [Dasein], a angústia revela o ser para o poder-ser mais próprio, ou seja, o ser-livre para a liberdade de escolher e acolher a si mesma. A angústia arrasta a presença [Dasein] para o ser-livre para… (propensio in…), para a propriedade de seu ser enquanto possibilidade de ser aquilo que já sempre é. A presença [Dasein] como SER-NO-MUNDO entrega-se, ao mesmo tempo, à responsabilidade desse ser. STMSCC: §40

O por quê a angústia se angustia desvela-se como o com quê ela se angustia: o SER-NO-MUNDO. A mesmidade do com quê e do [254] pelo quê a angústia se angustia se estende até ao próprio angustiar-se. Pois, enquanto disposição, esse constitui um modo fundamental de SER-NO-MUNDO. A mesmidade existencial do abrir e do aberto em que se abre o mundo como mundo, o ser-em como poder-ser singularizado, puro e lançado, evidencia que, com o fenômeno da angústia, se fez tema de interpretação uma disposição privilegiada. A angústia singulariza e abre a presença [Dasein] como "solus ipse". Esse "solipsismo" existencial, porém, não dá lugar a uma coisa-sujeito isolada no vazio inofensivo de uma ocorrência desprovida de mundo. Ao contrário, confere à presença [Dasein] justamente um sentido extremo em que ela é trazida como mundo para o seu mundo e, assim, como SER-NO-MUNDO para si mesma. STMSCC: §40

Doravante, torna-se fenomenalmente visível do que foge a decadência como fuga. Não foge de um ente intramundano mas justamente para esse ente, a fim de que a ocupação perdida no impessoal possa deter-se na familiaridade tranquila. A fuga decadente para [255] o sentir-se em casa do que é público foge de não sentir-se em casa, isto é, da estranheza inerente à presença [Dasein] enquanto SER-NO-MUNDO lançado para si mesmo em seu ser. Essa estranheza persegue constantemente a presença [Dasein] e ameaça, mesmo que implicitamente, com a perda cotidiana no impessoal. Essa ameaça pode, faticamente, acompanhar uma certeza total e uma não necessidade das ocupações cotidianas. A angústia pode surgir nas situações mais inofensivas. Também não necessita da escuridão onde alguma coisa comum facilmente se torna estranha. Na escuridão não há "nada" para se ver especialmente, embora o mundo esteja ainda e de maneira mais importuna "por aí". STMSCC: §40

Ao interpretarmos, de modo ontológico-existencial, a estranheza da presença [Dasein] como ameaça que a própria presença [Dasein] experimenta em relação a si mesma, não se afirma, contudo, que na angústia fática a estranheza já se compreenda nesse sentido. O modo cotidiano em que a presença [Dasein] compreende a estranheza é o desvio para a decadência que esconde o não sentir-se em casa. Do ponto de vista fenomenal, porém, a cotidianidade dessa fuga mostra que, enquanto disposição fundamental, a angústia pertence à constituição essencial da presença [Dasein] como SER-NO-MUNDO. E que, como existencial, jamais é algo simplesmente dado e sim um modo próprio da presença [Dasein] fática, ou seja, é uma disposição. O SER-NO-MUNDO tranquilizado e familiarizado é um modo da estranheza da presença [Dasein] e não o a contrário. O não sentir-se em casa [NH: (desapropriação)] deve ser compreendido, existencial e ontologicamente, como o fenômeno mais originário. STMSCC: §40

Como a angústia já sempre determina, de forma latente, o SER-NO-MUNDO, este, enquanto ser que vem ao encontro na ocupação junto ao "mundo", pode sentir medo. Medo é angústia imprópria, entregue à decadência do "mundo" e, como tal, angústia nela mesma velada. STMSCC: §40

Pertence, na verdade, à essência de toda disposição abrir, cada vez, todo o SER-NO-MUNDO, segundo todos os seus momentos constitutivos (mundo, ser-em, ser-próprio). Só na angústia subsiste a possibilidade de uma abertura privilegiada uma vez que ela singulariza. Essa singularização retira a presença [Dasein] de sua decadência, revelando-lhe a propriedade e impropriedade como possibilidades de seu ser. Na angústia, essas possibilidades fundamentais da presença [Dasein], que é sempre minha [NH: não egoisticamente, mas lançado para assumir], mostram-se como elas são em si mesmas, « sem se deixar desfigurar pelo ente intramundano a que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] se atém. [257] STMSCC: §40

A fim de se apreender ontologicamente a totalidade do todo estrutural, deve-se questionar, em primeiro lugar, se o fenômeno da angústia e o que nela se abre podem propiciar fenomenalmente, de maneira igualmente originária, o todo da presença [Dasein], de modo a satisfazer com esses dados a visão indagadora da totalidade. Todo o seu acervo pode ser registrado através de uma enumeração formal: enquanto disposição, o angustiar-se é um modo de SER-NO-MUNDO; a angústia se angustia com o SER-NO-MUNDO lançado; a angústia se angustia por poder SER-NO-MUNDO. Em sua completude, o fenômeno da angústia mostra, portanto, a presença [Dasein] como SER-NO-MUNDO que existe faticamente. Os caracteres ontológicos fundamentais desse ente são existencialidade, facticidade e decadência. Essas determinações existenciais, no entanto, não são partes integrantes de um composto em que se pudesse ou não prescindir de alguma. Ao contrário, nelas se tece um nexo originário que constitui a totalidade procurada do todo estrutural. Na unidade dessas determinações ontológicas da presença [Dasein] é que se poderá apreender ontologicamente o seu ser como tal. Como se deve caracterizar essa unidade em si mesma? STMSCC: §41

Essa estrutura, porém, diz respeito ao todo da constituição da presença [Dasein]. Esse anteceder-a-si-mesma não significa uma espécie de tendência isolada num "sujeito" sem mundo, mas caracteriza o SER-NO-MUNDO. Pertence a esse SER-NO-MUNDO, contudo, que, entregando-se à responsabilidade de si mesmo, já se tenha lançado em um mundo. É na angústia que o abandono da presença [Dasein] a si mesma se mostra em sua concreção originária. Apreendido em sua plenitude, o anteceder-a-si-mesma da presença [Dasein] diz: anteceder-a-si-mesma-no-já-ser-em-um-mundo. Vendo-se fenomenalmente essa estrutura em sua unidade de essência, evidencia-se também o que foi anteriormente exposto na análise da mundanidade. Lá se obteve que a totalidade referencial da significância que, como tal, constitui a mundanidade, ancora-se num em-virtude-de (Worum-willen). O acoplamento da totalidade referencial, das múltiplas remissões do "para-quê" ao que está em jogo na presença [Dasein] não significa a fusão de um "mundo" simplesmente dado de objetos com um sujeito. Ao contrário, é a expressão fenomenal da constituição da presença [Dasein] em seu todo originário, cuja totalidade foi agora explicitada como um anteceder-a-simesma no já ser em… Em outras palavras: existir é sempre fático. Existencialidade determina-se essencialmente pela facticidade. STMSCC: §41

Porque, em sua essência, o SER-NO-MUNDO é cura, pode-se compreender, nas análises precedentes, o ser junto ao manual como ocupação e o ser como co-presença dos outros nos encontros dentro do mundo como preocupação. O ser-junto a é ocupação porque, enquanto modo de ser-em, determina-se por sua estrutura fundamental, que é a cura. A cura caracteriza não somente a existencialidade, separada da facticidade e decadência, como também abrange a unidade dessas determinações ontológicas. A cura não indica, portanto, primordial ou exclusivamente, uma atitude isolada do eu consigo mesmo. A expressão "cura de si mesmo", de acordo com a analogia   de ocupação e preocupação, seria uma tautologia. A cura não pode significar uma atitude especial para consigo mesma porque essa atitude já se caracteriza ontologicamente como anteceder-a-si-mesma; nessa determinação, porém, já se acham também colocados os outros dois momentos estruturais da cura, a saber, o já ser-em e o ser-junto a. STMSCC: §41

O poder-ser, em virtude de que a presença [Dasein] é, possui em si mesmo o modo de SER-NO-MUNDO. Nele reside, portanto, ontologicamente, a remissão ao ente intramundano. A cura é sempre ocupação e preocupação, mesmo que de modo privativo. No querer só se apreende um ente já compreendido, isto é, um ente já projetado em [261] suas possibilidades como ente a ser tratado na ocupação ou a ser cuidado em seu ser na preocupação. É por isso que ao querer sempre pertence algo que se quer, algo que já se determinou a partir daquilo em-virtude-de que se quer. Para a possibilidade ontológica do querer são constitutivos: a abertura prévia do em-virtude-de que (o anteceder-a-si-mesma), a abertura do que se pode ocupar (o mundo como algo em que já se é) e o projeto de compreender da presença [Dasein] num poder-ser para a possibilidade de um ente "que se quis". No fenômeno do querer, transparece a totalidade subjacente da cura. STMSCC: §41

O "querer" tranquilo, que se acha sob a guia do impessoal, também não significa a extinção do ser no poder-ser, mas somente uma modificação. O ser para possibilidades mostra-se, pois, na maior parte das vezes, como simples desejar. No desejo, a presença [Dasein] projeta o seu ser para possibilidades as quais não somente não são captadas na ocupação como não se pensa ou se espera, sequer uma vez, a sua realização. Ao contrário, a predominância do anteceder-a-si-mesma, no modo do simples desejar, comporta uma incompreensão das possibilidades fáticas. O SER-NO-MUNDO, cujo mundo se projeta primariamente como mundo do desejo, perde-se, de modo insustentável, no que se acha disponível, e isso de tal modo que o que está disponível como o único manual jamais é suficiente à luz do [262] que se deseja. Desejar é uma modificação existencial do projetar-se do compreender que, na decadência do estar-lançado, ainda adere pura e simplesmente às possibilidades. Essa adesão fecha as possibilidades; aquilo que está "por aí" na adesão do desejo torna-se "mundo real". Ontologicamente, desejar pressupõe a cura. STMSCC: §41

Em contrapartida, a propensão "para viver" é uma "inclinação" (Hin-zu  ) que traz por si mesma o impulso. É uma "inclinação a qualquer preço". A propensão tenta reprimir outras possibilidades. Aqui também o anteceder-a-si-mesmo é impróprio, embora o deixar-se atropelar pela propensão advenha daquilo mesmo a que se é propenso. A propensão pode abalroar a disposição e o compreender. Mas, com isso, a presença [Dasein] nunca é "mera propensão" à qual, por vezes, se venha acrescentar outras atitudes de dominação e condução. Enquanto modificação de todo SER-NO-MUNDO, a presença [Dasein] já é sempre cura. STMSCC: §41

Esse testemunho pré-ontológico adquire um significado especial não somente por ver a "cura" como aquilo a que pertence a presença [Dasein] humana "enquanto vive", mas porque essa primazia da "cura" emerge no contexto da concepção conhecida em que o homem é apreendido como o composto de corpo e espírito. Cura prima finxit esse ente possui a "origem" de seu ser na cura. Cura teneat, quamdiu vixerit: esse ente não é abandonado por essa origem, mas, ao contrário, por ela mantido e dominado enquanto "for e estiver no mundo". O "SER-NO-MUNDO" tem a cunhagem da "cura", na medida do ser. Esse ente recebe o nome (homo) não em consideração ao seu ser mas por remeter ao elemento de que consiste (húmus). Em que se deve ver o ser "originário" dessa formação? É isso que Saturno, o "tempo", decide. A determinação pré-ontológica da essência do homem, expressa na fábula, visualizou, desde o início, o modo de ser em que predomina seu curso temporal   no mundo. STMSCC: §42

No cumprimento das tarefas preparatórias da analítica existencial da presença [Dasein] surgiu a interpretação do compreender, do sentido [268] e da interpretação. A análise da abertura da presença [Dasein] mostrou, além disso, que, nessa abertura e de acordo com a sua constituição fundamental de SER-NO-MUNDO, a presença [Dasein] desvela-se, de modo igualmente originário, no tocante ao mundo, ao ser-em e ao ser-si-mesmo. Na abertura fática do mundo descobre-se ainda também o ente intramundano. Isso significa: o ser desse ente já é sempre de certo modo conhecido, embora não concebido ontologicamente de maneira adequada. A compreensão pré-ontológica de ser abrange, de certo, todo ente que se abriu na presença [Dasein] de modo essencial, apesar da compreensão de ser em si mesma ainda não conseguir se articular no mesmo grau com os diferentes modos de ser. STMSCC: §43

Essas investigações, que precedem uma possível questão ontológica sobre a realidade, já foram desenvolvidas na analítica existencial precedente. Nela, o conhecimento mostrou o modo derivado de acesso ao real. Em sua essência, o real só se torna acessível como ente intramundano. Todo acesso aos entes intramundanos funda-se, ontologicamente, na constituição fundamental da presença [Dasein], ou seja, no SER-NO-MUNDO. Este, por sua vez, encontra a sua constituição de ser mais originária na cura (anteceder-a-si-mesma-no-ja-ser-em-um-mundo-como-ser-junto-a- entes-intramundanos). STMSCC: §43

A questão se o mundo é real e se o seu ser pode ser provado, questão que a presença [Dasein] enquanto SER-NO-MUNDO haveria de levantar – e quem mais poderia fazê-lo? – mostra-se, pois, destituída de sentido. Trata-se ademais de uma questão ambígua. Confunde-se e não se chega a distinguir mundo enquanto o contexto do ser-em e "mundo" enquanto ente intramundano em que se empenham as ocupações. No entanto, com o ser da presença [Dasein], o mundo já se abriu de modo essencial; com a abertura de mundo, já se descobriu o "mundo". Sem dúvida, o ente intramundano no sentido de real, de ser simplesmente dado, pode ficar encoberto. Entretanto, somente com base num mundo já aberto é que o real pode vir a ser descoberto ou ficar encoberto. Coloca-se a questão da "realidade" do "mundo externo" sem se esclarecer previamente o fenômeno do mundo. De fato, o "problema do mundo externo" orienta-se, constantemente, pelos entes intramundanos (coisas e objetos) e, desse modo, todas as discussões conduzem a uma problemática que, do ponto de vista ontológico, é quase indeslindável. STMSCC: §43

Do ponto de vista ontológico, porém, mesmo que se abrisse mão do primado ôntico do sujeito isolado e da experiência interior, manter-se-ia a posição de Descartes. O que Kant prova – admitindo-se que a prova e a sua base sejam corretas – é o ser simplesmente dado necessariamente em conjunto de um ente que se transforma e um que permanece. Essa equiparação de dois seres simplesmente dados ainda não diz o simplesmente dar-se em conjunto de sujeito e objeto. E mesmo que isso se provasse, permaneceria encoberto o que, do ponto de vista ontológico, é decisivo: a constituição fundamental do "sujeito", da presença [Dasein], como SER-NO-MUNDO. O simplesmente dar-se em conjunto do físico e do psíquico é, do ponto de vista ôntico e ontológico, inteiramente distinto do fenômeno do SER-NO-MUNDO. STMSCC: §43

O "escândalo da filosofia" não reside em essa prova ainda inexistir e sim em sempre ainda se esperar e buscar essa prova. Tais expectativas, intenções e esforços nascem da pressuposição, ontologicamente insuficiente, de algo com relação ao qual um "mundo" simplesmente dado deve comprovar-se independente e exterior. Insuficientes não são as provas. O modo de ser desse ente que prova e exige provas é que se encontra subdeterminado. Daí nasce a impressão de que, comprovando-se a necessidade do dar-se em conjunto de dois seres simplesmente dados, algo se prova ou pode ser provado a respeito da presença [Dasein] enquanto SER-NO-MUNDO. Entendida corretamente, a presença [Dasein] resiste a tais provas porque ela já sempre é, em seu ser, aquilo que as provas posteriores supõem como o que se deve necessariamente demonstrar. STMSCC: §43

Conquanto se pretendesse sustentar que o sujeito já sempre deve pressupor, inconscientemente, que o "mundo externo" é algo simplesmente dado, o ponto de partida construtivo de um sujeito isolado ainda estaria em jogo. O fenômeno do SER-NO-MUNDO permaneceria tão desapercebido como na comprovação de um ser simplesmente [274] dado em conjunto do físico e do psíquico. Nessas pressuposições, a presença [Dasein] chega sempre "muito tarde" porque, do momento em que realiza em seu ser essa pressuposição – e de outro modo essa pressuposição não seria possível – a presença [Dasein] como ente sempre é e está em um mundo. "Antes" de toda pressuposição e atitude caracterizadas pela presença [Dasein], o "a priori" da constituição do ser se oferece no modo de ser da cura. Fé na realidade do "mundo exterior", legítima ou ilegítima, provar essa realidade, seja de modo suficiente ou insuficiente, pressupor essa realidade, implícita ou explicitamente, todas estas tentativas, não possuindo transparência a respeito de seu solo, pressupõe, de início, um sujeito desmundanizado ou inseguro acerca de seu mundo que, antes de tudo, precisa assegurar-se de um mundo. Nesses casos, o SER-NO-MUNDO é, desde o início, colocado diante de um apreender, de um presumir, de um assegurar-se e crer, de uma atitude que, em si mesma, já é um modo derivado de SER-NO-MUNDO. STMSCC: §43

O "problema da realidade", no sentido da questão se um mundo exterior é simplesmente dado e se é passível de comprovação, apresenta-se como um problema impossível. Não porque tenha por consequência aporias intransponíveis, mas porque o próprio ente, que nesse problema é tematizado, recusa por assim dizer esse modo de colocar a questão. O que se deve não é provar que e como um "mundo exterior" é simplesmente dado, e sim demonstrar por que a presença [Dasein], enquanto SER-NO-MUNDO, possui a tendência de primeiro sepultar epistemologicamente o "mundo exterior" em um nada negativo para então permitir que ele ressuscite mediante provas. A razão disso reside na decadência da presença [Dasein] e no deslocamento aí motivado da compreensão primordial do ser para um ser como algo simplesmente dado. Se, nessa orientação ontológica, o modo de colocar a questão for "crítico", encontra então um mero "interior" enquanto o único ser simplesmente dado certo e seguro. Após a desagregação do fenômeno originário do SER-NO-MUNDO, desdobra-se, com base no que resta, ou seja, no sujeito isolado, a correlação com um "mundo". STMSCC: §43

Com a presença [Dasein] enquanto SER-NO-MUNDO, o ente intramundano já sempre se descobriu. Esse enunciado ontológico-existencial parece concordar com a tese do realismo em que o mundo externo é real, ou seja, é algo simplesmente dado. Na medida em que, no enunciado existencial, não se nega o ser simplesmente dado dos entes intramundanos, ela concorda – por assim dizer doxograficamente – com a tese do realismo. Ela se diferencia, porém, em seus fundamentos de todo realismo porque o realismo toma a realidade do "mundo" como algo que necessita de prova e, ao mesmo tempo, como algo que pode ser comprovado. Em contrapartida, no enunciado existencial ambos são negados. O que a separa totalmente do realismo é a incompreensão ontológica de que sofre o realismo. Ele tenta esclarecer a realidade onticamente mediante o contexto efetivo e real entre as coisas reais. STMSCC: §43

Antes de uma orientação "perspectivista", ainda existe a possibilidade de se apresentar a problemática da realidade com a seguinte tese: todo sujeito é o que é somente para um objeto e vice-versa. Nesse princípio formal, porém, os membros da correlação assim como a própria correlação permanecem ontologicamente indeterminados. No fundo, porém, o todo da correlação é pensado, "de algum modo", necessariamente como ente, ou seja, com referência a uma determinada ideia de ser. Assegurando-se previamente o solo ontológico-existencial, mediante a indicação do SER-NO-MUNDO, pode-se então reconhecer a correlação mencionada como uma relação formalizada e ontologicamente indiferente. STMSCC: §43

Caso o título realidade [NH: não realidade como coisidade] signifique o ser dos entes intramundanos simplesmente dados (res) – e apenas isso – para a análise desse modo de ser isto significaria: que o ente intramundano só pode ser concebido ontologicamente mediante o esclarecimento do fenômeno da intramundanidade. Esta, por sua vez, funda-se no fenômeno do mundo, o qual pertence à constituição fundamental da presença [Dasein] enquanto momento essencial da estrutura SER-NO-MUNDO. Do ponto de vista ontológico, SER-NO-MUNDO está imbricado na totalidade estrutural de ser da presença [Dasein], caracterizada como cura. Com isso, caracterizam-se também os fundamentos e horizontes cujo esclarecimento possibilita a análise da realidade. Apenas nesse contexto é que também o caráter do em-si torna-se ontologicamente compreensível. Nas análises anteriores, interpretou-se o ser dos entes intramundanos segundo a orientação desse contexto problemático. STMSCC: §43

O mesmo que foi dito acerca da indeterminação ontológica dos fundamentos em Dilthey   vale fundamentalmente para essa teoria. A análise ontológica dos fundamentos da "vida" não pode ser acrescentada posteriormente como uma infra-estrutura. É ela que sustenta, [279] tenta e condiciona a análise da realidade, bem como toda explicação do conjunto das resistências e de suas pressuposições fenomenais. Resistência vem ao encontro como não deixar passar…, como impedimento da vontade de passar… com isso, no entanto, abre-se algo pelo que impulso e vontade se empenham. A indeterminação ôntica desse pelo que se empenham não pode ser ontologicamente desconsiderada e compreendida como um nada. O próprio empenho … que se depara com resistência, e é o único que pode se deparar, já se acha junto a uma totalidade conjuntural. A sua descoberta, porém, funda-se na abertura do todo referencial da significância. Do ponto de vista ontológico, a experiência de resistência, ou seja, a descoberta daquilo que resiste a um esforço, só é possível com base na abertura de mundo. O conjunto das resistências caracteriza o ser dos entes intramundanos. As experiências de resistência apenas determinam faticamente o alcance e a direção da descoberta dos entes intramundanos que vêm ao encontro. A abertura de mundo não é introduzida pela sua soma, mas, ao contrário, pressuposta. Em sua possibilidade ontológica, o "ser-contra" e o "ser oposto" são sustentados pelo SER-NO-MUNDO que já se abriu. STMSCC: §43

Resistência também não é experimentada num impulso ou vontade que "emergem" por si mesmos. Impulso e vontade mostram-se como modificações da cura. Somente um ente que possui esse modo de ser pode deparar-se com algo que resiste no sentido de algo intramundano. Se a realidade é determinada pelo conjunto das resistências, deve-se, nesse caso, atentar para duas coisas: primeiro, que nessa determinação se encontra apenas um caráter entre outros da realidade, sendo necessário pressupor para o conjunto das resistências o mundo já aberto. Resistência caracteriza o "mundo externo", no sentido dos entes intramundanos, mas nunca no sentido de mundo. "Consciência (Bewusstsein) da realidade" é ela mesma um modo de SER-NO-MUNDO. Toda a "problemática do mundo externo" está necessariamente remetida a esse fenômeno existencial fundamental. STMSCC: §43

Realidade como título ontológico remete ao ente intramundano. Se esse título servir para designar esse modo de ser, a manualidade e o ser simplesmente dado mostram-se como modos da realidade. Se, porém, essa palavra mantiver-se no significado legado a pela tradição [NH: hodierno], ela significa o ser no sentido de coisas simplesmente dadas. Contudo, nem todo ser simplesmente dado é coisa simplesmente dada. A "natureza" que nos "envolve" é, na verdade, um ente intramundano que, no entanto, não apresenta o modo de ser do que está à mão e nem de algo simplesmente dado no modo de "coisidade da natureza". Qualquer que seja a maneira de interpretar esse ser da "natureza", todos os modos de ser dos entes intramundanos fundam-se, ontologicamente, na mundanidade do mundo e, assim, no fenômeno do SER-NO-MUNDO. Disso resulta a seguinte compreensão: realidade não possui primazia no âmbito dos modos de ser dos entes intramundanos, assim como esse modo de ser não pode ser caracterizado adequadamente, do ponto de vista ontológico, como mundo ou presença [Dasein]. STMSCC: §43

Enquanto ser-descobridor, o ser-verdadeiro só é, pois, ontologicamente possível com base no SER-NO-MUNDO. Esse fenômeno, em que reconhecemos uma constituição fundamental da presença [Dasein], constitui o fundamento do fenômeno originário da verdade. É o que agora se vai perseguir mais profundamente. STMSCC: §44

Descobrir é um modo de SER-NO-MUNDO. A ocupação que se dá na circunvisão ou que se concentra na observação descobre entes intramundanos. São estes o que se descobre. São "verdadeiros" num duplo sentido. Primordialmente verdadeiro, isto é, exercendo a ação de descobrir, é a presença [Dasein]. Num segundo sentido, a verdade não diz o ser-descobridor (o descobrimento) mas o ser-descoberto (descoberta). STMSCC: §44

1. A abertura em geral pertence essencialmente à constituição de ser da presença [Dasein]. Abrange a totalidade da estrutura ontológica que se explicitou no fenômeno da cura. À cura pertence não apenas o SER-NO-MUNDO, mas também o ser e estar junto aos entes intramundanos. Juntamente com o ser da presença [Dasein] e a sua abertura se dá, de maneira igualmente originária, a descoberta dos entes intramundanos. STMSCC: §44

A verdade (descoberta) deve sempre ser arrancada primeiramente dos entes. O ente é retirado do encobrimento. A descoberta fática é, ao mesmo tempo, um roubo. Será por acaso que os gregos se pronunciavam a respeito da essência da verdade, valendo-se de uma expressão privativa (a-letheia)? Será que nesse pronunciamento da presença [Dasein] não se anuncia uma compreensão ontológica originária de si mesma que, no entanto, constitui apenas uma compreensão pré-ontológica de que ser e estar na não-verdade constituem uma determinação essencial de SER-NO-MUNDO? STMSCC: §44

A condição ontológico-existencial para se determinar o SER-NO-MUNDO através de "verdade" e "não-verdade" reside na constituição de ser da presença [Dasein] [NH: da presença [Dasein] e por isso da in-sistência], por nós caracterizada como o projeto lançado. Ela é o constitutivo da estrutura da cura. STMSCC: §44

A tese de que o "lugar" genuíno da verdade é o juízo não apenas é erroneamente atribuída a Aristóteles   como constitui, no que respeita a seu conteúdo, um desconhecimento da estrutura da verdade. O enunciado não é o "lugar" primário da verdade. Ao contrário, o enunciado, enquanto modo de apropriação da descoberta e enquanto modo de SER-NO-MUNDO, funda-se no descobrimento ou na abertura da presença [Dasein]. A "verdade" mais originária é o "lugar" do enunciado e a condição ontológica de possibilidade para que o enunciado possa ser verdadeiro ou falso (possa ser descobridor ou encobridor). STMSCC: §44

O que diz "pressupor"? Compreender alguma coisa como a base e o fundamento do ser de um outro ente. Essa compreensão dos entes em seus nexos ontológicos só é possível com base na abertura, ou seja, no ser-descobridor da presença [Dasein]. Pressupor "verdade" significa, pois, compreendê-la como algo em virtude da qual a presença [Dasein] é. Presença, no entanto – e isso reside na constituição de ser como cura – já sempre antecedeu a si mesma. Ela é um ente em que, em seu ser, está em jogo o poder-ser mais próprio. A abertura e o descobrimento pertencem, de modo essencial, ao ser e ao poder-ser da presença [Dasein] como SER-NO-MUNDO. Na presença [Dasein] está em jogo o seu poder-SER-NO-MUNDO e, com isso, a ocupação que descobre na circunvisão o ente intramundano. Na constituição de ser da presença [Dasein] como cura, no anteceder-a-si mesma, reside o "pressupor" mais originário. Porque esse pressupor a si mesmo pertence ao ser da presença [Dasein], "nós" devemos pressupor também a "nós" como algo que se determina pela abertura. Esse "pressupor" radicado no ser da presença [Dasein] não se comporta com os entes não dotados do caráter de presença [Dasein], mas unicamente consigo mesmo. A verdade pressuposta, o "se dá", pelo qual se deve determinar o seu ser, possui o modo e o sentido de ser da própria presença [Dasein]. Devemos "fazer" a pressuposição de verdade porque ela já se "fez" com o ser do "nós". STMSCC: §44

O que se conquistou e o que se busca na análise preparatória da presença [Dasein]? O que achamos foi a constituição fundamental desse ente tematizado, isto é, o SER-NO-MUNDO, cujas estruturas essenciais estão centradas na abertura. A totalidade desse todo estrutural desvelou-se como cura. Nela encontra-se inserido o ser da presença [Dasein]. A análise desse ser tomou como fio condutor a existência que, numa concepção prévia, foi determinada como essência da presença10. Enunciado formalmente, isso significa: enquanto poder-ser que compreende, a presença [Dasein] é o que, sendo, está em jogo como seu próprio ser. O ente, que desse modo está sendo, é sempre eu mesmo. A elaboração do fenômeno da cura permitiu vislumbrar a constituição concreta da existência, ou seja, em seu nexo igualmente originário com a facticidade e a decadência da presença [Dasein]. STMSCC: §45

Desse modo, é urgente a tarefa de se colocar a presença [Dasein] como um todo em sua posição prévia. Isto significa, porém: desenvolver, ao menos uma vez, a questão do poder-ser desse ente como um todo. Na presença [Dasein], enquanto ela é, sempre se acha algo pendente, que ela pode ser e será. A esse pendente pertence o próprio "fim". O "fim" do SER-NO-MUNDO é a morte. Esse fim, que pertence ao poder-ser, isto é, à existência, limita e determina a totalidade cada vez possível da a presença [Dasein]. Mas o estar-no-fim [NH: "ser"-para-o-fim] da presença [Dasein] na morte e, com isso, o ser desse ente como um todo, só poderá ser introduzido, de modo fenomenalmente adequado, na discussão da possibilidade de seu possível ser todo, caso se tenha conquistado um conceito ontológico suficiente, ou seja, existencial da morte. De acordo com o modo [NH: pensado de acordo com o modo de ser da presença [Dasein]] de ser da presença [Dasein], a morte [NH: ser do não ser] só é num ser-para-a-morte existenciário. A estrutura existencial desse ser evidencia-se na constituição ontológica de seu poder-ser todo. Toda a presença [Dasein] existente deixa-se, assim, trazer para a posição prévia existencial. Mas será que a presença [Dasein] também pode existir toda ela de modo próprio? Como se deve, então, determinar a propriedade da existência senão na perspectiva do existir de modo próprio? E de onde retirar o seu critério? Manifestamente, a própria presença [Dasein] deve propiciar antecipadamente em seu ser a possibilidade e a maneira de sua existência própria, uma vez que estas não lhe podem ser impostas, onticamente, e nem encontradas, ontologicamente, por acaso. O testemunho de um poder-ser próprio é fornecido pela consciência . Assim como a morte, esse fenômeno da presença [Dasein] exige uma interpretação existencial genuína. Esta leva à compreensão de que um poder-ser próprio da presença [Dasein] reside no querer-ter-consciência. Segundo seu sentido ontológico, porém, essa possibilidade existenciária tende para uma determinação existenciária no ser-para-a-morte. STMSCC: §45

Tão logo a presença [Dasein] "exista", de tal modo que nela nada mais esteja de forma alguma pendente, ela também já se tornou um com o não-mais-ser-presença. Retirar-lhe o que há de pendente significa aniquilar o seu ser. Enquanto a presença [Dasein] é um ente, ela jamais alcançou seus "todos". Caso chegue a conquistá-los, o ganho se converterá pura e simplesmente em perda do SER-NO-MUNDO. Assim, nunca mais se poderá fazer a sua experiência como um ente. STMSCC: §46

A presença [Dasein] dos outros, com sua totalidade alcançada na morte, também constitui um não mais ser presença [Dasein], no sentido de [311] não-mais-SER-NO-MUNDO. Morrer não significa sair do mundo, perder o SER-NO-MUNDO? Levando-se ao extremo, o não-mais-SER-NO-MUNDO do morto ainda é também um ser, na acepção do ser simplesmente dado de uma coisa corpórea. Na morte dos outros, pode-se fazer a experiência do curioso fenômeno ontológico que se pode determinar como a alteração sofrida por um ente ao passar do modo de ser da presença [Dasein] (da vida) para o modo de não mais ser presença [Dasein]. O fim de um ente, enquanto presença [Dasein], é o seu princípio como mero ser simplesmente dado. STMSCC: §47

É indiscutível que a substituição de uma presença [Dasein] por outra pertence às possibilidades ontológicas da convivência no mundo. Na cotidianidade da ocupação, faz-se um uso múltiplo e constante desse tipo de substituição. No âmbito do "mundo circundante" mais imediatamente ocupado, toda e qualquer procura de…, fornecimento de…, é substituível. A vasta multiplicidade dos modos substituíveis de SER-NO-MUNDO estende-se não apenas aos modos desgastados da convivência pública, atingindo igualmente possibilidades de ocupação, restritas a determinadas esferas e adequadas às profissões, estados e idades. Essa substituição, contudo, de acordo com seu sentido, é sempre substituição "em" ou "junto" a alguma coisa, ou seja, na ocupação de alguma coisa. A presença [Dasein] cotidiana, porém, compreende-se, de início e na maior parte das vezes, a partir daquilo com que ela costuma se ocupar. Aquilo que se faz é [313] aquilo que "se é". com relação a esse ser, ser do empenho cotidiano numa convivência junto ao "mundo" ocupado, não apenas a substituição é possível, como chega a constituir o conviver. Aqui uma presença [Dasein] pode e até deve, dentro de certos limites, "ser" a outra. STMSCC: §47

No sentido mais amplo, a morte é um fenômeno da vida. Deve-se entender vida [NH: quando se entende vida humana. Caso contrário não – "mundo"] como uma espécie de ser ao qual pertence um SER-NO-MUNDO. Do ponto de vista ontológico, esse modo de ser pode fixar-se à presença [Dasein] apenas numa orientação privativa. A presença [Dasein] também pode ser considerada como mera vida. Para o questionamento bio-fisiológico, a presença [Dasein] desliza para o âmbito ontológico, que conhecemos como mundo animal e vegetal. Nesse campo, pode-se alcançar, mediante uma constatação ôntica, dados e estatísticas acerca da duração da vida das plantas, dos animais e dos homens. Podemos reconhecer nexos entre duração da vida, multiplicação e crescimento. Podemos pesquisar as "espécies" de morte, as causas, "instalações e meios" de seu surgimento. [321] STMSCC: §49

A análise ontológica do ser-para-o-fim, por outro lado, não concebe previamente nenhum posicionamento existenciário frente à morte. Caso se determine a morte como "fim" da presença [Dasein], isto é, do SER-NO-MUNDO, ainda não se poderá decidir onticamente se, "depois da morte" um outro modo de ser, seja superior ou inferior, é ainda possível, se a presença [Dasein] "continua vivendo" ou ainda se ela é "imortal", sobrevivendo a si mesma. Também nada se poderá decidir onticamente a respeito do "outro mundo" e de sua possibilidade e nem tampouco sobre "este mundo", no sentido de se propor normas e regras "edificantes" de comportamento frente à morte. Interpretando-se o fenômeno meramente como algo que se instala na presença [Dasein] enquanto possibilidade ontológica de cada presença [Dasein] singular, a análise da morte permanecerá inteiramente "neste mundo". A questão sobre o que há depois da morte apenas terá sentido, razão e segurança metodológica caso se conceba a morte em toda sua essência ontológica. Aqui não se poderá tampouco decidir se essa questão apresenta uma questão teórica possível. A interpretação ontológica da morte ligada a este mundo precede toda especulação ôntica referida ao outro mundo. STMSCC: §49

Para a presença [Dasein], enquanto SER-NO-MUNDO, muitas coisas podem ser impendentes. Em si mesmo, impender não é o que caracteriza propriamente a morte. Ao contrário, também essa interpretação poderia supor que a morte devesse ser compreendida no sentido de um acontecimento impendente que vem ao encontro dentro do mundo. Impendente pode ser, por exemplo, uma tempestade, a reforma da casa, a chegada de um amigo, isto é, entes simplesmente dados, à mão ou ainda co-presentes. A morte impendente não possui esse tipo de ser. STMSCC: §50

A morte é uma possibilidade ontológica que a própria presença [Dasein] sempre tem de assumir. Com a morte, a própria presença [Dasein] é impendente em seu poder-ser mais próprio. Nessa possibilidade, o que está em jogo para a presença [Dasein] é pura e simplesmente seu SER-NO-MUNDO. Sua morte é a possibilidade de poder não mais ser presença [Dasein]. Se, enquanto essa possibilidade, a presença [Dasein] é, para si mesma, impendente, é porque depende plenamente de seu poder-ser mais próprio. Sendo impendente para si, nela se desfazem todas as remissões para outra presença [Dasein]. Essa possibilidade mais própria e irremissível é, ao mesmo tempo, a mais extrema. Enquanto poder-ser, a presença [Dasein] não é capaz de superar a possibilidade da morte. A morte é, em última instância, a possibilidade da impossibilidade pura e simples de presença [Dasein]. Desse modo, a morte desvela-se como a possibilidade mais própria, irremissível e insuperável. Como tal, ela é um impendente privilegiado. Essa possibilidade existencial funda-se em que a presença [Dasein] está, essencialmente, aberta para si mesma e isso no modo de anteceder-a-si-mesma. Esse momento estrutural da cura possui sua concreção mais originária no ser-para-a-morte. O ser-para-o-fim torna-se, fenomenalmente, mais claro como ser-para essa possibilidade privilegiada da presença [Dasein]. STMSCC: §50

Não é, porém, de forma ocasional ou suplementar que a presença [Dasein] realiza para si essa possibilidade mais própria, irremissível e insuperável, no curso de seu ser. Em existindo, a presença [Dasein] já está lançada nessa possibilidade. De início e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] não possui nenhum saber explícito ou mesmo teórico de que ela se ache entregue à sua morte e que a morte pertença ao SER-NO-MUNDO. É na disposição da angústia que o estar-lançado na morte se desvela para a presença [Dasein] de modo mais originário e penetrante. A angústia com a morte é angústia "com" o poder-ser mais próprio, irremissível e insuperável. O próprio SER-NO-MUNDO é aquilo com que ela se angustia. O porquê dessa angústia é o puro e [326] simples poder-ser da presença [Dasein]. Não se deve confundir a angústia com a morte e o medo de deixar de viver. Enquanto disposição fundamental da presença [Dasein], a angústia não é um humor "fraco", arbitrário e casual de um indivíduo singular e sim a abertura de que, como ser-lançado, a presença [Dasein] existe para seu fim. Assim, esclarece-se o conceito existencial da morte como ser-lançado para o poder-ser mais próprio, irremissível e insuperável. com isso, ganha nitidez a delimitação frente a um mero desaparecer, a um mero finar ou ainda a uma "vivência" do deixar de viver. STMSCC: §50

O ter-por-verdadeira a morte – a morte é sempre apenas própria – mostra um outro modo de certeza, sendo mais originário com relação à certeza referente a um ente que vem ao encontro dentro do mundo ou aos objetos formais; trata-se do estar-certo de SER-NO-MUNDO. Como tal, ele não apenas reivindica um comportamento determinado da presença [Dasein], mas a reivindica na plena propriedade de sua existência. No antecipar, a presença [Dasein] só pode certificar-se de seu ser mais próprio numa totalidade insuperável. Por isso, a evidência dos dados imediatos das vivências, do eu e da consciência (Bewusstsein) permanece necessariamente aquém da certeza incluída no antecipar. E isso não porque o seu modo de apreensão não seja rigoroso mas porque, em princípio, esse modo não pode ter por verdadeiro (aberto) o que ele, no fundo, quer "manter" como verdadeiro: enquanto poder-ser, a presença [Dasein] que eu mesmo sou só pode ser propriamente antecipando. STMSCC: §53

No momento em que a presença [Dasein] se perde no impessoal, já se decidiu sobre o poder-ser mais próximo e fático da presença [Dasein], ou seja, sobre as tarefas, regras, parâmetros, a premência e a envergadura do SER-NO-MUNDO da ocupação e preocupação. O impessoal já sempre impediu para a presença [Dasein] a apreensão dessas possibilidades ontológicas. O impessoal encobre até mesmo o ter-se dispensado do encargo de escolher explicitamente tais possibilidades. Fica indeterminado quem "propriamente" escolhe. Essa escolha feita por ninguém, através da qual a presença [Dasein] se enreda na impropriedade, só pode refazer-se quando a própria presença [Dasein] passa da perdição do impessoal para si mesma. Essa passagem, no entanto, deve possuir o modo de ser por cuja negligência a presença [Dasein] se perde na impropriedade. A passagem do impessoal, ou seja, a modificação existenciária do impessoalmente si mesmo para o ser-si-mesmo de maneira própria deve-cumprir-se como recuperação de uma escolha. Recuperar a escolha significa escolher essa escolha, decidir-se por um poder-ser a partir de seu próprio si-mesmo. Apenas escolhendo a escolha é que a presença [Dasein] possibilita para si mesma o seu poder-ser próprio [NH: o acontecimento do ser-filosofia, liberdade]. STMSCC: §54

O impessoalmente si mesmo é interpelado para o si-mesmo. Esse, contudo, não é o si-mesmo que se pode tornar "objeto" de avaliação, nem o si-mesmo que se empenha com curiosidade e sem descanso no exame de sua "vida interior" e nem tampouco o si-mesmo de uma cupidez "analítica" de olhar os estados da alma e suas profundezas. A interpelação do si-mesmo no impessoalmente si mesmo não o leva para um interior a fim de se trancar para o "mundo exterior". O apelo passa por cima de tudo isso e desfaz tudo isso para interpelar [351] unicamente o si-mesmo que, por sua vez, não é senão no modo de SER-NO-MUNDO. STMSCC: §56

Que a presença [Dasein] seja faticamente, esse que ela é já está aberto para a presença [Dasein], não obstante o seu porquê possa manter-se velado. O estar-lançado desse ente pertence à abertura do "pre [das Da]" e se desvela constantemente em cada disposição. Este leva a presença [Dasein], de forma mais ou menos explícita e própria, para diante desse "que" (ela é) enquanto o ente que tem de ser o que é e pode ser". Na maior parte das vezes, porém, o humor fecha o estar-lançado. A presença [Dasein] foge desse estar-lançado para a facilidade da liberdade pretendida pelo impessoalmente-si-mesmo. Caracterizou-se essa fuga como fuga da estranheza que, no fundo, determina a singularidade do SER-NO-MUNDO. A estranheza desvela-se propriamente na disposição fundamental da angústia e, enquanto abertura mais elementar da presença [Dasein] lançada, coloca o seu SER-NO-MUNDO diante do nada do mundo com o qual ela se angustia na angústia por seu poder-ser mais próprio. E se, dispondo no fundo de sua estranheza, a presença [Dasein] fosse quem apela o apelo da consciência? STMSCC: §57

Nada "mundano" pode determinar quem apela em seu modo de ser. Quem apela é a presença [Dasein] em sua estranheza, o SER-NO-MUNDO originariamente lançado enquanto um não sentir-se em casa, o nu e cru "que" (a presença [Dasein] é) no nada do mundo. Quem apela também não é familiar ao impessoalmente-si-mesmo da cotidianidade é algo como uma voz estranha. O que poderia ser mais estranho [355] para o impessoal, perdido no "mundo" das múltiplas ocupações, do que o si-mesmo singularizado na estranheza de si e lançado no nada? O apelo "se" faz e, ao mesmo tempo, nada oferece à escuta do ouvido curioso das ocupações que pudesse ser divulgado e discutido em público. Mas o que a presença [Dasein] deve também relatar a partir da estranheza de seu estar-lançado? O que ainda lhe resta senão o poder-ser de si mesma, desvelado na angústia? Como se faz o apelo senão enquanto um fazer apelo a esse poder-ser, unicamente em jogo para si? STMSCC: §57

Estranheza é, na verdade, o modo fundamental, mas encoberto, de SER-NO-MUNDO. Enquanto consciência, é do fundo desse ser que a presença [Dasein] apela. O "eu sou apelado" é uma fala privilegiada da presença [Dasein]. Só o apelo sintonizado pela angústia possibilita que a presença [Dasein] se projete para o seu poder-ser mais próprio. Compreendido existencialmente, o apelo da consciência é que anuncia o que, anteriormente, não passou de mera afirmação: a estranheza posterga a presença [Dasein] e ameaça a sua perdição no esquecimento de si mesma. STMSCC: §57

A fim de se apreender fenomenalmente o que se ouviu na compreensão do interpelar é preciso retornar, de forma renovada, à interpelação. A interpelação do impessoalmente-si-mesmo significa fazer apelo ao si-mesmo mais próprio para assumir o seu poder-ser e isso enquanto presença [Dasein], ou seja, enquanto SER-NO-MUNDO das ocupações e ser-com os outros. A interpretação existencial daquilo para que o apelo faz apelo não pode pretender delimitar nenhuma possibilidade concreta e singular de existência, desde que suas possibilidades e tarefas metodológicas sejam devidamente compreendidas. Não se pode e nem se quer fixar no apelado o que sempre se dá, existenciariamente, em cada presença [Dasein], mas sim aquilo que pertence à condição existencial de possibilidade do poder-ser fático e existenciário. STMSCC: §58

A consciência é o apelo da cura que, a partir da estranheza do SER-NO-MUNDO, faz apelo para a presença [Dasein] assumir o seu poder ser e estar em dívida mais próprio. O querer-ter-consciência é o compreender que corresponde ao apelar. Ambas as determinações não podem ser meramente harmonizadas com a interpretação vulgar da consciência. Elas parecem, inclusive, contradizê-la diretamente. Chamamos de vulgar a interpretação da consciência porque, na caracterização [369] do fenômeno e de sua "função", ela se atém à consciência impessoal determinando, impessoalmente, como ela a obedece ou não. STMSCC: §59

A decisão é um modo privilegiado de abertura da presença [Dasein]. A abertura já foi interpretada, existencialmente, como verdade originária. Primariamente, esta não é, em absoluto, uma qualidade do "juízo" e nem tampouco de um determinado comportamento, mas um constitutivo essencial do SER-NO-MUNDO. Verdade deve ser concebida como um existencial fundamental. O esclarecimento ontológico da sentença: "a presença [Dasein] é e está na verdade" mostrou a abertura originária desse ente na verdade da existência e, no tocante à sua delimitação, remeteu à análise da propriedade da presença [Dasein]. STMSCC: §60

Com a decisão conquistamos, agora, a verdade mais originária da presença [Dasein] porque a mais própria. A abertura do pre [das Da] abre, cada vez de modo igualmente originário, a totalidade do SER-NO-MUNDO, ou seja, o mundo, o ser-em e o si-mesmo que esse ente é enquanto "eu sou". Com a abertura do mundo, sempre já se descobriram entes [378] intramundanos. A descoberta do que está à mão e do que é simplesmente dado funda-se na abertura de mundo; pois a liberação do todo conjuntural de qualquer manual exige um pre-compreender da significância. Compreendendo-a, a presença [Dasein] ocupada numa circunvisão remete para o que vem ao encontro da mão. O compreender da significância como abertura de cada mundo funda-se, assim, no compreender em virtude de… a que está remetida toda descoberta da totalidade conjuntural. O abrigo, a manutenção, o abandono de suas funções são possibilidades constantes e imediatas da presença [Dasein] para as quais esse ente, em que está em jogo seu ser, sempre já se projetou. Lançada em seu "pre [das Da]", a presença [Dasein] já está sempre faticamente remetida a um "mundo" determinado, o seu. Junto com ele, os projetos são faticamente conduzidos da perdição nas ocupações para o impessoal. Essa perdição pode ser interpelada pelo próprio de cada presença [Dasein], e a interpelação pode ser compreendida no modo da decisão. Essa abertura própria, porém, modifica, de forma igualmente originária, a descoberta do "mundo" e a abertura da co-presença dos outros nela fundada. Quanto a seu "conteúdo", o "mundo" à mão não se torna um outro mundo, o círculo dos outros não se modifica, embora, agora, o ser-para o que está à mão, no modo de compreender e ocupar-se, e o ser-com da preocupação com os outros sejam determinados a partir de seu poder-ser mais próprio. STMSCC: §60

A decisão não desprende a presença [Dasein], enquanto ser-si-mesmo mais próprio, de seu mundo, ela não a isola num eu solto no ar. E como poderia, se a presença [Dasein], no sentido de abertura própria, nada mais é propriamente do que SER-NO-MUNDO? A decisão traz o si-mesmo justamente para o ser que sempre se ocupa do que está à mão e o empurra para o ser-com da preocupação com os outros. STMSCC: §60

No termo situação (posição, condição – "estar em posição de…, estar em condições de…" ), inclui-se um significado espacial. Não pretendemos eliminá-lo do conceito existencial. Pois ele também se acha no "pre [das Da]" da presença [Dasein]. Pertence ao SER-NO-MUNDO uma espacialidade própria, anteriormente caracterizada nos fenômenos de distanciamento e direcionamento. Existindo faticamente, a presença [Dasein] "se arruma". A espacialidade que possui o caráter de presença [Dasein] e sobre cujas bases a existência determina a cada vez o seu "lugar" funda-se, contudo, na constituição de SER-NO-MUNDO. O constitutivo primordial dessa constituição é a abertura. Assim como a espacialidade do pre [das Da] funda-se na abertura, a situação também está fundada na decisão. Cada vez a situação é o pre [das Da], o aberto na decisão, que o ente que existe é. A situação não é a moldura simplesmente dada em que a presença [Dasein] ocorre ou apenas se coloca. Longe de um amálgama simplesmente dado de circunstâncias e acasos, a situação é somente pela e na decisão. Somente decidida para o pre [das Da] em que ela mesma tem de ser em existindo é que se lhe abre, cada vez, o caráter faticamente conjuntural das circunstâncias. Somente para a decisão é que pode ocorrer aquilo que chamamos de acaso, ou seja, o que lhe cai a partir do mundo circundante e do mundo compartilhado. [381] STMSCC: §60

Não apenas a demonstração das estruturas mais elementares do SER-NO-MUNDO, a delimitação do conceito de mundo, o esclarecimento [394] do quem mais imediato e mediano desse ente, do impessoalmente-si-mesmo, a interpretação do "pre [das Da]", mas, sobretudo, as análises de cura, morte, consciência e dívida, mostram como se consolidou, na própria presença [Dasein], a compreensibilidade do poder-ser nas ocupações e de sua abertura, isto é, de seu fechamento. STMSCC: §63

Mesmo imposta metodologicamente, será que a "violência" do dado prévio das possibilidades da existência consegue escapar da arbitrariedade? Mas se, enquanto poder-ser propriamente existenciário, a analítica está à base da decisão antecipadora cuja possibilidade é interpelada pela própria presença [Dasein] e isso com base em sua a existência, será então essa possibilidade arbitrária [NH: isso não; entretanto, "não arbitrário" ainda não significa necessário e constringente]? Será casual a concepção do modo de ser em que o poder-ser da presença [Dasein] se comporta frente à sua possibilidade mais privilegiada, a morte? Terá o SER-NO-MUNDO uma instância de seu poder-ser ainda mais elevada do que a morte? STMSCC: §63

A indicação formal da ideia de existência orientou-se pela compreensão ontológica subsistente na própria presença [Dasein]. Mesmo sem transparência ontológica, desvelou-se, na verdade, que o ente chamado presença [Dasein] sou sempre eu mesmo e isso enquanto poder-ser, pois o que nele está em jogo é seu ser esse estar sendo. Não obstante a falta de determinação ontológica suficiente, a presença [Dasein] se compreende como SER-NO-MUNDO. Sendo desse modo, vêm-lhe ao encontro entes que possuem o modo de ser do manual e do ser simplesmente dado. Por mais que a diferença entre existência e realidade esteja longe de um conceito ontológico, por mais que a presença [Dasein] até compreenda, inicialmente, a existência como realidade, ela não apenas não é algo simplesmente dado mas ela já sempre se compreendeu, em qualquer interpretação mítica ou mágica. Pois, do contrário, ela não "viveria" num mito e não se ocuparia, no rito e no culto, de sua magia. A ideia de existência suposta é o prelineamento, existenciariamente não obrigatório, da estrutura formal de toda compreensão de presença [Dasein]. STMSCC: §63

No dizer-eu, a presença [Dasein] se pronuncia como SER-NO-MUNDO. Mas será então que o dizer-eu cotidiano significa a si como o que está-sendo-no-mundo? Cabe aqui uma distinção. Sem dúvida, ao dizer-eu, a presença [Dasein] refere-se ao ente que ela mesma sempre é. A auto-interpretação cotidiana, porém, tem a tendência de se compreender a partir do "mundo" das ocupações. Ao significar-se onticamente a si mesma, ela não vê o modo de ser daquele ente que ela [405] mesma é. E isso vale, sobretudo, para a constituição fundamental da presença [Dasein], isto é, para o SER-NO-MUNDO. STMSCC: §64

Rigorosamente, sentido significa a perspectiva do projeto primordial de um compreender ser. Com o ser deste ente que ele mesmo é, o SER-NO-MUNDO compreende o ser dos entes intramundanos, de maneira igualmente originária, embora não temática e até indiferenciada, em seus modos primários de existência e realidade. Toda experiência ôntica de um ente, tanto a avaliação do que está à mão a numa circunvisão como o conhecimento científico de algo simplesmente dado, está sempre fundada em projetos mais ou menos transparentes do ser do respectivo ente. Mas estes projetos guardam em si uma perspectiva da qual se alimenta, por assim dizer, a compreensão de ser. STMSCC: §65

A primeira tarefa consiste em tornar visível a impropriedade da presença [Dasein] em sua temporalidade específica, através da análise temporal do poder-ser todo em sentido próprio da presença [Dasein] e de uma caracterização geral da temporalidade da cura. Numa primeira aproximação, a temporalidade mostra-se na decisão antecipadora. Ela é o modo próprio da abertura que, na maior parte das vezes, se mantém na impropriedade da auto-interpretação decadente do impessoal. Caracterizar a temporalidade da abertura em geral leva à compreensão temporal do SER-NO-MUNDO mais imediato das ocupações e, com isso, da indiferença mediana da presença [Dasein], aqui tomada como primeiro ponto de partida da analítica existencial. Chamamos de cotidianidade o modo de ser mediano da presença [Dasein] no qual, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, ela se mantém. Mediante a retomada da análise anterior, a cotidianidade deve desvelar o seu sentido temporal para, com isso, deixar vir à [416] luz a problemática abrigada na temporalidade e fazer desaparecer por completo a aparente "evidência" das análises preparatórias. A temporalidade deve, na verdade, confirmar-se em todas as estruturas essenciais da constituição fundamental da presença [Dasein]. Isto, porém, não leva a uma repetição esquemática e exterior das análises realizadas em sua sequência. O curso da análise temporal toma agora uma outra direção, tornando ainda mais claro o contexto das considerações anteriores e superando a casualidade e a aparente arbitrariedade. Além dessas necessidades metodológicas, motivos inerentes ao próprio fenômeno impõem uma outra articulação da análise a ser retomada. STMSCC: §66

A interpretação temporal da cotidianidade e da historicidade prende suficientemente a visão ao tempo originário e o faz de tal maneira que o descobre como condição de possibilidade e necessidade [417] da experiência cotidiana do tempo. Primordialmente, a presença [Dasein] se aplica, em si e para si mesma, de forma expressa ou não, como o ente em que está em jogo o seu ser. Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a cura é ocupação guiada por uma circunvisão. Aplicando-se em virtude de si mesma, a presença [Dasein] se "desgasta". Desgastando-se, a presença [Dasein] gasta a si mesma, ou seja, gasta o seu tempo. Gastando tempo, ela conta com ele. A ocupação que conta e controla na circunvisão descobre, de início, o tempo, e leva à elaboração de uma contagem do tempo. Contar com o tempo é constitutivo do SER-NO-MUNDO. Contando com seu tempo, o descobrir da circunvisão nas ocupações deixa vir ao encontro no tempo o manual e o ser simplesmente dado descobertos. O ente intramundano é, então, acessível como "o que está sendo no tempo". Chamamos de intratemporalidade a determinação temporal dos entes intramundanos. O "tempo" que nela, de início, se pode encontrar onticamente torna-se a base da formação do conceito vulgar e tradicional de tempo. O tempo enquanto intratemporalidade surge, no entanto, de um modo essencial de temporalização da temporalidade originária. Esta origem diz que o tempo "no qual" nasce e perece um ente simplesmente dado é um fenômeno autêntico do tempo e não a exteriorização para o espaço de um "tempo qualitativo", como pretende fazer crer a interpretação do tempo feita por Bergson  , que, do ponto de vista ontológico, é inteiramente insuficiente e indeterminada. STMSCC: §66

Só a elaboração da temporalidade da presença [Dasein] enquanto cotidianidade, historicidade e intratemporalidade proporciona a visão plena das implicações de uma ontologia originária da presença [Dasein]. Enquanto SER-NO-MUNDO, a presença [Dasein] existe, faticamente, com e junto a entes que vêm ao encontro dentro do mundo. É, pois, no horizonte do ser dos entes não dotados do caráter de presença [Dasein], ou seja, do que meramente "subsiste", nem mesmo sendo dado ou à mão, que o ser da presença [Dasein] recebe sua transparência ontológica abrangente. A interpretação das derivações do ser de tudo aquilo do qual dizemos que é necessita, porém, de uma ideia suficientemente clara do ser em geral. Enquanto não se conquistar esta ideia, a análise temporal da presença [Dasein] a ser retomada permanecerá incompleta e crivada de obscuridades, para não se mencionar as dificuldades referentes ao conteúdo. A análise existencial e temporal da presença [Dasein] exige, por sua vez, uma nova retomada, no âmbito da discussão fundamental do conceito de ser. [418] STMSCC: §66

Para que os fenômenos obtidos na análise preparatória possam ser reconduzidos à visão fenomenológica, basta uma indicação a respeito dos estágios percorridos. A delimitação da cura resultou da análise da abertura constitutiva do ser do "pre [das Da]". O esclarecimento deste fenômeno trouxe consigo a interpretação provisória da constituição fundamental da presença [Dasein], a saber, o SER-NO-MUNDO. A investigação teve início com esta caracterização a fim de assegurar, [419] desde o começo, um horizonte fenomenal suficiente frente às determinações ontológicas prévias da presença [Dasein], em sua maior parte inadequadas e não expressas. Ser-no-mundo foi caracterizado, numa primeira aproximação, na perspectiva do fenômeno do mundo. E, na verdade, a explicação partiu da caracterização ôntico-ontológica do que está à mão e do que é simplesmente dado "em" um mundo circundante para, então, destacando a intramundanidade, nela tornar visível o fenômeno da mundanidade. A estrutura da mundanidade, a significância, demonstrou-se, no entanto, conectada com o para onde o compreender, que pertence essencialmente à abertura, projeta-se, isto é, com o poder-ser da presença [Dasein], em virtude da qual ela existe. STMSCC: §67

A interpretação temporal da presença [Dasein] cotidiana deve partir das estruturas constitutivas da abertura. São elas: compreender, decadência e fala. Os modos de temporalização da temporalidade, a serem liberados no tocante a estes fenômenos, propiciam a base para se determinar a temporalidade do SER-NO-MUNDO. Isso levará, de novo, ao fenômeno do mundo, permitindo uma delimitação da problemática especificamente temporal da mundanidade. Esta deve confirmar-se mediante a caracterização do SER-NO-MUNDO cotidiano e imediato da ocupação decadente na circunvisão. É a sua temporalidade que possibilita a modificação da circunvisão em visualização perceptiva e em conhecimento teórico aí fundado. A temporalidade do SER-NO-MUNDO que assim emerge demonstra-se, também, fundamento da espacialidade específica da presença [Dasein]. Deve-se mostrar a constituição temporal de dis-tanciamento e direcionamento. O todo destas análises desvela uma possibilidade de temporalização da temporalidade em que se funda, ontologicamente, a impropriedade da presença [Dasein]. Além disso, conduz à questão de como se deve compreender o caráter temporal da cotidianidade, o sentido temporal da expressão – "numa primeira aproximação e na maior parte das vezes", aqui constantemente utilizada. A fixação desse problema torna claro que e em que medida o esclarecimento do fenômeno até agora obtido é insuficiente. STMSCC: §67

O presente capítulo obedece, pois, à seguinte estrutura: a temporalidade da abertura em geral (§68); a temporalidade do SER-NO-MUNDO e o problema da transcendência (§69); a temporalidade da espacialidade inerente à presença [Dasein] (§70); o sentido temporal da cotidianidade da presença [Dasein] (§71). [420] STMSCC: §67

Como então distinguir o porvir impróprio? Assim como o porvir em sentido próprio desvela-se na decisão, também este modo ekstático só pode desvelar-se reconduzindo-se, ontologicamente, da compreensão imprópria das ocupações cotidianas, a seu sentido existencial e temporal. Como cura, a presença [Dasein] é, em sua essência, antecipar-se. Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, o SER-NO-MUNDO compreende-se a partir daquilo de que se ocupa. O compreender impróprio projeta-se para o que é passível de [422] ocupação e feitura, para o que é urgente e inevitável nos negócios dos afazeres cotidianos. Todavia, aquilo de que se ocupa é como é, em virtude do poder-ser da cura. Este permite que a presença [Dasein], em seu ser de ocupações, venha-a-si ocupando-se do que se ocupa. Primariamente, a presença [Dasein] não vem-a-si em seu poder-ser mais próprio e irremissível mas é em se ocupando que a presença [Dasein] aguarda a si mesma, a partir do que lhe proporciona ou recusa aquilo de que se ocupa. É a partir daquilo de que se ocupa que a presença [Dasein] vem-a-si. O porvir impróprio possui o caráter de aguardar . Compreender-se, impessoalmente, nas ocupações como o impessoalmente-si-mesmo a partir daquilo que se empreende encontra o "fundamento" de sua possibilidade nesse modo ekstático de porvir. E somente porque de fato a presença [Dasein] aguarda o seu poder-ser, a partir daquilo de que se ocupa, é que ela pode esperar e tecer expectativas… O STMSCC: §68

Começaremos a análise com a demonstração da temporalidade do medo. Caracterizou-se o medo como disposição imprópria. Em que medida o vigor de ter sido é o sentido existencial que o possibilita? Que modo desta ekstase   caracteriza a temporalidade específica do medo? Medo é ter medo do que ameaça. Trata-se do que se aproxima prejudicialmente, como já descrito, do poder-ser fático da presença [Dasein], no âmbito do que está à mão e do que é simplesmente dado nas ocupações. No modo da circunvisão cotidiana, o ter medo abre algo que ameaça. Um sujeito meramente espectador nunca poderia descobrir algo assim. Mas não será esta abertura de ter medo de alguma coisa um deixar vir-a-si? Não é correta a determinação do medo como espera de um mal que está vindo (malum futurum)? Não será o sentido temporal primário do medo tanto o porvir como o vigor de ter sido? Indiscutivelmente, o medo não apenas se "relaciona" com o que "está por vir", entendido como o que só advém "no tempo", mas também esse relacionar-se, em si mesmo, já está por vir, no sentido do tempo originário. Sem dúvida, também pertence à constituição existencial e temporal do medo um aguardar. Mas, de início, isso diz apenas que a temporalidade do medo é imprópria. Será que ter medo de alguma coisa é apenas esperar uma ameaça em advento? Esperar uma ameaça em advento ainda não precisa ser medo, e é tão pouco medo que lhe falta justamente o caráter do humor específico do medo. Este reside em que o aguardar próprio ao medo deixa e faz com que aquilo que ameaça volte para o poder-ser fático, empenhado em ocupações. Só no aguardar é que o que ameaça pode estar de volta para o ente [427] que eu sou e, dessa forma, a presença [Dasein] só pode ser ameaçada caso já se tenha aberto, ekstaticamente, o para onde volta. O caráter de humor e afecção do medo reside em que o aguardar medroso tem medo "de si mesmo", isto é, em que todo ter medo de alguma coisa é um ter medo por… O seu sentido existencial e temporal constitui-se por um esquecer-se de si: qual seja, extrair-se, de forma conturbada, do poder-ser fático em sentido próprio; é nesse esquecer que o SER-NO-MUNDO ameaçado se ocupa do que está à mão. E com razão que Aristóteles determina o medo como lype tis he tarache, aflição e conturbação. A aflição pressiona a presença [Dasein] no sentido de voltar para o seu estar-lançado mas de tal maneira que justamente este estar-lançado se fecha. Já a conturbação funda-se num esquecer. O extrair-se no esquecimento de um poder-ser fático e decidido baseia-se nas possibilidades de salvação e escape previamente descobertas numa circunvisão. Porque se esquece de si e não apreendendo nenhuma possibilidade determinada, a ocupação que se teme salta do mais próximo para o mais próximo. Com isso, todas as possibilidades "possíveis" e impossíveis se oferecem. Aquele que tem medo não se detém em nenhuma delas; o "mundo circundante" não desaparece, ao contrário, lhe vem ao encontro justamente nesse não-mais-se-reconhecer no mundo circundante. Essa atualização conturbada do que é melhor por ser o mais próximo pertence ao esquecimento de si, inerente ao medo. É sabido que o habitante de uma casa em chamas, por exemplo, frequentemente, quer "salvar" as coisas mais indiferentes por estarem mais imediatamente à mão. A atualização esquecida de si de uma confusão de possibilidades soltas possibilita a conturbação do medo que, como tal, lhe constitui o caráter específico de humor. O esquecimento inerente à conturbação também modifica o aguardar, caracterizando-o como um aguardar aflito e conturbado por oposição a uma pura espera. STMSCC: §68

Como a temporalidade da angústia se comporta frente à temporalidade do medo? Chamamos este fenômeno de disposição fundamental. Ela coloca a presença [Dasein] diante de seu estar-lançado mais próprio, desvelando a estranheza do SER-NO-MUNDO cotidiano e familiar. Assim como o medo, a angústia também se determina formalmente por um com quê e um pelo quê a angústia se angustia. A análise mostrou, no entanto, que estes dois fenômenos coincidem. Isto não significa, porém, que os caracteres estruturais do com quê e pelo quê se confundem no sentido de que a angústia não se angustiaria nem com e nem por alguma coisa. A coincidência entre o com quê e o pelo quê deve significar que é um e o mesmo o ente que os realiza, ou seja, a presença [Dasein]. Especificamente, o com quê a angústia se angustia vem ao encontro não como algo determinado numa ocupação. A ameaça não provém do que está à mão e do que é simplesmente dado mas, sobretudo e justamente, de que tudo que está à mão e é simplesmente dado já não "diz" absolutamente nada. Não estabelece mais nenhuma conjuntura com o ente do mundo circundante. O mundo, no contexto do qual eu existo, afundou na insignificância, e o mundo que, dessa forma, se abre só é capaz de liberar entes sem conjuntura. O nada do mundo, com o que a angústia se angustia, não significa que, na angústia, se faça a experiência de uma ausência de seres simplesmente dados dentro do mundo. É preciso que eles venham ao encontro para que não estabeleçam nenhuma conjuntura e possam, assim, mostrar-se numa impiedade vazia. Isso significa, porém, que o aguardar da ocupação não encontra mais nada a partir do qual possa compreender-se. Ele agarra o nada do mundo; deparando-se com o mundo, porém, o compreender é trazido pela angústia para o SER-NO-MUNDO como [429] tal, de maneira que esse com quê a angústia se angustia é, também, o seu por quê. O angustiar-se com alguma coisa não possui nem o caráter de espera, nem de aguardar. O com quê a angústia se angustia já está "pre-sente", é a própria presença [Dasein]. Será que a angústia não se constitui pelo porvir? Sem dúvida, mas não pelo porvir impróprio do aguardar. STMSCC: §68

abertura sempre alcança, de modo igualmente originário, todo o SER-NO-MUNDO, tanto o ser-em como o mundo. Orientando-se pela constituição temporal da abertura, também se [437] deve poder demonstrar a condição ontológica da possibilidade de se dar um ente que existe como SER-NO-MUNDO. STMSCC: §68

Ambos os humores do medo e da angústia, no entanto, nunca "ocorrem" apenas isoladamente no "fluxo das vivências", mas sempre de-terminam o humor de um compreender ou de-terminam para si o humor a partir de um compreender. O medo encontra seu ensejo nos entes que vêm ao encontro no mundo circundante. A angústia, ao contrário, surge da própria presença [Dasein]. O medo sobrevêm a partir do intramundano. A angústia cresce a partir do SER-NO-MUNDO enquanto ser-lançado-para-a-morte. Em seu sentido temporal, este "crescer" da angústia, a partir da própria presença [Dasein], significa que o porvir e a atualidade da angústia se temporalizam a partir de um vigor de ter sido originário, entendido como recolocar a possibilidade de retomada. A angústia, no entanto, só pode "crescer" propriamente numa presença [Dasein] decidida. Embora o decidido desconheça o medo, ele compreende precisamente a possibilidade de angústia como possibilidade do humor que nem inibe e nem conturba. Ao contrário, libera de ĺ "nulas", tornando-o livre para as possibilidades próprias. STMSCC: §68

§69. A temporalidade do SER-NO-MUNDO e o problema da transcendência do mundo STMSCC: §69

Somente partindo do enraizamento da presença [Dasein] na temporalidade é que se pode penetrar na possibilidade existencial do fenômeno, SER-NO-MUNDO, que, no começo da analítica da presença [Dasein], fez-se conhecer como constituição fundamental. Cabia, neste começo, assegurar a unidade inquebrantável da estrutura deste fenômeno. Com isso, ficou em segundo plano a questão sobre o fundamento da unidade possível das articulações desta estrutura. Na intenção de proteger o fenômeno das tendências de fragmentação mais evidentes e, por isso, mais fatais, interpretou-se, com maior [438] detalhamento, o modo mais imediato e cotidiano do SER-NO-MUNDO, a saber, o ser que se ocupa junto ao que está à mão dentro do mundo. Agora que a própria cura foi, ontologicamente, delimitada e reconduzida ao seu fundamento existencial, isto é, à temporalidade, a ocupação pode, por sua vez, ser explicitamente concebida a partir da cura e da temporalidade. STMSCC: §69

A análise da temporalidade da ocupação se atém, inicialmente, ao modo de atarefar-se, numa circunvisão, com o que está à mão. Depois, persegue a possibilidade existencial e temporal de a ocupação, guiada pela circunvisão, modificar-se em descoberta "meramente" visualizadora dos entes intramundanos, no sentido de certas possibilidades da pesquisa científica. A interpretação da temporalidade do ser junto a, tanto o guiado pela circunvisão como o que se ocupa teoricamente do que está à mão e é simplesmente dado dentro do mundo, mostra, igualmente, como esta temporalidade já é, preliminarmente, a condição de possibilidade do SER-NO-MUNDO, em que se funda o ser junto aos entes intramundanos. A análise temática da constituição temporal do SER-NO-MUNDO leva às seguintes questões: De que modo algo como mundo é possível? Em que sentido mundo é? O que o mundo transcende e como transcende? Como o ente intramundano "independente" realiza uma "dependência" com o mundo transcendente? A exposição ontológica destas questões ainda não é a sua resposta. Bem ao contrário, ela propicia o esclarecimento prévio necessário das estruturas com as quais se pretende colocar o problema da transcendência. A interpretação existencial e temporal do SER-NO-MUNDO considera, pois, três aspectos: a) a temporalidade da ocupação guiada pela circunvisão; b) o sentido temporal em que a ocupação, guiada pela circunvisão, se modifica em conhecimento teórico do que é simplesmente dado dentro do mundo; c) o problema temporal da transcendência do mundo. STMSCC: §69

O deixar e fazer em conjunto da ocupação que, por sua vez, se funda na temporalidade, ainda é uma compreensão inteiramente pré-ontológica e não tematizada de conjuntura e manualidade. Em seguida, mostrar-se-á em que medida a temporalidade também funda a compreensão destas determinações de ser como tais. Antes, porém, é necessário comprovar, de forma ainda mais concreta, a temporalidade do SER-NO-MUNDO. Neste intuito, observaremos o "surgimento" da atitude teórica frente ao "mundo" a partir da ocupação do manual, guiada pela circunvisão. Tanto a descoberta guiada pela circunvisão quanto a descoberta teórica dos entes intramundanos [444] danos fundam-se no SER-NO-MUNDO. A interpretação existencial e temporal daquela deve preparar a caracterização temporal desta constituição fundamental da presença [Dasein]. STMSCC: §69

Se, no movimento das análises ontológico-existenciais, questionamos o "aparecimento" da descoberta teórica a partir da ocupação guiada pela circunvisão, então o que se problematiza não é a história e o desenvolvimento ôntico da ciência e nem suas condições fatuais ou seus fins mais imediatos. Buscando a gênese ontológica da atitude teórica, colocamos a seguinte questão: Quais as condições de possibilidade, inerentes à constituição ontológica da presença [Dasein] e existencialmente necessárias, para que a presença [Dasein] possa existir no modo da pesquisa científica? Esse questionamento visa a um conceito existencial da ciência. Deste difere o conceito "lógico", que compreende a ciência no tocante a seus resultados, determinando-a como "um sistema de fundamentação de sentenças verdadeiras, isto é, de validade universal". O conceito existencial compreende a ciência como modo da existência e, portanto, como modo do SER-NO-MUNDO, que descobre e abre o ente e o seu ser. Só se pode, no entanto, desenvolver de forma plena e suficiente a interpretação existencial da ciência, caso se esclareça, a partir da temporalidade da existência, o sentido de ser e do "nexo"entre ser e verdade. As reflexões que se seguem preparam a compreensão desta problemática central, somente a partir da qual se poderá desdobrar a ideia da fenomenologia por oposição ao conceito preliminar, já indicado de forma introdutória. STMSCC: §69

De acordo com o estágio em que se encontra a consideração feita até aqui, impõe-se uma outra delimitação da interpretação da atitude teórica. Orientando-se pelo propósito de penetrar na constituição temporal do SER-NO-MUNDO, investigaremos apenas a transformação [445] formação da ocupação do manual, guiada pela circunvisão, em pesquisa do ser simplesmente dado dentro do mundo. STMSCC: §69

É fácil caracterizar a transformação do manejo e uso "práticos", guiados pela circunvisão, em pesquisa "teórica", considerando que: a pura visualização dos entes aparece na medida em que a ocupação se abstém de todo manejo. O decisivo para o "aparecimento" do comportamento teórico residiria, portanto, no desaparecimento da práxis. É justamente quando se toma a ocupação "prática" como o modo primário e predominante de ser da presença [Dasein] que a "teoria" deve sua possibilidade ontológica à falta da práxis, ou seja, a uma privação. Todavia, a suspensão de um manejo específico no modo de lidar da ocupação não faz da circunvisão orientadora um simples resto. A ocupação é que se desloca para a [358] mera circunvisão de si mesma. com isso, ainda não se atinge, em absoluto, a atitude "teórica" da ciência. Ao contrário, demorando-se na suspensão do manejo, a ocupação pode assumir o caráter de uma circunvisão ainda mais aguçada, no sentido de "testar", examinar o que foi alcançado ou de supervisionar o "funcionamento" que justamente agora "está parado". Abster-se do uso instrumental significa tão pouco "teoria" que, na "observação" demorada, a circunvisão permanece inteiramente atada ao instrumento ocupado e à mão. O lidar "prático" possui seus modos próprios de demorar-se. E assim como a prática tem sua visão específica ("teoria"), também a pesquisa teórica não se dá sem a sua própria práxis. A leitura dos números e medidas, que resultam de um experimento, frequentemente necessita de uma construção "técnica" complexa que ordena a experiência. A observação no microscópio depende da produção de "preparados". A escavação arqueológica, que precede à interpretação do "achado", exige as mais intensas manipulações. E mesmo a elaboração mais "abstrata" de problemas e a fixação do que foi obtido manipulam instrumentos de escrever, por exemplo. Por mais "desinteressantes" e "evidentes" que possam ser estes aspectos inerentes à pesquisa científica, do ponto de vista ontológico, eles não são, de forma alguma, indiferentes. A referência explícita a que a atitude científica, enquanto modo de SER-NO-MUNDO, não é apenas uma "atividade puramente espiritual" pode ser considerada prolixa e supérflua. Se, nessa trivialidade, ao [446] menos ficasse claro que não é nada fácil perceber onde se situa, propriamente, a fronteira ontológica entre a atitude "teórica" e a "não teórica"! STMSCC: §69

O projeto científico dos entes que, já de algum modo, vêm ao encontro possibilita a compreensão explícita de seu modo de ser e isto de tal maneira que assim se tornam manifestos os possíveis caminhos para a pura descoberta dos entes intramundanos. Chamamos de tematização o todo desse projeto ao qual pertencem a articulação da compreensão de ser, a delimitação dela derivada do setor de objetos e o prelineamento da conceitualização adequada ao ente. A tematização visa liberar os entes que vêm ao encontro dentro do mundo de modo que possam ser "projetados para" uma pura descoberta, isto é, que possam tornar-se objetos. A tematização objetiva. Não é ela que "põe" pela primeira vez o ente. Ela o libera de tal maneira que ele possa ser questionado e determinado "objetivamente". O ser objetivante junto ao que é simplesmente dado dentro do mundo tem o caráter de uma atualização privilegiada. Ela difere da atualidade da circunvisão, sobretudo, por a descoberta da respectiva ciência só aguardar a descoberta do que é simplesmente dado. Essa atualização da descoberta funda-se, existenciariamente, numa decisão da presença [Dasein] na qual ela se projeta para o poder-ser na "verdade". Este projeto é possível já que o ser e estar na verdade constitui uma determinação existencial da presença [Dasein]. Não caberia aqui prosseguir com a investigação da origem da ciência a partir da existência em sentido próprio. Trata-se apenas de compreender que e como a tematização dos entes intramundanos pressupõe a constituição fundamental da presença [Dasein], isto é, o SER-NO-MUNDO. STMSCC: §69

Se, ademais, a tematização modifica e articula a compreensão de ser, então o ente a ser tematizado, a presença [Dasein], já deve, em existindo, compreender algo como ser. Compreender ser pode permanecer neutro. Manualidade e ser simplesmente dado ainda não se diferenciam e, sobretudo, ainda não são concebidos ontologicamente. Mas para que a presença [Dasein] possa lidar com um nexo instrumental, ela deve compreender, mesmo que não tematicamente, algo como conjuntura: um mundo já se lhe deve ter aberto. Este se abre junto com a existência fática da presença [Dasein], uma vez que ela existe, essencialmente, como SER-NO-MUNDO. E se, por fim, o ser da presença [Dasein] se funda na temporalidade, esta deve, pois, possibilitar o SER-NO-MUNDO e, com ele, a transcendência da presença [Dasein] que, por sua vez, inclui o ser em ocupação, seja teórico ou prático, junto aos entes intramundanos. STMSCC: §69

A compreensão de uma totalidade conjuntural inserida na circunvisão das ocupações funda-se numa compreensão preliminar das remissões de ser-para, para quê, ser para isso, em virtude de. Expôs-se anteriormente o nexo destas remissões como significância. Sua unidade constitui o que chamamos de mundo. Levanta-se, porém, a seguinte questão: Como é, ontologicamente, possível a unidade de mundo e presença [Dasein]? De que modo o mundo deve ser, para que a presença [Dasein] possa existir enquanto SER-NO-MUNDO? STMSCC: §69

O ser que, faticamente, se ocupa junto ao que está à mão, a tematização do ser simplesmente dado e a descoberta objetivante deste ente já pressupõem mundo, isto é, só são possíveis como modos de SER-NO-MUNDO. Fundando-se na unidade horizontal da temporalidade ekstática, o mundo é transcendente. Ele já deve ter-se aberto, ekstaticamente, para que, a partir dele, entes intramundanos possam vir ao encontro. Ekstaticamente, a temporalidade já se mantém nos horizontes de suas ekstases e, temporalizando-se, retorna para o ente que vem ao encontro no pre [das Da]. Com a existência fática da presença [Dasein], também já vêm ao encontro entes intramundanos. Que estes entes se descobrem junto com o próprio pre [das Da] da existência, isto não está à mercê da presença [Dasein]. Somente o que, cada vez, se descobre e se abre, em que direção se faz, até onde e como se faz é que são tarefas de sua liberdade, embora sempre nos limites de seu estar-lançado. STMSCC: §69

Ao se reconduzir o SER-NO-MUNDO para a unidade ekstática e horizontal da temporalidade, pode-se compreender a possibilidade ontológico-existencial desta constituição fundamental da presença [Dasein]. Também se esclarece que só é possível elaborar, concretamente, a estrutura de mundo e de suas possíveis derivações se a ontologia dos possíveis entes intramundanos se orientar, com segurança e suficiência, por uma ideia esclarecida de ser em geral. A possibilidade de interpretação desta ideia exige uma exposição preliminar da temporalidade da presença [Dasein], a serviço da qual se acha a presente caracterização do SER-NO-MUNDO. STMSCC: §69

Embora a expressão "temporalidade" não signifique aquilo que a fala de "espaço e tempo" entende como tempo, a espacialidade, da mesma forma que a temporalidade, também parece constituir uma determinação fundamental da presença [Dasein]. com a espacialidade da presença [Dasein], a análise existencial e temporal parece, portanto, chegar a um limite em que este ente, chamado presença [Dasein], deve ser interpelado sucessivamente como "temporal" "e também" como espacial. Será que a análise existencial e temporal da presença [Dasein] teve de parar diante do fenômeno que conhecemos como espacialidade inerente à presença [Dasein] e demonstramos pertencer ao SER-NO-MUNDO? STMSCC: §70

A presença [Dasein] arruma espaço através de direcionamento e dis-tanciamento. com base na temporalidade da presença [Dasein], como isso é existencialmente possível? A função fundadora da temporalidade com relação à espacialidade da presença [Dasein] será demonstrada apenas em suas linhas gerais, na medida em que esta demonstração é imprescindível para as discussões ulteriores a respeito do sentido ontológico do "acoplamento" de espaço e tempo. A descoberta de uma região que dá direções pertence à arrumação de espaço, própria da presença [Dasein]. Por região, indicamos, de início, o para onde a que possivelmente pertence um instrumento à mão no mundo circundante e, portanto, passível de localização. Em todo deparar-se, ter à mão, deslocar e descartar um instrumento, já se descobriu uma região. O SER-NO-MUNDO das ocupações está direcionado em se direcionando. O pertencer traz uma remissão essencial à conjuntura. Esta sempre se determina faticamente a partir do nexo conjuntural do instrumento de que se ocupa. As remissões conjunturais são apenas compreensíveis no horizonte de um mundo já aberto. Da mesma forma, somente o seu caráter de horizonte é que possibilita o horizonte específico do para onde a que pertence na região. A descoberta de uma região direcionadora funda-se num aguardar que retém ekstaticamente o possível para-lá e para-aqui. Enquanto aguardar que se direciona à região, arrumar-se é, de modo igualmente originário, aproximar (dis-tanciar) do que está à mão e do que é simplesmente dado. A partir da região previamente descoberta, a ocupação em se dis-tanciando volta ao que está próximo. Tanto a aproximação como a avaliação e medição dos intervalos, dentro do que é simplesmente dado num dis-tanciamento dentro [458] do mundo, estão fundadas numa atualização, inerente à unidade da temporalidade, dentro da qual também o direcionamento se faz possível. STMSCC: §70

Embora muitas estruturas da presença [Dasein] ainda permaneçam obscuras em sua singularidade, com o esclarecimento da temporalidade enquanto condição originária de possibilidade da cura parece, na verdade, que se conseguiu uma interpretação originaria da presença [Dasein]. Expôs-se a temporalidade no tocante ao poder-ser todo em sentido próprio da presença [Dasein]. A temporalidade do SER-NO-MUNDO das ocupações comprovou a interpretação temporal da cura. A análise do poder-ser todo em sentido próprio desvelou o nexo originário entre morte, dívida e consciência, radicado na cura. Poderá a presença [Dasein] ser compreendida ainda mais originariamente do que no projeto de sua existência própria? STMSCC: §72

As "antiguidades" conservadas no museu, os instrumentos domésticos, por exemplo, pertencem a um "tempo passado" e se encontram também simplesmente dadas no "presente". Se esse instrumento ainda não passou, como ele é histórico? Será apenas porque ele se tornou um objeto de interesse   historiográfico no cultivo das coisas antigas e regionais? Este instrumento, no entanto, só pode ser um objeto historiográfico porque, em si mesmo, já é, [471] de algum modo, histórico. A questão se repete: com que direito chamamos esse ente de histórico se ele ainda não passou? Ou será que estas "coisas" possuem "em si" "algo passado", não obstante serem ainda hoje simplesmente dadas? Será que estas coisas simplesmente dadas são ainda o que foram? Manifestamente, as "coisas" se modificaram. "com o correr do tempo", o instrumento tornou-se frágil e deteriorado. Mas o caráter especificamente passado, que faz dele algo histórico, não reside nesta contingência que continua se dando no museu. O que então passou no instrumento? O que foram as "coisas" que hoje não são mais? Elas ainda são o instrumento de um uso determinado – embora fora de uso. Mas se hoje elas ainda estivessem em uso – como muitos móveis herdados estão – elas já não seriam históricas? Em uso ou fora de uso, elas não são mais o que foram. O que então "passou"? Nada mais do que o mundo, no seio do qual, pertencendo a um nexo instrumental, vinham ao encontro da mão e eram utilizadas por uma presença [Dasein] no mundo de suas ocupações. O mundo não é mais. O intramundano daquele mundo já não é mais simplesmente dado. Como instrumento de um mundo, o que agora ainda é simplesmente dado pertence ao "passado". O que significa não-mais-ser do mundo? Mundo é, somente no modo da presença [Dasein] existente que, faticamente, é enquanto SER-NO-MUNDO. STMSCC: §73

Lançada, a presença [Dasein] está, sem dúvida, entregue à responsabilidade de si mesma e de seu poder-ser, mas como SER-NO-MUNDO. Lançada, ela está referida a um "mundo" e existe faticamente com os outros. Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, o si-mesmo está perdido no impessoal. Ele se compreende a partir das possibilidades de existência que "estão em curso" na interpretação pública da presença [Dasein], sempre hodierna e "mediana". Devido à ambiguidade, elas são, em sua maioria, irreconhecíveis embora conhecidas. A compreensão existenciária própria escapa tão pouco da interpretação legada que, no decisivo, ela sempre retira a possibilidade [475] escolhida dessa interpretação, contra ela mas sempre a seu favor. STMSCC: §74

A presença [Dasein] só pode, portanto, sofrer golpes do destino porque, no fundo de seu ser, ela é destino, entendido nesse sentido. Existindo na decisão que para si se transmite num destino, a presença [Dasein], enquanto SER-NO-MUNDO, é e está aberta para "vir ao encontro" de circunstâncias "favoráveis" e para o pavor dos acasos. Não é pelo choque de circunstâncias e dados que emerge o destino. Ainda mais do que quem escolheu, também o indeciso é enredado pelas circunstâncias e dados, embora possa não "ter" um destino. STMSCC: §74

Se, antecipando a morte, a presença [Dasein] pode tornar-se potente em si mesma, então, na liberdade para a morte, a presença [Dasein] se compreende na potência maior de sua liberdade finita. Nesta, que só "é" no ter-escolhido da escolha, a presença [Dasein] assume a impotência de estar entregue a si mesma, tornando-se capaz de ver, com clareza, os acasos da situação que se abriu. Se, porém, a presença [Dasein], marcada [476] por um destino, só existe essencialmente como SER-NO-MUNDO no ser-com os outros, o seu acontecer é um acontecer-com, determinando-se como envio comum. Com este termo, designamos o acontecer da comunidade, do povo. O envio comum não se compõe de destinos singulares da mesma forma que a convivência não pode ser concebida como a ocorrência conjunta de vários sujeitos. Na convivência em um mesmo mundo e na decisão por determinadas possibilidades, os destinos já estão previamente orientados. É somente na participação e na luta que se libera o poder do envio comum. O envio comum dos destinos da presença [Dasein] em e com a sua "geração" constitui o acontecer pleno   e próprio da presença [Dasein]. STMSCC: §74

Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] se compreende a partir do que vem ao encontro no mundo circundante e daquilo de que se ocupa numa circunvisão. Este compreender não é um mero registro de si, que apenas acompanharia todos os comportamentos da presença [Dasein]. Compreender significa projetar-se em cada possibilidade de SER-NO-MUNDO, isto é, existir como essa possibilidade. Assim, compreender enquanto compreensibilidade também constitui a existência imprópria do impessoal. Numa convivência pública, o que vem ao encontro da ocupação cotidiana não é apenas o instrumento e a obra, mas também aquilo que com eles se "dá": os "negócios", empreendimentos, incidentes, acidentes. O "mundo" é, ao mesmo tempo, solo e palco, pertencendo, como tal, à ação e à transformação cotidianas. Na convivência pública, os outros vêm ao encontro nesses empreendimentos em que o "impessoalmente-si-mesmo" "também navega". O impessoal sempre conhece, discute, favorece, combate, mantém e esquece, primordialmente, na perspectiva daquilo que se empreende e daí "emerge". Sempre calculamos, de imediato, o prosseguimento, a interrupção, a inversão e o "resultado" de cada presença [Dasein] singular a partir do andamento, do estado, da mudança e da disponibilidade daquilo de que se ocupa. Por mais trivial que possa ser a referência à compreensão de presença [Dasein], no sentido de compreensibilidade cotidiana, do ponto de vista ontológico, ela não é, de forma alguma, transparente. Mas por que, então, não se pode determinar o "nexo" da presença [Dasein] a partir das ocupações e das "vivências"? Instrumento, obra e tudo o mais em que a presença [Dasein] se detém não pertencem à "história"? Será então o acontecer da história apenas o transcurso isolado de "fluxos vivenciais" em sujeitos singulares? STMSCC: §75

De fato, a história não é o contexto dos movimentos de alteração do objeto nem a sequência de vivências soltas do "sujeito". Será que o acontecer da história diz respeito ao "encadeamento" de sujeito e objeto? Se o acontecer já remete à relação sujeito-objeto então ainda é preciso questionar o modo de ser deste encadeamento como tal, caso este encadeamento seja o que, no fundo, "acontece". A tese da historicidade da presença [Dasein] não afirma que é [480] histórico o sujeito sem mundo mas sim o ente que existe como SER-NO-MUNDO. O acontecer da história é o acontecer de ser-nomundo. Em sua essência, historicidade da presença [Dasein] é historicidade de mundo que, baseada na temporalidade ekstática e horizontal, pertence à sua temporalização. Como a presença [Dasein] existe faticamente, também vem ao encontro o que se descobriu dentro do mundo. Com a existência do SER-NO-MUNDO histórico, tanto o manual quanto o ser simplesmente dado sempre já estão inseridos na história do mundo. Instrumento e obra, os livros, por exemplo, têm seu "destino", construções e instituições têm sua história. Mas também a natureza é histórica. Sem dúvida ela não o é quando falamos de "história da natureza" e sim como paisagem, região de exploração e ocupação, como campo de batalha e lugar de culto. Como tal, este ente intramundano é histórico e sua história não significa algo "exterior" que simplesmente acompanha a história "interior" da "alma". Chamamos este ente de pertencente à história do mundo. Deve-se, no entanto, atentar para o duplo significado da expressão "história do mundo", aqui entendida ontologicamente. Significa, por um lado, o acontecer do mundo, em sua unidade existente e essencial com a presença [Dasein]. Mas, na medida em que, junto com o mundo faticamente existente, entes intramundanos são sempre descobertos, também significa o "acontecer" intramundano do manual e do ser simplesmente dado. Com efeito, o mundo só é histórico enquanto mundo dos entes intramundanos. O que "acontece" com o instrumento e a obra como tais possui um caráter próprio de movimentação que permanece, até agora, inteiramente obscuro. Um anel, por exemplo, ao ser "presenteado" e "usado" não sofre, nesse ser, apenas mudanças de lugar. A movimentação do acontecer em que algo "acontece com ele" não se deixa apreender a partir do movimento, entendido como mudança de lugar. Isso vale para todos os "processos" e acontecimentos pertencentes à história do mundo e, de certo modo, também para as "catástrofes naturais". Mesmo desconsiderando que ultrapassaria os limites do tema, não podemos aprofundar aqui o problema da estrutura ontológica do acontecer [481] próprio da história do mundo. Pois o propósito dessa exposição é conduzir ao enigma ontológico da movimentação do acontecer em geral. STMSCC: §75

Trata-se apenas de delimitar o âmbito de fenômenos que, do ponto de vista ontológico, está necessariamente implicado ao se falar de historicidade da presença [Dasein]. Em razão da transcendência do mundo, que se funda no tempo, uma história do mundo já está sempre "objetivamente" presente no acontecer do SER-NO-MUNDO , existente, sem que seja apreendida historiograficamente. E porque a presença [Dasein] fática se afunda na decadência das ocupações, ela compreende, de imediato, sua história como história do mundo. E, ademais, porque a compreensão vulgar do ser compreende indiferenciadamente o "ser" como ser simplesmente dado, ela experimenta e interpreta o ser da história do mundo no sentido do que, sendo simplesmente dado, vem, torna-se vigente e desaparece. STMSCC: §75

A ideia da historiografia como ciência reside em assumir como tarefa própria a abertura do que é histórico. Toda ciência se constitui, primariamente, pela tematização. Aquilo que é conhecido pré-cientificamente como SER-NO-MUNDO que se abriu, projeta-se em seu ser específico. Com esse projeto, delimita-se a região de um ente, as suas vias de acesso adquirem "direção" metodológica e a estrutura de conceitualização da interpretação ganha um prelineamento. Postergando a questão da possibilidade de uma "história do presente", atribuímos à historiografia a tarefa de abertura do "passado". Nesse caso, a tematização historiográfica da história só é possível depois de se ter aberto o "passado". Deixando-se inteiramente de lado se estão disponíveis as fontes suficientes para uma apresentação historiográfica do passado, o caminho para o passado deve estar aberto, no sentido de retorno historiográfico. Não é, contudo, evidente se isso acontece e como isso é possível. STMSCC: §76

Como o ser da presença [Dasein] é histórico, ou seja, com base na temporalidade ekstática e horizontal, já está aberto em seu vigor de ter sido, tem caminho livre a tematização do "passado" em geral, que pode cumprir-se na existência. E porque a presença [Dasein] e somente ela é originariamente histórica, aquilo que a tematização historiográfica apresenta como objeto possível de pesquisa deve ter o modo de ser da presença [Dasein] que vigora por ter sido presença [Dasein]. Com a presença [Dasein] fática, na condição de SER-NO-MUNDO, também já se dá uma história do mundo. Se a presença [Dasein] não mais for presente, então o mundo ainda vigora por ter sido presença [Dasein]. Isso não é negado quando um manual intramundano de uma época anterior ainda não passou e pode ser encontrado "historiograficamente", no presente, como algo de um mundo que vigora por ter sido presença [Dasein]. STMSCC: §76

A presença [Dasein] existe como um ente em que está em jogo seu próprio ser. Em sua essência precedendo a si mesma, ela já se projetou para o seu poder-ser, antes de qualquer consideração posterior de si mesma. É como lançada que ela se desvela no projeto. Lançada, ela se entrega ao "mundo" e decai, ocupando-se dele. Enquanto [500] cura, ou seja, existindo na unidade do projeto já lançado na decadência, ela é o ente que se abriu como pre [das Da]. Sendo-com os outros, ela se mantém numa interpretação mediana, que se articula na fala e se pronuncia na linguagem. O SER-NO-MUNDO sempre já se pronunciou e, enquanto ser junto aos entes que vêm ao encontro dentro do mundo, ele se anuncia, constantemente, no dizer e na discussão daquilo de que se ocupa. A ocupação, comumente compreendida a partir de uma circunvisão, funda-se na temporalidade e no modo de uma atualização que aguarda e retém. Nas ocupações em que desconta, planeja, providencia e previne, sempre já se diz, de forma perceptível ou não: "então"isso deve acontecer, "antes"disso se concluir, "agora" vai se recuperar o que "outrora" malogrou e fracassou. STMSCC: §79

Que a estrutura da possibilidade de datação pertence, em sua essência, ao que se interpretou como o "agora", o "então" e o "outrora", isso se torna a comprovação mais elementar da proveniência do que foi interpretado a partir da temporalidade que interpreta a si mesma. Dizendo "agora", sempre já compreendemos um "em que" isso ou aquilo…, embora sem dizê-lo explicitamente. Por quê? Porque o "agora" interpreta uma atualização dos entes. No "agora em que…", reside o caráter ekstático da atualidade. A possibilidade de datação do "agora", do "então" e do "outrora" reflete a constituição ekstática da temporalidade, sendo, também, por isso essencial para o próprio tempo pronunciado. A estrutura da possibilidade de datação do "agora", do "então" e do "outrora" é a prova de que estes, brotando da temporalidade, são eles mesmos tempo. O pronunciamento que interpreta o "agora", o "então" e o "outrora" é a indicação temporal mais originária [NH: a mais imediata]. E porque, na unidade a ekstática da temporalidade, compreendida junto com a possibilidade de datação, embora não tematizada nem reconhecida como tal, a presença [Dasein] sempre já se abriu como SER-NO-MUNDO, com isso ela descobre entes intramundanos. Por isso o tempo interpretado já possui sempre uma datação a partir daquele ente que vem ao encontro na abertura do pre [das Da]: agora em que a porta bate; agora em que o livro me está faltando, etc. STMSCC: §79

Aberta, a presença [Dasein] existe faticamente no modo de ser-com os outros. Ela se mantém numa compreensibilidade pública e mediana. O "agora em que", o "então, quando" interpretados e pronunciados na convivência cotidiana são, em princípio, compreendidos, embora só sejam datados com precisão dentro de certos limites. Na convivência "mais próxima", vários "agora" podem, ser ditos "conjuntamente" e cada um pode datar de forma diferente o "agora" que disse: agora em que isso ou aquilo se dá. O "agora" pronunciado é dito no teor público da convivência no SER-NO-MUNDO. Em razão de seu SER-NO-MUNDO ekstático, o tempo interpretado e pronunciado de cada presença [Dasein] como tal já é sempre público. Como a ocupação cotidiana se compreende a partir do "mundo" das ocupações, ela conhece o "tempo" que ela toma não como o seu. Nas ocupações, ela aproveita o tempo que "dá a si mesma" e com o qual impessoalmente se conta. O público do "tempo" é, porém, ainda mais profundo quanto mais a presença [Dasein] fática se ocupa expressamente do tempo, conferindo-lhe uma contagem. STMSCC: §79

O que se pretendia era compreender, provisoriamente, como a presença [Dasein], fundada na temporalidade, se ocupa do tempo em sua existência e como este se torna público para o SER-NO-MUNDO na interpretação das ocupações. Mas com isso ficou inteiramente indeterminado o sentido em que o tempo, publicamente anunciado, "é", e se dele se pode dizer que está sendo. Antes de decidir se o tempo público é "apenas subjetivo", se ele é "objetivamente real" ou nenhum dos dois, deve-se determinar, de forma mais precisa, o caráter fenomenal do tempo público. STMSCC: §80

O ser da presença [Dasein] é a cura. Esse ente existe lançado na decadência. Entregue ao "mundo" descoberto em seu pre [das Da] e dependente de suas ocupações, a presença [Dasein] aguarda seu poder-SER-NO-MUNDO. E isso de maneira a "contar" com e por meio daquilo com que ela estabelece uma conjuntura privilegiada em virtude desse poder-ser. O SER-NO-MUNDO cotidiano da circunvisão precisa de possibilidade de visão, ou seja, de claridade para poder lidar, numa ocupação, com o que está à mão em meio ao que é simplesmente dado. Com a abertura fática de seu mundo, a natureza se descobre para a presença [Dasein]. Em seu estar-lançado, ela se entrega à mudança de dia e noite. Com sua claridade, o dia propicia a visão possível, e a noite a retira. STMSCC: §80

A temporalidade do SER-NO-MUNDO fático possibilita, originariamente, a abertura do espaço, e a presença [Dasein] espacial, partindo de um lá já descoberto, sempre está referida a um aqui, dotado do caráter de presença [Dasein]. É por isso que, em sua possibilidade de datação, o tempo ocupado na temporalidade da presença [Dasein] está sempre ligado a um lugar da presença [Dasein]. Não é o tempo que se acopla a um lugar. A temporalidade é que constitui a condição de possibilidade para que a datação possa ligar-se ao lugar do espaço, de tal maneira que, enquanto medida, esse lugar seja obrigatório para todo mundo. Não é o tempo que se acopla ao espaço, mas o "espaço", que se presume como o que acopla, só vem ao encontro com base na temporalidade das ocupações do tempo. De acordo com o fundamento do relógio e da contagem de tempo na temporalidade da presença [Dasein], a qual constitui esse ente como histórico, pode-se mostrar em que medida o próprio uso do relógio é, ontologicamente, histórico, e que todo relógio como tal "tem uma história". STMSCC: §80

Onde, porém, se funda esse nivelamento do tempo do mundo e encobrimento da temporalidade? No próprio ser da presença [Dasein] que, à guisa de preparação, interpretamos como cura. Lançada e decadente, a presença [Dasein] está, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, perdida nas ocupações. Nessa perdição anuncia-se, contudo, a fuga encobridora da presença [Dasein] de sua existência própria, já caracterizada como decisão antecipadora. Na fuga das ocupações reside a fuga da morte, ou seja, o desviar o olhar do fim do SER-NO-MUNDO. Esse desviar o olhar de… é, em si mesmo, um modo de ser para o fim que, ekstaticamente, é porvir. Enquanto um desviar o olhar da finitude, a temporalidade imprópria da presença [Dasein] decadente e cotidiana deve desconhecer o porvir próprio e, assim, também a temporalidade em geral. É justamente quando o impessoal dirige a compreensão vulgar da presença [Dasein] que se consolida a "representação" da "infinitude" do tempo público, que se esquece de si. O impessoal nunca morre porque, sendo a morte sempre minha e apenas compreendida existenciariamente em sentido próprio na decisão antecipadora, o impessoal nunca pode morrer. Nunca morrendo e compreendendo equivocadamente o ser-para-o-fim, o impessoal dá uma interpretação característica à fuga da morte. Até o fim, ele "sempre ainda tem tempo". Aqui se anuncia um ter tempo, no sentido de poder-perder: "agora ainda isso, então [521] isso, e só mais isso e então…" O que, aqui, se compreende não é a finitude do tempo. Ao contrário, a ocupação empenha-se em agarrar o máximo possível do tempo que ainda vem e "continua passando". Publicamente, o tempo é algo que cada um sempre toma e pode tomar. A sequência nivelada dos agora permanece inteiramente desconhecida, no que respeita à sua proveniência da temporalidade da presença [Dasein] singular, na convivência cotidiana. Como isso poderia afetar "o tempo", ao menos em seu curso, se já não existe um homem simplesmente dado "no tempo"? O tempo continua a passar da mesma forma que ele já "era" quando um homem "entrou para a vida". Impessoalmente, apenas se conhece o tempo público que nivela e que pertence a todo mundo, isto é, a ninguém. STMSCC: §81

Na compreensão de ser, que, enquanto compreender, pertence à existência da presença [Dasein], abriu-se algo como "ser". Embora não concebida, a abertura preliminar de ser possibilita que, como SER-NO-MUNDO existente, a presença [Dasein] possa relacionar-se com o ente que vem ao encontro dentro do mundo e também consigo mesma, enquanto existente. Mas como é simplesmente possível na presença [Dasein] a compreensão do ser em sua abertura? Pode-se responder a esta questão, remontando-se à constituição ontológica originária da presença [Dasein] que compreende ser? A constituição ontológico-existencial da totalidade da presença [Dasein] funda-se na temporalidade. Desta forma, é um modo originário de temporalização da própria temporalidade ekstática que deve tornar possível o projeto ekstático do ser em geral. Como se há de interpretar esse modo de temporalização da temporalidade? Haverá um caminho que conduza do tempo originário para o sentido do ser? Será que o próprio tempo se revela como horizonte do ser? [535] STMSCC: §83