Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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à mão

quarta-feira 13 de dezembro de 2023

zuhanden  , Zuhandenheit, Zuhandensein

O que está À MÃO, o manual, nem se apreende teoricamente nem se torna diretamente tema da circunvisão. O que está imediatamente À MÃO caracteriza-se por recolher-se na sua manualidade para, justamente assim, ficar À MÃO. A lida cotidiana não se detém diretamente nos utensílios em si mesmos. Aquilo com que primeiro se ocupa e, consequentemente, o que primeiro está À MÃO é a obra a ser produzida. É a obra que sustenta a totalidade das referências na qual o instrumento vem ao encontro. STMSC: §15

Entretanto, a obra produzida não apenas pode ser empregada para… A própria produção já é sempre o emprego de algo em algo. Na obra também se encontra a referência a “materiais”. Ela depende de couro, fio, prego, etc. O couro, por seu turno, é produzido a partir de peles extraídas de animais criados por outros. Animais ocorrem no mundo também independentemente de criação e, mesmo na criação, de certo modo eles produzem a si mesmos. No mundo circundante, portanto, ocorrem também entes que, em si mesmos, não necessitam de produção, estando sempre À MÃO. Martelo, alicate, prego, em si mesmos, fazem referência ao aço, ferro, bronze, pedra, madeira de que são feitos. O uso também descobre no instrumento usado a “natureza”, natureza à luz dos produtos naturais (matérias-primas). STMSC: §15

Natureza aqui, porém, não deve ser compreendida como algo simplesmente dado e nem tampouco como poder da natureza. A mata é reserva florestal, a montanha é pedreira, o rio é represa, o vento é vento “nas velas”. Com a descoberta do “mundo circundante”, a “natureza” assim descoberta vem ao encontro. Pode-se prescindir de seu modo de ser À MÃO e determiná-la e descobri-la apenas em seu modo de ser simplesmente dado. Nesse modo de descobrir, porém, a natureza se vela enquanto aquilo que “tece e acontece”, que se precipita sobre nós, que nos fascina com sua paisagem. As plantas do botânico não são flores no campo, o “jorrar” de um rio, constatado geograficamente, não é “fonte no solo”. STMSC: §15

A obra produzida não se refere apenas às possibilidades de emprego para que (Wozu  ) serve, nem à matéria de que (Woraus) é feita. Em situações meramente artesanais, a obra traz também uma referência ao portador e usuário. A obra é talhada sob medida, ele “é” na fabricação da obra. Essa referência constitutiva não falta de modo algum na produção em série; apenas aqui é indeterminada, remetendo ao arbitrário, ao termo médio. Com a obra, portanto, não se dá ao encontro apenas um ente manual, mas também entes que possuem o modo de ser do homem, para os quais o produto se acha À MÃO na ocupação. Junto com isso, vem ao encontro o mundo em que vivem os portadores e usuários, mundo que é, ao mesmo tempo, o nosso. A obra no horizonte de sua ocupação não é manuseada somente no mundo doméstico da oficina, mas também no mundo público. Com ele, descobre-se a natureza do mundo circundante, que então se torna acessível a qualquer um. Nos caminhos, ruas, pontes e edifícios, a ocupação descobre a natureza em determinada direção. Uma plataforma coberta leva em conta as intempéries; as instalações de iluminação pública levam em conta a escuridão, ou seja, a mudança específica de presença [Dasein  ] e ausência da luz do dia, a “posição do sol”. Nos relógios leva-se sempre em conta determinada constelação do sistema cósmico. Quando olhamos um relógio, fazemos um uso implícito da “posição do sol”, segundo a qual se faz o ajuste astronômico da medição oficial do tempo. No uso do instrumento relógio, manuseado discreta e diretamente, a natureza do mundo circundante também está À MÃO. Pertence à essência da função de descoberta de cada empenho ocupacional no mundo imediato das obras a possibilidade de descobrir, segundo cada modo de empenho, o ente intramundano evocado na obra. Isso significa: descobri-lo nas referências constitutivas da obra, em vários graus de explicitação e em diferentes envergaduras de aprofundamento da circunvisão. STMSC: §15

O modo de ser desse ente é a manualidade. Não se pode compreendê-la, porém, como mero caráter de apreensão CH: mas na verdade somente caráter de encontro, como se tais “aspectos” fossem impostos numa fala ao “ente” que de imediato vem ao encontro, ou como se uma matéria do mundo, já simplesmente dada em si, fosse desse modo “colorida subjetivamente”. Uma interpretação assim orientada desconsidera que, para tanto, o ente deveria ser previamente compreendido como algo pura e simplesmente dado e que, em decorrência, um modo de lidar com o “mundo” que o descobre e dele se apropria passa a ter primado e autoridade. Isso já contradiz o sentido ontológico do conhecimento que demonstramos como modo fundado do ser-no-mundo. Esse ser-no-mundo só chega a explicitar o que é simplesmente dado, através do que está À MÃO na ocupação. Manualidade é a determinação categorial dos entes tais como são “em si”. Todavia, a manualidade apenas se dá com base em algo simplesmente dado. Admitindo-se essa tese, seguir-se-ia, então, que a manualidade está fundada ontologicamente no ser simplesmente dado? STMSC: §15

À cotidianidade de ser-no-mundo pertencem modos de ocupação que permitem o encontro com o ente de que se ocupa, de tal maneira que apareça a determinação mundana dos entes intramundanos. Na ocupação, o ente que está mais imediatamente À MÃO pode ser encontrado como algo que não é passível de ser empregado ou como algo que não se acha em condições de cumprir seu emprego específico. O utensílio se apresenta danificado, o material inadequado. Em todo caso, um instrumento está aqui À MÃO. Mas o que a impossibilidade de emprego descobre não é a constatação visual de propriedades e sim a circunvisão da lida no uso. Nessa descoberta da impossibilidade de emprego, o instrumento surpreende. A surpresa proporciona o instrumento num determinado modo de não estar À MÃO. Entretanto, aí se acha o seguinte: o que não pode ser usado está simplesmente aí – mostra-se como coisa-instrumento, dotada de tal e tal configuração, e que, em sua manualidade, é sempre simplesmente dada nessa configuração. O puro ser simplesmente dado anuncia-se no instrumento de modo a, contudo, recolher-se novamente à manualidade do que se acha em ocupação, ou seja, do que se encontra na possibilidade de se pôr de novo em condições. Esse ser simplesmente dado do que não pode ser usado não carece, todavia inteiramente de manualidade. O instrumento assim simplesmente dado ainda não é uma coisa que aparece em algum lugar. A danificação do instrumento também ainda não é sua transformação em simples coisa ou uma mera troca de características de algo simplesmente dado. STMSC: §16

O modo de lidar da ocupação, no entanto, não se depara apenas com o que não pode ser empregado em meio ao que já está À MÃO. Depara-se com o que falta, com o que não apenas não pode ser “manuseado”, mas com o que não está, de modo algum, “À MÃO”. Esse tipo de falta, como encontro de algo que não está À MÃO, põe de novo a descoberto o manual, embora num certo ser simplesmente dado. Ao constatar o que não está À MÃO, o manual assume o modo da importunidade. Quanto maior for a falta do necessário, quanto mais propriamente ele se der ao encontro não estando À MÃO, tanto mais importuno torna-se o manual, e isso de tal maneira que parece perder o caráter de manualidade. Ele se desvela como algo simplesmente dado que não pode mover-se sem o que falta. Ficar sem saber o que fazer é um modo deficiente de ocupação que descobre o ser simplesmente dado de um manual. STMSC: §16

Na lida com o mundo na ocupação, ainda se pode encontrar um manual não apenas no sentido do que não pode ser empregado ou do que simplesmente está faltando, mas também, enquanto não manual. O que não falta e não é passível de emprego, como o que “obstrui o caminho” para a ocupação. Aquilo para que a ocupação não pode voltar-se, aquilo para que ela não tem “tempo”, é um não manual, no modo do que não pertence ou não se finalizou. Esse não estar À MÃO perturba e faz aparecer a impertinência do que, numa primeira aproximação e antes de tudo, deve ocupar-se. Com esta impertinência, anuncia-se de maneira nova o ser simplesmente dado do manual como o ser daquilo que se apresenta, exigindo ainda a sua finalização. STMSC: §16

Na surpresa, importunidade e impertinência, o manual perde, de certo modo, a sua manualidade. No modo de lidar com o que está À MÃO, porém, sempre se compreende a manualidade, se bem que de maneira não temática. Ela não desaparece, mas se despede, por assim dizer, na surpresa do que não pode ser empregado. A manualidade se mostra mais uma vez, mostrando também a determinação mundana do manual. STMSC: §16

Da mesma forma, a falta de um manual, cuja disponibilidade cotidiana é tão evidente que dele nem sequer tomamos conhecimento, constitui uma quebra dos nexos referenciais descobertos na circunvisão. A circunvisão depara-se com o vazio e só então é que vê para que (wofur) e com que (womit) estava À MÃO aquilo que faltava. Novamente, anuncia-se o mundo circundante. O que assim aparece não é em si mesmo um manual entre outros e muito menos algo simplesmente dado que fundasse, de alguma maneira, o instrumento À MÃO. Ele está “aí”, antes de toda constatação e consideração. Embora já sempre aberto à circunvisão, ele mesmo é inacessível à circunvisão por esta estar sempre voltada para o ente. “Abrir” e “abertura” são termos técnicos que serão empregados, a seguir, no sentido de “des-fechar”. “Abrir” jamais significa, portanto, algo como “concluir através de mediações”. STMSC: §16

As expressões privativas como não-surpresa, não importuno, não impertinente indicam um caráter fenomenal positivo do ser que está imediatamente À MÃO. Esse “não” indica o caráter de manter-se em si do manual. É o que temos em mente com a expressão ser-em-si e que, de maneira característica, atribuímos primeiramente ao ser simplesmente dado, passível de constatação temática. Uma orientação exclusiva ou primordial pelo que é simplesmente dado não pode esclarecer ontologicamente o “em-si”. Caso se recorra com razão fenomenal e ênfase ôntica ao em-si do ser, então faz-se necessária uma interpretação. Esse recurso ôntico, no entanto, não preenche a exigência pretensamente dada de um enunciado ontológico. A análise empreendida até agora mostra claramente que só se pode apreender ontologicamente o ser-em-si dos entes intramundanos com base no fenômeno do mundo. STMSC: §16

Na interpretação provisória da estrutura de ser do manual (dos “instrumentos”), tornou-se visível o fenômeno da referência, se bem que de maneira tão esquemática, que é preciso acentuar a necessidade de se descobrir o fenômeno apenas indicado em sua proveniência ontológica. Tornou-se também claro que referência e totalidade referencial são, em algum sentido, constitutivas da própria mundanidade. Até o presente momento, vimos o mundo evidenciar-se somente para e em determinados modos da ocupação no mundo circundante do que está À MÃO, e este com sua manualidade. Quanto mais aprofundarmos, portanto, a compreensão de ser deste ente intramundano, tanto mais ampla e segura tornar-se-á a base fenomenal para a liberação do fenômeno do mundo. STMSC: §17

Escolhemos como exemplo de sinal aquele que, numa análise posterior, desempenhará a função de exemplo numa outra perspectiva. Recentemente, instalou-se nos veículos uma seta vermelha e móvel, cujo posicionamento mostra, cada vez, por exemplo, num cruzamento, qual o caminho que o carro vai seguir. O posicionamento da seta é acionado pelo motorista. Esse sinal é um instrumento que está À MÃO, não apenas na ocupação (dirigir) do motorista. Também os que não estão no veículo e justamente eles fazem uso desse instrumento, esquivando-se para o lado indicado ou ficando parados. Esse sinal está À MÃO dentro do mundo na totalidade do conjunto instrumental dos meios de transporte e regras de trânsito. Enquanto instrumento, esse instrumento-sinal constitui-se por referência. Possui o caráter de “ser-para” (Um-zu), possui sua serventia definida, ele é para mostrar. Essa ação de mostrar do sinal pode ser apreendida como “referência”. Deve-se, no entanto, observar: essa “referência” enquanto sinal não é a estrutura ontológica do sinal enquanto instrumento. STMSC: §17

Enquanto ação de mostrar, a “referência” funda-se, ao contrário, na estrutura ontológica do instrumento, isto é, na serventia. A serventia ainda não faz de um ente um sinal. Também o instrumento “martelo” se constitui por uma serventia, embora com isso o martelo não seja um sinal. A “referência” mostrar é a concreção ôntica do para quê (Wozu) de uma serventia, que determina um instrumento específico. A referência “serventia para” é, em contrapartida, uma determinação ontológica categorial do instrumento como instrumento. Que o para quê (Wozu) se concretize na ação de mostrar, isto é apenas contingente para a constituição do instrumento como tal. A diferença entre referência enquanto serventia e referência enquanto sinal torna-se visível, a grosso modo, no exemplo do sinal. Ambas se identificam tão pouco que é somente em sua unidade que possibilitam a concreção de uma determinada espécie de instrumento. Quanto mais segura for, em princípio, a diferença entre a ação de mostrar e a referência constitutiva do instrumento, tanto mais inquestionável será a remissão própria e mesmo privilegiada que o sinal tem com o modo de ser da totalidade instrumental, À MÃO dentro do mundo, e com a sua determinação mundana. No modo de lidar da ocupação, o instrumento-sinal tem um emprego preferencial. Do ponto de vista ontológico, porém, a simples constatação desse fato não é suficiente. Deve-se esclarecer ainda o fundamento e o sentido dessa preferência. STMSC: §17

O que diz a ação de mostrar de um sinal? A resposta só é possível, determinando-se o modo de lidar adequado com o instrumento-sinal. Para isso, deve ser também possível apreender, de modo genuíno, a sua manualidade. Qual a maneira adequada de tratar com sinais? Seguindo a orientação do exemplo mencionado (seta), deve-se dizer: o comportamento correspondente (ser) aos sinais encontrados é o “desvio” ou o “ficar parado” diante do veículo que se aproxima com uma seta acionada. O desviar-se, enquanto tomada de uma direção, pertence essencialmente ao ser-no-mundo da presença [Dasein]. Ela sempre está, de algum modo, a caminho e numa direção; ficar e parar são apenas casos limites desse “estar a caminho” direcionado. O sinal se dirige a um ser-no-mundo especificamente espacial. Propriamente, não “apreendemos” o sinal quando somente o olhamos e constatamos ser ele uma coisa que mostra. Mesmo quando seguimos com os olhos a direção mostrada pela seta e vemos algo simplesmente dado no sentido em que aponta a seta, também não nos encontramos, em sentido próprio, com o sinal. Ele se volta para a circunvisão do modo de lidar da ocupação e isso de tal maneira que a circunvisão, seguindo-lhe a indicação, dá uma “visão panorâmica” explícita de cada envergadura do mundo circundante. A visão panorâmica da circunvisão não apreende o que está À MÃO; ao contrário, ela recebe uma orientação no mundo circundante. Uma outra possibilidade da experiência do instrumento consiste na seta se apresentar como um instrumento pertencente ao veículo; com isso, não é preciso que se tenha descoberto o caráter instrumental específico da seta, podendo permanecer inteiramente indeterminado o que e como ele mostra e, apesar disso, o que assim vem ao encontro não é uma simples coisa. Ao contrário da constatação imediata de uma multiplicidade indeterminada de instrumentos, a experiência de uma coisa exige a sua determinação própria. STMSC: §17

Sinais dessa espécie possibilitam o encontro do que está À MÃO, ou melhor, tornam o seu conjunto tão acessível que o modo de lidar da ocupação propicia e assegura para si uma orientação. Sinal não é uma coisa que se ache numa relação caracterizada pelo mostrar, mas um instrumento que, explicitamente, eleva um todo instrumental à circunvisão, de modo que a determinação mundana do manual se anuncie conjuntamente. No anúncio e prenúncio, “mostra-se” o “que vem”, embora não no sentido do que apenas há de ocorrer, do que se acrescenta ao que já é simplesmente dado; o “que vem” é algo para o que estávamos preparados ou “devemos nos preparar”, quando ocupados com outra coisa. No vestígio, o que se deu e aconteceu torna-se acessível à circunvisão. A marca mostra “onde” se está. Os sinais mostram, primordialmente, “em que” se vive junto a que a ocupação se detém, que conjuntura está em causa. STMSC: §17

A singularidade do caráter instrumental do sinal evidencia-se em sua “instauração de sinal”. Cria-se o sinal numa previsão cuidadosa própria da circunvisão e a partir dela. É uma previsão cuidadosa que necessita da possibilidade manual de, a cada passo, fazer anunciar o mundo circundante para a circunvisão, mediante o que está À MÃO. O caráter acima descrito de não sobressair e nem deter-se em si mesmo pertence ao ser do que está mais imediatamente À MÃO dentro do mundo. Por isso o modo de lidar da circunvisão no mundo circundante necessita de um instrumento À MÃO que assuma, em seu próprio caráter instrumental, a “obra” de causar surpresa de um manual. Por isso a produção desses instrumentos (dos sinais) deve visar à sua surpresa. Com isso, todavia, eles não se tornam seres simples e arbitrariamente dados. Ao contrário, os sinais são “instalados” de determinado modo, na intenção de um fácil acesso. STMSC: §17

A instauração de sinais não precisa ser necessariamente produção de um instrumento que antes não se achava absolutamente À MÃO. Os sinais também surgem ao se tomar como sinal algo que já está À MÃO. Nesse modo, a instauração de sinais revela um sentido ainda mais originário. A ação de mostrar não dá origem apenas a uma disponibilidade orientada na circunvisão de um conjunto instrumental À MÃO e do mundo circundante em geral, mas ela pode até mesmo principiar um movimento de descoberta. Aquilo que é tomado como sinal só se torna acessível através de sua manualidade. Se, por exemplo, no cultivo do campo, o vento sudeste “vale” como sinal de chuva, então essa “validade” ou “valor atribuído” a esse ente não é um acréscimo a algo já simplesmente dado em si mesmo como a corrente de ar ou uma determinada direção geográfica. Enquanto algo que somente ocorre, mesmo que possa ser meteorologicamente acessível, o vento sudeste nunca é simplesmente dado antes de qualquer coisa para então adquirir a função de um prenúncio. É a circunvisão própria ao cultivo do campo que, levando-o em conta, descobre justamente aí o vento sudeste em seu ser. STMSC: §17

No modo de lidar cotidiano, a manualidade do sinal e a sua surpresa, que pode ser produzida segundo várias intenções e modos, documentam não apenas a não-surpresa constitutiva do que mais imediatamente está À MÃO. Também indicam que é o próprio sinal que retira a sua surpresa da não-surpresa do todo instrumental, À MÃO na cotidianidade de modo “evidente” como, por exemplo, o costume de se dar um “nó no lenço” como marca de lembrança. O que ele mostra é que há sempre algo com que se ocupar na circunvisão da cotidianidade. Esse sinal pode mostrar muitas coisas e das mais diversas espécies. A envergadura do que se pode mostrar nesse sinal corresponde à limitação do uso e da compreensão. Na maior parte das vezes, enquanto sinal, ele não apenas está À MÃO somente para o seu “inventor” como, mesmo para ele, pode tornar-se inacessível, de tal maneira que um segundo sinal se faz necessário para o emprego possível do primeiro pela circunvisão. Embora não podendo ser usado como sinal, o nó não perde o seu caráter de sinal, adquirindo uma importunidade inquietante. STMSC: §17

Poder-se-ia ficar tentado a ilustrar o papel primordial do sinal na ocupação cotidiana para a própria compreensão do mundo com o uso abundante de “sinais”, característico da presença [Dasein] primitiva, ou seja, com o fetiche e a magia. Decerto, a criação de sinais à base desse tipo de uso de sinais não se faz segundo uma intenção teórica nem através de uma especulação teórica. O uso de sinais permanece inteiramente no âmbito de um ser-no-mundo “imediato”. Num exame mais minucioso, porém, torna-se claro que a interpretação de fetiche e magia feita pela ideia de sinal não é, de modo algum, suficiente para apreender o modo de “estar À MÃO” dos entes que vêm ao encontro no mundo primitivo. No que concerne ao fenômeno do sinal, poder-se-ia fazer a seguinte interpretação: para o homem primitivo, o sinal e o assinalado coincidem. O próprio sinal pode representar o assinalado não somente no sentido de substituí-lo, mas, sobretudo, no sentido de que o próprio sinal é sempre o assinalado. Essa estranha coincidência de sinal e assinalado não reside, contudo, em a coisa sinal já ter feito a experiência de uma certa “objetivação”, sendo experimentada como pura coisa e, desse modo, transferida com o assinalado para o mesmo âmbito ontológico do simplesmente dado. A “coincidência” não é identificação do que antes estava isolado mas um sinal que ainda-não-está-livre do designado. Esse uso de sinal desaparece inteiramente em ser para o assinalado, a ponto de ainda não se poder separar um sinal como tal. A coincidência não se funda numa primeira objetivação mas na total falta de objetivação. Isso significa, no entanto, que os sinais não foram descobertos como instrumento e que, por fim, o “manual” intramundano ainda não possui de forma alguma o modo de ser do instrumento. Presumivelmente, esse diapasão ontológico (manualidade e instrumento), bem como a ontologia da coisalidade, não podem contribuir em nada para uma interpretação do mundo primitivo. Se, no entanto, uma compreensão de ser é constitutiva da presença [Dasein] primitiva e do mundo primitivo em geral, então torna-se ainda mais urgente a elaboração da ideia “formal  ” de mundanidade, ou seja, de um fenômeno que é de tal maneira passível de modificações que todos os enunciados ontológicos, seja no contexto fenomenal prefixado do que ainda não é isso ou do que já não é mais isso, recebam um sentido fenomenal positivo a partir do que não é. STMSC: §17

Esta interpretação do sinal tinha apenas a finalidade de oferecer um apoio fenomenal para se caracterizar a referência. A relação entre sinal e referência é tríplice: 1. Na estrutura do instrumento em geral, a ação de mostrar, enquanto possível concreção do para quê (Wozu) de uma serventia, funda-se no ser para (Um-zu) (referência). 2. A ação de mostrar do sinal, enquanto caráter instrumental do que se acha À MÃO, pertence a uma totalidade instrumental, a um conjunto referencial. 3. O sinal não está apenas À MÃO junto com outro instrumento, mas, em sua manualidade, o mundo circundante torna-se, cada vez, explicitamente acessível à circunvisão. O sinal está onticamente À MÃO e, enquanto é esse instrumento determinado, desempenha, ao mesmo tempo, a função de alguma coisa que indica a estrutura ontológica de manualidade, totalidade de referencial e mundanidade. Aí se enraíza o privilégio desse manual em meio ao mundo circundante, ocupado pela circunvisão. Se, portanto, a própria referência deve ser, do ponto de vista ontológico, fundamento do sinal, ela mesma não pode ser concebida como sinal. Como a própria referência constitui manualidade, ela não é a determinação ôntica de um manual. Em que sentido a referência é a “pressuposição” ontológica do manual e em que medida, na qualidade de fundamento ontológico, é também constitutivo da mundanidade em geral? STMSC: §17

O manual vem ao encontro dentro do mundo. O ser desse ente, a manualidade, remete ontologicamente, portanto, de alguma maneira, ao mundo e à mundanidade. Em todo manual, o mundo já está “pre [das Da  ]-sente por aí”. Embora não de forma temática, o mundo já se descobre CH: ilumina antecipadamente em todo encontro. Ele pode, no entanto, aparecer também em certos modos de lidar com o mundo circundante. É a partir do mundo que o manual está À MÃO. Como o mundo deixa e faz encontrar o manual? A análise feita até o momento mostrou: o ente intramundano que vem ao encontro é liberado em seu ser para a circunvisão própria da ocupação, é levado em conta. O que diz essa liberação prévia e como ela há de ser compreendida como distintivo ontológico do mundo? Com quais problemas se depara a questão da mundanidade do mundo? STMSC: §18

Esse deixar e fazer com que algo já sempre em conjunto se tenha liberado numa conjuntura é um perfeito CH: no mesmo parágrafo, falou-se da “liberação prévia” – a saber (falando-se em geral), do ser para a possível revelação dos entes. Nesse sentido ontológico, “prévia” significa lat. a priori  , em grego proteron te physei, Aristóteles  , Física, A 1; ainda mais claramente, Metafísica, E 1025 b 29 to ti einai   “? que já foi ser”, o que sempre já vigorou antecipadamente, o passado-presente, o perfeito. O verbo grego einai não conhece nenhuma forma de perfeito; esse é aqui evocado no hen   einai. Não o que onticamente passou, mas o que é sempre mais cedo, ao qual nos referimos retroativamente na questão dos entes como tais; ao invés de perfeito a priori, poder-se-ia também dizer: perfeito ontológico ou transcendental   (cf. A doutrina kantiana do esquematismo) a priori, que caracteriza o modo de ser da própria presença [Dasein]. Compreendido do ponto de vista ontológico, esse deixar e fazer em conjunto consiste numa liberação prévia dos entes em sua manualidade intramundana. É a partir do estar junto que se libera o estar com da conjuntura. É na ocupação que o estar com se encontra com esse manual. Mostrando-se como um ente, ou seja, descobrindo-se em seu ser, ele já se acha À MÃO no mundo circundante e não “pela primeira vez” apenas como “matéria do mundo” simplesmente dada. STMSC: §18

Impõe-se uma questão crítica: Será que esta ontologia de “mundo” investiga o fenômeno do mundo? Se não o faz, será que ao menos determina um ente intramundano a ponto de tornar visível a sua determinação mundana? Ambas as perguntas devem ser respondidas negativamente. O ente que, em princípio, Descartes   tenta apreender de maneira ontológica com a extensio é um ente que só pode ser descoberto mediante a passagem por um ente intramundano imediatamente À MÃO. Contudo, por mais que isso seja correto e por mais equivocada que seja a própria caracterização ontológica deste determinado ente intramundano (natureza) – tanto a ideia de substancialidade quanto o sentido de existit e ad existendum assumido em sua definição – subsiste a possibilidade de se colocar e desenvolver de algum modo o problema ontológico do mundo, através de uma ontologia fundada na distinção radical entre Deus, eu e “mundo”. Se, porém, mesmo essa possibilidade não se der, então deve-se apresentar uma comprovação explícita de que Descartes não apenas fornece uma determinação ontológica falha, mas que a sua interpretação e seus fundamentos levaram a que se saltasse por cima do fenômeno do mundo, bem como do ser dos entes intramundanos que estão imediatamente À MÃO. STMSC: §21

Até que ponto, na caracterização do manual, já nos deparamos com a sua espacialidade? Já falamos do que numa primeira aproximação se apresenta como manual. Isto não indica apenas o ente que vem ao encontro em primeiro lugar, aludindo igualmente ao ente que se acha na “proximidade”. O manual do modo de lidar cotidiano possui o caráter de proximidade. Examinando-se com precisão, esta proximidade do instrumento já se acha indicada no próprio termo que exprime seu ser, na “manualidade”. O ente “À MÃO” sempre possui uma proximidade diferente que não se estipula medindo-se distâncias. Essa proximidade regula-se a partir do uso e manuseio “a se levar em conta” na circunvisão. A circunvisão da ocupação fixa o que, desse modo, está próximo também quanto à direção em que o instrumento é, cada vez, acessível. A proximidade direcionada do instrumento significa que ele não ocupa uma posição no espaço, meramente localizada em algum lugar, mas que, como instrumento, ele se acha, essencialmente, instalado, disposto, instituído e alojado. O instrumento tem seu lugar ou então “está por aí”, o que se deve distinguir fundamentalmente de uma simples ocorrência numa posição arbitrária do espaço. Cada lugar se determina como lugar deste instrumento para… , a partir de um todo de lugares reciprocamente direcionados do conjunto instrumental, “À MÃO” no mundo circundante. O lugar e a multiplicidade de lugares não devem ser interpretados como o onde de qualquer ser simplesmente dado de coisas. O lugar é sempre o “aqui” e “lá” determinados, a que pertence um instrumento. Essa pertinência corresponde ao caráter de instrumento do manual, isto é, ao pertencer a um todo instrumental segundo uma conjuntura. A condição de possibilidade da pertinência localizável de um todo instrumental reside no para onde a que se remete a totalidade dos lugares de um contexto instrumental. Chamamos de região este para onde da possível pertinência instrumental, previamente visualizado no modo de lidar da ocupação dotada de uma circunvisão. STMSC: §22

“Na região de” diz não apenas “na direção de”, mas também na periferia do que está nesta direção. O lugar constituído pela direção e distância – a proximidade é apenas um modo de distância – já opera uma orientação para e dentro de uma região. Para que a indicação e o encontro de lugares dentro de uma totalidade instrumental disponível à circunvisão sejam possíveis, é preciso que já se tenha descoberto previamente uma região. Esta orientação regional da multiplicidade de lugares do que está À MÃO constitui o circundante, isto é, o estar em torno de nós dos entes que de imediato vêm ao encontro no mundo circundante. Numa primeira aproximação, nunca nos é dado uma multiplicidade tridimensional de possíveis posições preenchidas por coisas simplesmente dadas. STMSC: §22

Essa dimensionalidade do espaço ainda se acha encoberta na espacialidade do que está À MÃO. O lugar “em cima” é o lugar no “teto”, o “embaixo” é o “no chão”, o “atrás” é o “junto à porta”; todos os onde são descobertos e interpretados na circunvisão, através das passagens e caminhos do modo de lidar cotidiano, e não constatados e enumerados numa leitura de medições do espaço. STMSC: §22

Regiões não se formam a partir de coisas simplesmente dadas em conjunto, mas estão sempre À MÃO nos vários lugares específicos. Os próprios lugares dependem dos entes que se acham À MÃO na circunvisão da ocupação ou que, como tais, são encontrados. O que constantemente está À MÃO não tem um lugar, pois é previamente levado em conta pelo ser-no-mundo da circunvisão. O onde de sua manualidade é levado em conta na ocupação e se orienta para os demais entes À MÃO. Assim, por exemplo, o sol cuja luz e calor são usados cotidianamente possui seus lugares marcados e descobertos pela circunvisão, a partir da possibilidade de emprego variável daquilo que ele propicia: o nascente, o meio-dia, o poente, a meia-noite. Os lugares deste manual em contínua mudança, e não obstante uniforme, tornam-se “indicações” privilegiadas de suas regiões. Esses pontos cardeais, que ainda não precisam ter um sentido geográfico, proporcionam previamente o para onde de todo delineamento ulterior de qualquer região que possa vir a ser ocupada por lugares. A casa tem o seu lado do sol e o seu lado da ventilação; por ele se orienta a distribuição dos “cômodos” e nestes, novamente, a “instalação” de acordo com o seu caráter instrumental. Igrejas e sepulturas, por exemplo, são situadas segundo o nascente e o poente, regiões da vida e da morte, a partir das quais a própria presença [Dasein] se determina no tocante às suas possibilidades mais próprias de ser-no-mundo. A ocupação da presença [Dasein] que, sendo, está em jogo seu próprio ser, descobre previamente as regiões em que, cada vez, está em jogo uma conjuntura decisiva. A descoberta prévia das regiões também se determina pela totalidade conjuntural em que se libera o manual enquanto aquilo que vem ao encontro. STMSC: §22

A manualidade prévia de cada região possui um sentido ainda mais originário do que o ser do manual, a saber, o caráter de familiaridade que não causa surpresa. Ela mesma só se torna visível no modo da surpresa, numa descoberta do que está À MÃO, guiada pela circunvisão segundo os modos deficientes de ocupação. A região do lugar, muitas vezes, torna-se explicitamente acessível como tal pela primeira vez quando alguma coisa não se encontra em seu lugar. O espaço que, no ser-no-mundo da circunvisão, descobre-se como espacialidade do todo instrumental, pertence sempre ao próprio ente como o seu lugar. O mero espaço ainda se acha velado. O espaço está fragmentado CH: não, justamente uma unidade dos locais, especial e não fragmentada em lugares. Essa espacialidade, no entanto, dispõe de sua própria unidade através da totalidade conjuntural mundana do que está À MÃO no espaço. O “mundo circundante” não se orienta num espaço previamente dado, mas a sua manualidade específica articula, na significância, o contexto conjuntural de uma totalidade específica de lugares referidos à circunvisão. Cada mundo sempre descobre a espacialidade do espaço que lhe pertence. Do ponto de vista ôntico, a possibilidade de encontro com um manual em seu espaço circundante só é possível porque a própria presença [Dasein] é “espacial”, no tocante a seu ser-no-mundo. STMSC: §22

Ao atribuirmos espacialidade à presença [Dasein], temos evidentemente de conceber este “ser-no-espaço” a partir de seu modo de ser. Em sua essência, a espacialidade da presença [Dasein] não é um ser simplesmente dado e por isso não pode significar ocorrer em alguma posição do “espaço cósmico” e nem estar À MÃO em um lugar. Ambos são modos de ser de entes que vêm ao encontro dentro do mundo. A presença [Dasein], no entanto, está e é “no” mundo, no sentido de lidar familiarmente na ocupação com os entes que vêm ao encontro dentro do mundo. Por isso, se, de algum modo, a espacialidade lhe convém, isto só é possível com base nesse ser-em. A espacialidade do ser-em apresenta, porém, os caracteres de dis-tanciamento e direcionamento. STMSC: §23

Dis-tanciar é, numa primeira aproximação e, sobretudo, um aproximar dentro da circunvisão, isto é, trazer para a proximidade no sentido de providenciar, aprontar, ter À MÃO. Determinados modos de descobrir os entes numa atitude puramente cognitiva também apresentam o caráter de aproximação. Na presença [Dasein] reside uma tendência essencial de proximidade CH: em que medida e por quê? Ser como vigência constante tem primazia, atualização. Todos os modos de aumentar a velocidade com que, hoje, de forma mais ou menos forçada lidamos, impõem a superação da distância. Assim, por exemplo, com a “radiodifusão”, a presença [Dasein] cumpre hoje o dis-tanciamento do “mundo” através de uma ampliação e destruição do mundo circundante cotidiano, cujo sentido para a presença [Dasein] ainda não se pode totalmente avaliar. STMSC: §23

Embora não necessariamente, subsiste no dis-tanciamento uma avaliação explícita da distância em que um manual se acha com relação à presença [Dasein]. A distância jamais é apreendida de antemão como intervalo. A avaliação da distância sempre se faz relativamente a dis-tanciamentos em que a presença [Dasein] cotidiana se mantém. Por mais imprecisos e oscilantes que sejam os seus cálculos, tais avaliações possuem uma determinação própria e compreensível para todos no modo de ser cotidiano da presença [Dasein]. Assim, dizemos – até lá é um passeio, é um pulo, são “dois passos”. Essas medidas exprimem que elas não apenas não querem “medir” como também indicam que as distâncias avaliadas pertencem a um ente com que lidamos numa circunvisão e ocupação. Mesmo quando nos servimos de medidas precisas e dizemos: “até em casa é meia hora”, essa medição deve ser tomada como uma avaliação, pois aqui “meia hora” não são trinta minutos mas uma duração que não possui “tamanho”, no sentido de extensão quantitativa. Essa duração é interpretada, cada vez, segundo as “ocupações” cotidianas de nossos hábitos. As distâncias são avaliadas, em primeiro lugar, de acordo com a circunvisão, mesmo quando se conhecem medidas estabelecidas “oficialmente”. Porque nessas avaliações o dis-tante se acha À MÃO, ele conserva o seu caráter especificamente intramundano. Isso explica por que todo dia os caminhos corriqueiros que levam ao ente dis-tante são diferentemente longos. O manual do mundo circundante, na verdade, não se oferece como algo simplesmente dado para um observador eterno, destituído de presença [Dasein], mas vem ao encontro na cotidianidade da presença [Dasein], empenhada em ocupações dentro da circunvisão. Em seus caminhos, a presença [Dasein] não atravessa um trecho do espaço como uma coisa corpórea simplesmente dada. Ela “não devora quilômetros”, a aproximação e o distanciamento são sempre modos de ocupação com o que está próximo e dis-tante. Um caminho “objetivamente” longo pode ser mais curto do que um caminho objetivamente muito curto que, talvez, seja uma “difícil caminhada” e, por isso, se dá para um ou outro como um caminho sem fim. É nesse “dar-se como” que cada mundo está propriamente À MÃO. Os intervalos objetivos de coisas simplesmente dadas não coincidem com a distância e o estar próximo do manual intramundano. Por mais que se saibam com exatidão aqueles intervalos, este saber permanecerá cego por não possuir a função de aproximar o mundo circundante descoberto na circunvisão; este saber só se aplica num ser e para um ser que, em suas ocupações, não está medindo trechos de um mundo que “lhe diz respeito”. STMSC: §23

Orientando-se primária ou até exclusivamente pelas distâncias enquanto intervalos medidos, encobre-se a espacialidade originária do ser-em. O que se pretende “mais próximo” não é, de forma alguma, o que tem o menor intervalo “de nós”. O “mais próximo” é o que está distante no raio de uma visão, apreensão e alcance medianos. Porque a presença [Dasein] é essencialmente espacial, segundo os modos do dis-tanciamento, o lidar com as coisas sempre se mantém num “mundo circundante”, cada vez determinado pela distância de um certo espaço de jogo. Por isso é que, de início, ao ouvirmos e vermos, desconsideramos o que, do ponto de vista dos intervalos, se acha “mais próximo”. Ver e ouvir são sentidos da distância, não devido a seu alcance, mas porque, distanciando-se, a presença [Dasein] neles se mantém de forma predominante. Para quem usa óculos, por exemplo, que, do ponto de vista do intervalo, estão tão próximos que os “trazemos no nariz”, esse instrumento de uso, do ponto de vista do mundo circundante, acha-se mais distante do que o quadro pendurado na parede em frente. Esse instrumento é tão pouco próximo que, muitas vezes, nem pode ser encontrado imediatamente. O instrumento de ver, o de ouvir como o fone do telefone, por exemplo, possuem a não-surpresa caracterizada anteriormente do que está imediatamente À MÃO. Isso vale também, por exemplo, para a estrada que é o instrumento de caminhar. Ao caminhar, toca-se a estrada a cada passo e assim, aparentemente, ela é o mais próximo e o mais real dos manuais, insinuando-se, por assim dizer, em determinadas partes do corpo, ao longo da sola dos pés. E, no entanto, ela está mais distante do que o conhecido que vem ao encontro “pela estrada” a um “distanciamento” de vinte passos. É a ocupação guiada pela circunvisão que decide sobre a proximidade e distância do que está imediatamente À MÃO no mundo circundante. A ocupação se atém previamente ao que está mais próximo e regula os dis-tanciamentos. STMSC: §23

Quando, em suas ocupações, a presença [Dasein] aproxima de si alguma coisa, isto não significa que a tenha fixado numa posição do espaço que possua o menor intervalo de algum ponto do seu corpo. Aproximar significa: na periferia do que está imediatamente À MÃO numa circunvisão. A aproximação não se orienta pela coisa-eu dotada de corpo, mas pelo ser-no-mundo da ocupação, isto é, pelo que sempre vem ao encontro imediatamente no ser-no-mundo. A espacialidade da presença [Dasein] também não se determina, indicando-se a posição em que uma coisa corpórea é simplesmente dada. Sem dúvida, também dizemos que a presença [Dasein] sempre ocupa um lugar. Este “ocupar”, no entanto, deve ser em princípio distinto do estar À MÃO num lugar, dentro de uma região. Ocupar um lugar deve ser concebido como distanciar o manual do mundo circundante dentro de uma região previamente descoberta numa circunvisão. A presença [Dasein] compreende o aqui a partir de um lá do mundo circundante. O aqui não indica o onde de algo simplesmente dado, mas o estar junto de um ser que produz simultaneamente com esse dis-tanciamento. De acordo com sua espacialidade, a presença [Dasein], numa primeira aproximada, nunca esta aqui, mas sempre lá, de onde retorna para aqui. Todavia, tudo isso apenas se dá no modo em que a presença [Dasein] interpreta o seu ser-para… das ocupações a partir do que lá está a mão. É o que se torna totalmente claro pela particularidade fenomenal inerente a estrutura do dis-tanciamento, própria do ser-em. STMSC: §23

Deve-se, porém, considerar que o direcionamento próprio do distanciamento funda-se no ser-no-mundo. Assim, a direita e a esquerda não são coisas “subjetivas” das quais o sujeito possui uma sensação, mas sim direções do direcionamento, dentro de um mundo já sempre À MÃO. “Pelo puro sentimento da diferença de meus dois lados”, nunca poderia localizar-me corretamente no mundo. O sujeito com “puros sentimentos” desta diferença é um ponto de partida construtivo que desconsidera a verdadeira constituição do sujeito, a saber, que para poder orientar-se, a presença [Dasein] já está e já deve estar num mundo junto com esse “puro sentimento”. É o que aparece claramente no exemplo com que Kant   tenta esclarecer o fenômeno da orientação. STMSC: §23

Enquanto ser-no-mundo, a presença [Dasein] já descobriu a cada passo um “mundo”. Caracterizou-se esse descobrir, fundado na mundanidade do mundo, como liberação dos entes numa totalidade conjuntural. A ação liberadora de deixar e fazer em conjunto se perfaz no modo da referência, guiada pela circunvisão e fundada numa compreensão prévia da significância. Mostra-se assim que, dentro de uma circunvisão, o ser-no-mundo é espacial. E somente porque a presença [Dasein] é espacial, tanto no modo de dis-tanciamento quanto no modo de direcionamento, o que se acha À MÃO no mundo circundante pode vir ao encontro em sua espacialidade. A liberação de uma totalidade conjuntural é, de maneira igualmente originária, um deixar e fazer em conjunto que, numa região, dis-tancia e direciona, ou seja, libera a pertinência espacial do que está À MÃO. Na significância, familiar à presença [Dasein] nas ocupações de seu ser-em, reside também a abertura essencial do espaço. STMSC: §24

O espaço assim aberto com a mundanidade do mundo ainda não tem nada a ver com o puro conjunto das três dimensões. Neste abrir-se mais imediato, o espaço enquanto puro continente de uma ordem métrica de posições e de uma determinação métrica de postos ainda permanece velado. Com o fenômeno de região, indicamos a perspectiva em que o espaço se descobre previamente na presença [Dasein]. Entendemos região como o para onde a que possivelmente pertence o conjunto instrumental À MÃO, que poderá vir ao encontro segundo direções e distanciamentos, isto é, em um lugar. A pertinência determina-se a partir da significância constitutiva do mundo e articula, num possível para onde, o para aqui e o para lá. O para onde (Wohin) em geral acha-se prelineado pela totalidade referencial estabelecida num para onde da ocupação, em cujo seio a ação liberadora de deixar e fazer em conjunto instaura referências. Numa região sempre se estabelece uma conjuntura com o que vem ao encontro enquanto manual. A conjuntura regional do espaço pertence à totalidade conjuntural que constitui o ser do que está À MÃO no mundo circundante. Com base nesta totalidade conjuntural do espaço é que se pode encontrar e determinar a forma e a direção do que está À MÃO. De acordo com a possível transparência da circunvisão ocupacional, distancia-se e direciona-se o manual intramundano junto ao ser fático da presença [Dasein]. STMSC: §24

O deixar e fazer vir ao encontro, constitutivo do ser-no-mundo dos entes intramundanos, é um “dar-espaço”. Esse “dar-espaço”, que também denominamos de arrumar , consiste na liberação do que está À MÃO para a sua espacialidade. É este arrumar como doação preliminar que descobre um conjunto possível de lugares determinados pela conjuntura e que possibilita a orientação fática de cada passo. Enquanto ocupação com o mundo numa circunvisão, a presença [Dasein] pode tanto “arrumar” como desarrumar e mudar a arrumação, e isso porque o arrumar, entendido como existencial, pertence a seu ser-no-mundo. Contudo, nem a região previamente descoberta a cada vez e nem mesmo a espacialidade de cada passo são explicitamente visíveis. Em si mesma, ela está presente à circunvisão na não surpresa do manual a cuja ocupação se entrega a circunvisão. Com o ser-no-mundo, o espaço se descobre, de início, nessa espacialidade. Com base na espacialidade assim descoberta, o espaço em si torna-se acessível ao conhecimento. STMSC: §24

O espaço nem está no sujeito nem o mundo está no espaço. Ao contrário, o espaço está no mundo à medida que o ser-no-mundo constitutivo da presença [Dasein] já sempre descobriu um espaço. O espaço não se encontra no sujeito nem o sujeito considera o mundo “como se” estivesse num espaço. É o “sujeito”, entendido ontologicamente, a presença [Dasein], que é espacial em sentido originário. Porque a presença [Dasein] é nesse sentido espacial, o espaço se apresenta como a priori. Este termo não indica a pertinência prévia a um sujeito que de saída seria destituído de mundo e projetaria de si um espaço. Aprioridade significa aqui precedência do encontro com o espaço (como região) em cada encontro do que está À MÃO no mundo circundante. STMSC: §24

A descoberta do espaço puramente abstrato, destituído de circunvisão, neutraliza as regiões do mundo circundante, transformando-as em puras dimensões. Os lugares e a totalidade de lugares, orientados pela circunvisão dos instrumentos À MÃO, mergulham num sistema de coordenadas, destinado a qualquer coisa. A espacialidade do manual intramundano perde, assim, seu caráter conjuntural. O mundo perde a especificidade dos seus em torno de, de suas circundâncias, o mundo circundante transforma-se em mundo da natureza. O “mundo” como um todo instrumental À MÃO perde o seu espaço, transformando-se em um contexto de coisas extensas simplesmente dadas. O espaço homogêneo da natureza mostra-se apenas através de um modo que descobre o ente uma vez que este vem ao encontro marcado pelo caráter de uma desmundanização específica da determinação mundana do manual. STMSC: §24

De acordo com o seu ser-no-mundo, a presença [Dasein] já sempre dispõe previamente, embora de forma implícita, de um espaço já descoberto. Em contrapartida, o espaço em si mesmo fica, de início, encoberto no tocante às possibilidades puras de simples espacialidades de alguma coisa. Por mostrar-se essencialmente num mundo, o espaço não decide sobre a modalidade de seu ser. O espaço não precisa ter o modo de ser espacial do que se acha À MÃO nem o modo de algo simplesmente dado. O ser do espaço também não possui o modo de ser da presença [Dasein]. Porque o próprio ser do espaço não pode ser concebido como res extensa  , não se segue que deva ser determinado ontologicamente como “fenômeno” desta res – na verdade, ele não seria dela distinto – nem que o ser do espaço pudesse ser equiparado ao da res cogitans   e compreendido como pu-ramente “subjetivo”, mesmo que se desconsiderasse toda a problemática referente ao ser deste sujeito. STMSC: §24

A “descrição” do mundo circundante mais próximo, por exemplo, do mundo do artesão, mostrou que, com o instrumento em ação, também “vêm ao encontro” os outros, aos quais a “obra” se destina. No modo de ser desse manual, ou seja, em sua conjuntura, subsiste uma referência essencial a possíveis portadores para os quais a obra está “talhada sob medida”. Do mesmo modo, junto com o material empregado, também vem ao encontro o seu produtor ou “fornecedor”, enquanto aquele que “serve” bem ou mal. O campo, por exemplo, onde passeamos “lá fora” mostra-se como o campo que pertence a alguém, que é por ele mantido em ordem; o livro usado foi comprado em tal livreiro, foi presenteado por… e assim por diante. Em seu ser-em-si, o barco ancorado na praia refere-se a um conhecido que nele viaja ou então um “barco desconhecido” mostra outros. Os outros que assim “vêm ao encontro”, no conjunto instrumental À MÃO no mundo circundante, não são algo acrescentado pelo pensamento a uma coisa já antes simplesmente dada. Todas essas coisas vêm ao encontro a partir do mundo em que elas estão À MÃO para os outros. Este mundo já é previamente sempre o meu. Na análise feita até aqui, a periferia daquilo que vem ao encontro dentro do mundo restringiu-se, de início, ao instrumento manual e à natureza simplesmente dada e, assim, aos entes destituídos do caráter da presença [Dasein]. Esta restrição não apenas era necessária para simplificar a explicação, mas, sobretudo, porque o modo de ser da presença [Dasein] dos outros que vêm ao encontro dentro do mundo diferencia-se da manualidade e do ser simplesmente dado. O mundo da presença [Dasein] libera, portanto, entes que não apenas se distinguem dos instrumentos e das coisas mas que, de acordo com seu modo de ser de presença [Dasein], são e estão “no” mundo em que vêm ao encontro segundo o modo de ser-no-mundo. Não são algo simplesmente dado e nem algo À MÃO. São como a própria presença [Dasein] liberadora – são também co-presenças. Ao se querer identificar o mundo em geral com o ente intramundano, dever-se-ia então dizer: “mundo” é também presença [Dasein]. STMSC: §26

O encontro com os outros não se dá numa apreensão prévia em que um sujeito, de início já simplesmente dado, se distingue dos demais sujeitos, nem numa visão primeira de si onde então se estabelece o referencial da diferença. Eles vêm ao encontro a partir do mundo em que a presença [Dasein] se mantém, de modo essencial, empenhada em ocupações guiadas por uma circunvisão. Em oposição aos “esclarecimentos” teóricos, que facilmente se impõem sobre o ser simplesmente dado dos outros, deve-se ater ao teor fenomenal demonstrado de seu encontro no mundo circundante. Esse modo de encontro mundano mais próximo e elementar da presença [Dasein] é tão amplo que a própria presença [Dasein] nele, de saída, já “encontra” a si mesma, desviando o olhar ou nem mesmo vendo “vivências” e “atos”. A presença [Dasein] encontra, de saída, “a si mesma” naquilo que ela empreende, usa, espera, resguarda – no que está imediatamente À MÃO no mundo circundante, em sua ocupação. STMSC: §26

E até mesmo quando a própria presença [Dasein] diz explicitamente de si mesma eu-aqui, a determinação pessoal do lugar deve ser cornpreendida a partir da espacialidade existencial da presença [Dasein]. Na interpretação desta espacialidade (§23), já indicamos que esse euaqui não significa um ponto privilegiado da coisa-eu, mas que se compreende como ser-em a partir do lá de um mundo À MÃO, a que a presença [Dasein] se detém em suas ocupações. STMSC: §26

Numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] se entende a partir de seu mundo e a co-presença [Dasein] dos outros vêm ao encontro nas mais diversas formas, a partir do que está À MÃO dentro do mundo. Mas mesmo quando a presença [Dasein] dos outros se torna, por assim dizer, temática, eles não chegam ao encontro como pessoas simplesmente dadas. Nos as encontramos, por exemplo, “junto ao trabalho”, o que significa, primordialmente, em seu ser-no-mundo. Mesmo quando vemos o outro meramente “em volta de nós”, ele nunca é apreendido como coisa-homem simplesmente dada. O “estar em volta” é um modo existencial de ser: o ficar desocupado e desprovido de circunvisão junto a tudo e a nada. O outro vêm ao encontro em sua co-presença [Dasein] no mundo. STMSC: §26

Se o ser-com constitui existencialmente o ser-no-mundo, ele deve poder ser interpretado pelo fenômeno da cura, da mesma forma que o modo de lidar da circunvisão com o manual intramundano que, previamente, concebemos como ocupação. Pois esse fenômeno determina o ser da presença [Dasein] em geral (cf. cap. VI desta seção). O caráter ontológico da ocupação não é próprio do ser-com, embora esse modo de ser seja um ser para os entes que vem ao encontro dentro do mundo como ocupação. O ente, com o qual a presença [Dasein] se relaciona enquanto ser-com, também não possui o modo de ser do instrumento À MÃO, pois ele mesmo é presença [Dasein]. Desse ente não se ocupa, com ele se preocupa.[177] STMSC: §26

De acordo com a análise aqui desenvolvida, o ser com os outros pertence ao ser da presença [Dasein] que, sendo, põe em jogo seu próprio ser. Enquanto ser-com, a presença [Dasein] “é”, essencialmente, em virtude dos outros. Isso deve ser entendido, em sua essência, como um enunciado existencial. Mesmo quando cada presença [Dasein] fática não se volta para os outros quando acredita não precisar deles ou quando os dispensa, ela ainda é no modo de ser-com. No ser-com, enquanto o existencial de ser em virtude dos outros, os outros já estão abertos em sua presença [Dasein]. Essa abertura dos outros, previamente constituída pelo ser-com, também perfaz a significância, isto é, a mundanidade que se consolida como tal no existencial de ser-em-virtude-de. Por isso, a mundanidade do mundo assim constituída, em que a presença [Dasein] já sempre é e está de modo essencial, deixa que o manual do mundo circundante venha ao encontro junto com a co-presença [Dasein] dos outros, na própria ocupação guiada pela circunvisão. Na estrutura da mundanidade do mundo, os outros não são, de saída, simplesmente dados como sujeitos soltos no ar ao lado de outras coisas. Eles se mostram em seu ser-no-mundo, empenhado nas ocupações do mundo circundante, a partir do ser que, no mundo, está À MÃO. STMSC: §26

Já se mostrou anteriormente o quanto o mundo circundante público está À MÃO e providenciado no “mundo circundante” mais próximo. Na utilização dos meios de transporte público, no emprego dos meios de comunicação e notícias (jornal), cada um e como o outro. Este conviver dissolve inteiramente a própria presença [Dasein] no modo de ser dos “outros”, e isso de tal maneira que os outros desaparecem ainda mais em sua possibilidade de diferença e expressão. STMSC: §27

O que se constitui essencialmente pelo ser-no-mundo é sempre em si mesmo o “pre [das Da]” de sua presença [Dasein]. Segundo o significado corrente da palavra, o “pre [das Da]” da presença [Dasein] remete ao “aqui” e “lá”. O “aqui” de um “eu-aqui” sempre se compreende a partir de um “lá” À MÃO, no sentido de um ser que se dis-tancia e se direciona numa ocupação. A espacialidade existencial da presença [Dasein] que lhe determina o “lugar” já está fundada no ser-no-mundo. O “lá” é a determinação daquilo que vem ao encontro dentro do mundo. “Aqui” e “lá” são apenas possíveis no “pre [das Da]” da presença [Dasein], isto é, quando se da um ente que, enquanto ser do “pre [das Da]” da presença [Dasein], abriu a espacialidade. Em seu ser mais próprio, este ente traz o caráter de não fechamento. A expressão “pre [das Da]” refere-se a essa abertura essencial. Através dela, esse ente (a presença [Dasein]) está junto à pre [das Da]-sença do mundo, fazendo-se presença [Dasein] para si mesmo. STMSC: §28

Além dessas duas determinações essenciais da disposição aqui explicitadas: a abertura do estar-lançado e a abertura do ser-no-mundo em sua totalidade, deve-se considerar ainda uma terceira, que contribui sobremaneira para uma compreensão mais profunda da mundanidade do mundo. Como dissemos anteriormente, o mundo que já se abriu deixa e faz com que o ente intramundano venha ao encontro. Essa abertura prévia do mundo, que pertence ao ser-em, também se constitui de disposição. Deixar e fazer vir ao encontro é, primariamente, uma circunvisão e não simplesmente sensação ou observação. Numa ocupação dotada de circunvisão, deixar e fazer vir ao encontro tem o caráter de ser atingido, como agora se pode ver mais agudamente a partir da disposição. Do ponto de vista ontológico, inutilidade, resistência, ameaça, são apenas possíveis, porque o ser-em como tal se acha determinado previamente em sua existência, de modo a poder ser tocado dessa maneira pelo que vem ao encontro dentro do mundo. Esse ser tocado funda-se na disposição, descobrindo o mundo como tal, no sentido, por exemplo, de ameaça. Apenas o que é na disposição do medo, o sem medo, pode descobrir o que está À MÃO no mundo circundante como algo ameaçador. O estado de humor da disposição constitui, existencialmente, a abertura mundana da presença [Dasein]. STMSC: §29

O de que se teme, o “amedrontador”, é sempre um ente que vem ao encontro dentro do mundo e que possui o modo de ser do que está À MÃO, ou do ser simplesmente dado ou ainda da co-presença [Dasein]. Não se trata de relatar onticamente o ente que, na maior parte das vezes e das mais diversas formas, pode tornar-se “amedrontador”. Trata-se de determinar fenomenalmente o que é amedrontador em seu ser amedrontador. O que pertence ao amedrontador como tal a ponto de vir ao encontro no ter medo? Aquilo de que se tem medo possui o caráter de ameaça. Isso implica varias coisas: 1. O que vem ao encontro possui o modo conjuntural de ser prejudicial. Ele sempre se mostra dentro de um contexto conjuntural. 2. Esse prejudicial visa a um âmbito determinado daquilo que pode encontrar. Chega trazendo em si a determinação de uma região dada. 3. A própria região e o “estranho” que dela provem são conhecidos. 4. Enquanto ameaça, o prejudicial não se acha ainda numa proximidade dominável, ele se aproxima. Nesse aproximar-se, o prejudicial se irradia, e seus raios apresentam o caráter de ameaça. 5. Esse aproximar-se aproxima-se dentro da proximidade. O que, na verdade, pode ser prejudicial no mais alto grau e até constantemente se aproxima, embora mantendo-se a distância, vela seu ser amedrontador. É, porém, aproximando-se na proximidade que o prejudicial ameaça, pois pode chegar ou não. Na aproximação cresce esse “pode chegar, mas por fim não”. Então dizemos, é amedrontador. 6. Isso significa: ao se aproximar na proximidade, o prejudicial traz consigo a possibilidade desvelada de ausentar-se e passar ao largo, o que não diminui nem resolve o medo, ao contrário, o constitui. STMSC: §30

É a partir da significância aberta no compreender de mundo que o ser da ocupação com o manual se dá a compreender, qualquer que seja a conjuntura que possa estabelecer com o que lhe vem ao encontro. A circunvisão descobre, isto é, o mundo já compreendido se interpreta. O que está À MÃO surge expressamente na visão que compreende. Todo preparar, acertar, colocar em condições, melhorar, completar, se realiza de tal modo que o manual dado na circunvisão é interpretado em relação aos outros em seu ser-para e vem a ser ocupado segundo essa interpretação recíproca. O que se interpreta reciprocamente na circunvisão de seu ser-para como tal, ou seja, o que expressamente se compreende, possui a estrutura de algo como algo. A questão que se levanta numa circunvisão: o que é esse manual determinado? A interpretação da circunvisão responde do seguinte modo: ele é para… A indicação do para-que não é simplesmente a denominação de algo, mas o denominado é compreendido como isto, que se deve tomar como estando em questão. O que se abre no compreender, o compreendido, é sempre de tal modo acessível que pode relevar-se expressamente em si mesmo “como isto ou aquilo”. O “como” constitui a estrutura do expressamente compreendido; ele constitui a interpretação. O modo de lidar da circunvisão e interpretação com o manual intramundano, que o “vê” como mesa, porta, carro, ponte, não precisa necessariamente expor o que foi interpretado na circunvisão num enunciado determinante. Toda visão pre [das Da]-predicativa do que esta À MÃO já é em si mesma um em compreendendo e em interpretando. Mas será que a falta desse “como” não constituirá a natureza pura e simples de uma pura percepção? O ver dessa visão já é sempre um compreender e um interpretar. Já traz em si o expresso das remissões referenciais (do ser-para) constitutivas da totalidade conjuntural, a partir da qual se entende tudo que simplesmente vem ao encontro. A articulação do que foi compreendido na aproximação interpretativa dos entes, na chave de “algo como algo”, antecede todo e qualquer enunciado temático a seu respeito. O “como” não ocorre pela primeira vez no enunciado. Nele, o como apenas se pronuncia, o que, no entanto, só é possível por já se oferecer como o que pode se pronunciar. Que a simples visão falte um enunciado expresso, isso não significa que ela não disponha de nenhuma interpretação articuladora e, por conseguinte, da estrutura-como. A simples visão das coisas mais próximas nos afazeres já traz consigo tão originariamente a estrutura da interpretação que toda e qualquer apreensão, por assim dizer livre da estrutura-como, necessita de uma certa transposição. Ter simplesmente diante de si uma coisa e somente fixá-la como um não mais compreender. Esse apreender livre da estrutura-como priva-se de qualquer visão meramente compreensiva. Deriva-se dela e não é mais originária. O não pronunciamento ôntico do “como” não deve levar a desconsiderá-lo enquanto constituição existencial a priori do compreender. STMSC: §32

Se, porém, todo e qualquer perceber de um instrumento À MÃO já é compreender e interpretar, e assim permite, na circunvisão, o encontro de algo como algo, não será que isso significa que primeiro se faz a experiência de algo simplesmente dado para depois apreendê-lo como porta ou como casa? Isso seria um mal-entendido a respeito da função específica de abertura da interpretação. Ela não lança, por assim dizer, um “significado” sobre a nudez de algo simplesmente dado, nem cola sobre ele um valor. O que acontece é que, no que vem ao encontro dentro do mundo como tal, o compreender de mundo já abriu uma conjuntura que a interpretação expõe. STMSC: §32

Tudo o que está À MÃO sempre já se compreende a partir da totalidade conjuntural. Esta, no entanto, não precisa ser apreendida explicitamente numa interpretação temática. Mesmo quando percorrida por uma interpretação, ela se recolhe novamente numa compreensão implícita. E é justamente nesse modo que ela se torna fundamento essencial da interpretação cotidiana da circunvisão. Essa sempre se funda numa posição prévia. Ao apropriar-se da compreensão, a interpretação se move em sendo compreensivamente para uma totalidade conjuntural já compreendida. A apropriação do compreendido, embora ainda velado, sempre cumpre o desvelamento guiada por uma visão que fixa o parâmetro na perspectiva do qual o compreendido há de ser interpretado. A interpretação funda-se sempre numa visão prévia , que “recorta” o que foi assumido na posição prévia, segundo uma possibilidade determinada de interpretação. O compreendido, estabelecido numa posição prévia e encarado numa “visão previdente” (vorsichtig) torna-se conceito através da interpretação. A interpretação pode haurir conceitos pertencentes ao ente a ser interpretado a partir dele mesmo, ou então forçar conceitos contra os quais o ente pode resistir em seu modo de ser. Como quer que seja, a interpretação sempre já se decidiu, definitiva ou provisoriamente, por uma determinada conceituação, pois está fundada numa concepção prévia. STMSC: §32

3. Enunciado significa ainda comunicação, declaração. Enquanto comunicação, o enunciado está diretamente relacionado com os dois significados anteriores. Ele e um deixar ver conjuntamente o que se mostra a partir de si mesmo e por si mesmo no modo de um determinar-se. O deixar ver conjuntamente comunica e partilha com os outros o ente mostrado a partir de si mesmo e por si mesmo em sua determinação. O que se “comunica e partilha com” e o ser-para o que se mostra por si mesmo e a partir de si mesmo numa visão comum. Deve-se preservar este ser como ser-no-mundo, a saber, no mundo em que e a partir do qual o que aí se mostra por e a partir de si mesmo vem ao encontro. A necessidade de pronunciar-se pertence ao enunciado, entendido como comunicação ou um partilhar-com existencial. Enquanto comunicado, o que se enuncia pode ser compartilhado ou não entre os que enunciam e os outros, sem que necessitem ter próximo À MÃO e a visão o ente que se mostra e determina. O que se enuncia pode ser “passado adiante”. A periferia do que se compartilha entre um e outro numa visão se amplia. Ao mesmo tempo, porém, o que se mostra a partir de si mesmo e por si mesmo pode, nesse passar adiante, novamente voltar a velar-se, embora o próprio saber e conhecer, formados nesse ouvir dizer, sempre vise ao próprio ente e não afirme um “sentido” com valor de circulação. Mesmo o ouvir dizer e um ser-no-mundo e um ser para o que se ouviu. STMSC: §33

O ente sustentado na posição prévia, por exemplo, o martelo, numa primeira aproximação, está À MÃO como um instrumento. Se ele se torna “objeto” de um enunciado, já se realiza previamente com o enunciado proposicional uma mudança na posição prévia. Aquilo com que lidava manualmente o fazer, isto é, a execução, torna-se aquilo “sobre” o que o enunciado mostra. A visão prévia visa a algo simplesmente dado no que está À MÃO. Através da visualização e para ela o manual vela-se como manual. Dentro deste descobrir do ser simplesmente dado que encobre a manualidade, determina-se o encontro de tudo que é simplesmente dado, em seu modo de dar-se. Só agora é que se abre o acesso às propriedades. O conteúdo com que o enunciado determina algo simplesmente dado é haurido do ser simplesmente dado como tal. A estrutura-”como” da interpretação modificou-se. O “como” já não basta para cumprir a função de apropriar-se do que se compreende numa totalidade conjuntural. No tocante às suas possibilidades de articular relações de remissão, o “como” separou-se da significância constitutiva do mundo circundante. O “como” é forçado a revelar-se com o ser simplesmente dado. Afunda-se na estrutura de mera visão que determina o simplesmente dado. A vantagem do enunciado consiste nesse nivelamento que transforma o “como” originário da interpretação, guiada pela circunvisão, no “como” de uma determinação do que é simplesmente dado. Somente assim o enunciado adquire a possibilidade de pura visualização demonstrativa. STMSC: §33

A linguagem é o pronunciamento da fala. Como um ente intramundano, essa totalidade de palavras em que e como tal a fala possui seu próprio ser “mundano” pode ser encontrada à maneira de algo À MÃO. Nesse caso, a linguagem pode ser despedaçada em coisas-palavras simplesmente dadas. Existencialmente, a fala é linguagem porque aquele ente, cuja abertura se articula em significações, possui CH: para a linguagem, estar-lançado é essencial o modo de ser-no-mundo, de ser lançado e remetido a um “mundo”. STMSC: §34

Somente numa atitude artificial e complexa é que se pode “escutar” um “ruído puro”. Que escutamos primeiramente motocicletas e carros, isso constitui, porém, um testemunho fenomenal de que a presença [Dasein], enquanto ser-no-mundo, já sempre se detém junto ao que está À MÃO dentro do mundo e não junto a “sensações”, cujo turbilhão tivesse de ser primeiro formado para propiciar o trampolim de onde o sujeito pudesse saltar para finalmente alcançar o “mundo”. Sendo, em sua essência, compreensiva, a presença [Dasein] está, desde o início, junto ao que ela compreende. STMSC: §34

A investigação filosófica deve decidir-se por perguntar pelo modo de ser da linguagem. Será a linguagem um instrumento À MÃO dentro do mundo? Terá ela o modo de ser da presença [Dasein], ou nem uma coisa e nem outra? De que modo é o ser da linguagem para que ela possa estar “morta”? O que diz ontologicamente que uma língua nasce e morre? Dispomos de uma ciência da linguagem, a linguística, e, no entanto, o ser daquele ente por ela tematizado é obscuro; até mesmo o horizonte para um questionamento e uma investigação se acha velado. Será um acaso que os significados sejam, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, “mundanos”, prelineados pela significância do mundo e até mesmo, em sua maioria, “espaciais”? Ou será esse “estado de coisas” necessário do ponto de vista ontológico-existencial? Se assim for, por quê? A investigação filosófica deve renunciar a uma “filosofia da linguagem” a fim de poder questionar e investigar “as coisas elas mesmas” e assim colocar-se em condições de trazer uma problemática conceituai clara. STMSC: §34

O ser-no-mundo está, numa primeira aproximação, empenhado no mundo das ocupações. A ocupação é dirigida pela circunvisão que descobre o que está À MÃO e o preserva nesse estado de descoberta. A circunvisão confere a todos os desempenhos e a todos os dispositivos a pista de procedimento, os meios de execução, a ocasião adequada e o momento apropriado. A ocupação pode descansar, no sentido de interromper o desempenho com o repouso ou de finalizá-lo. No descanso, a ocupação não desaparece. A circunvisão é que, sem dúvida, se libera por não mais se achar comprometida com o mundo do trabalho. No repouso, a cura se recolhe à liberdade da circunvisão. A descoberta do mundo do trabalho, própria da circunvisão, tem o caráter ontológico do dis-tanciar. A circunvisão liberada já não tem mais nada À MÃO, de cuja proximidade tivesse de se ocupar. Sendo essencialmente em dis-tanciando, cria para si novas possibilidades de distanciar; isto significa, tende e se movimenta partindo do que se acha mais proximamente À MÃO, rumo ao mundo distante e estranho. Repousando e permanecendo, a cura transforma-se em ocupação das possibilidades de ver o “mundo” somente em seus aspectos. A presença [Dasein] busca o distante somente para torná-lo, em seu aspecto, próximo de si. A presença [Dasein] só se deixa arrastar pelo aspecto do mundo. Trata-se de um modo de ser onde ela se ocupa em tornar-se desprendida de si mesma enquanto ser-no-mundo, desprendida do ser junto ao que imediatamente está À MÃO na cotidianidade. STMSC: §36

A presença [Dasein] existe faticamente. O que se questiona é a unidade ontológica de existencialidade e facticidade, a copertinência essencial destas com relação àquela. A presença [Dasein], em razão da disposição a que pertence de modo essencial, possui um modo de ser em que ela é trazida para diante de si mesma e se abre para si em seu estar-lançado. O estar-lançado, porém, é o modo de ser de um ente que sempre é ele mesmo as suas possibilidades e isso de tal maneira que ele se compreende nessas possibilidades e a partir delas (projeta-se para elas). O ser-no-mundo, ao qual pertencem, de maneira igualmente originária, tanto o ser junto ao que está À MÃO quanto o ser-com os outros, é sempre em virtude de si mesmo. Todavia, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, o si-mesmo é o impropriamente si-mesmo. O ser-no-mundo já está sempre em decadência. Pode-se, portanto, determinar a cotidianidade mediana da presença [Dasein] como ser-no-mundo aberto na decadência que, lançado, projeta-se e que, em seu ser junto ao “mundo” e em seu ser-com os outros, está em jogo o seu poder-ser mais próprio. STMSC: §39

Para se compreender o que se quer dizer com fuga decadente de si mesma, inerente à presença [Dasein], é preciso lembrar que a constituição fundamental da presença [Dasein] é ser-no-mundo. Aquilo com que a angústia se angustia é o ser-no-mundo como tal. Como se distingue fenomenalmente o com quê a angústia se angustia daquilo que o medo teme? O com quê da angústia não é, de modo algum, um ente intramundano. Por isso, com ele não se pode estabelecer nenhuma conjuntura essencial. A ameaça não possui o caráter de algo prejudicial que diria respeito ao ameaçado na perspectiva determinada de um específico poder-ser fático. O com quê da angústia é inteiramente indeterminado. Essa indeterminação não apenas deixa faticamente indefinido que ente intramundano “ameaça” como também diz que o ente intramundano é “irrelevante”. Nada do que é simplesmente dado ou que se acha À MÃO no interior do mundo serve para a angústia com ele angustiar-se. A totalidade conjuntural do manual e do ser simplesmente dado que se descobre no mundo não tem nenhuma importância, ela se perde em si. O mundo possui o caráter de total insignificância. Na angústia, não se dá o encontro disso ou daquilo com o qual se pudesse estabelecer uma conjuntura ameaçadora. STMSC: §40

O que se estreita não é isso ou aquilo, também não é a totalidade do que é simplesmente dado no sentido de uma soma, e sim a possibilidade de tudo que está À MÃO, isto é, do próprio mundo. Quando a angústia passa, diz-se costumeiramente: “propriamente não foi nada”. De fato, essa fala refere-se onticamente ao que foi. A fala cotidiana empenha-se em ocupar e discutir o que está À MÃO. O com quê a angústia se angustia nada tem a ver com o manual intramundano. Mesmo esse nada ter a ver, o único que a fala cotidiana da circunvisão é capaz de compreender, não é um nada completo. O nada da manualidade funda-se em “algo” CH: portanto, aqui nada há que ver com “niilismo” mais originário, isto é, a no mundo. Do ponto de vista ontológico, porém, ele pertence essencialmente ao ser da presença [Dasein] como ser-no-mundo. Se, portanto, o nada, ou seja, o mundo como tal, se apresenta como aquilo com que a angústia se angustia, isso significa que a angústia se angustia com o ser-no-mundo ele mesmo CH: enquanto determinante do ser como tal; o que é absolutamente inesperado e insuportável – estranho. STMSC: §40

A angústia não é somente angústia com… mas, enquanto disposição, é também angústia por… O por quê a angústia se angustia não é um modo determinado de ser e de possibilidade da presença [Dasein]. A própria ameaça é indeterminada, não chegando, portanto, a penetrar como ameaça nesse ou naquele poder-ser faticamente concreto. A angústia se angustia pelo próprio ser-no-mundo. Na angústia perde-se o que se encontra À MÃO no mundo circundante, ou seja, o ente intramundano em geral. O “mundo” não é mais capaz de oferecer alguma coisa, nem sequer a co-presença [Dasein] dos outros. A angústia retira, pois, da presença [Dasein] a possibilidade de, na decadência, compreender a si mesma a partir do “mundo” e da interpretação pública. Ela remete a presença [Dasein] para aquilo por que a angústia se angustia, para o seu próprio poder-ser-no-mundo. A angústia singulariza a presença [Dasein] em seu próprio ser-no-mundo que, em compreendendo, se projeta essencialmente para possibilidades. Naquilo por que se angustia, a angústia abre a presença [Dasein] como ser-possível e, na verdade, como aquilo que, somente a partir de si mesmo, pode singularizar-se na singularidade. STMSC: §40

A interpretação do compreender mostrou, ao mesmo tempo, que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, ela já se colocou na compreensão de “mundo”, segundo o modo de ser da decadência. Mesmo onde não se trata somente de uma experiência ôntica e sim de uma compreensão ontológica, a interpretação de ser orienta-se, de início, pelo ser dos entes intramundanos CH: aqui deve-se separar: physis  , idea  , ousia  , substantia  , res, objetividade, ser simplesmente dado. Com isso, salta-se por cima do ser do que, imediatamente, está À MÃO, concebendo-se primordialmente o ente como um conjunto de coisas simplesmente dadas (res). O ser recebe o sentido de realidade CH: “realidade” como “atividade” e realitas   como “coisidade”; posição intermediária do conceito kantiano de “realidade objetiva”. A determinação fundamental do ser torna-se substancialidade. De acordo com este deslocamento da compreensão de ser, a compreensão ontológica da presença [Dasein] volta-se para o horizonte desse conceito de ser. A presença [Dasein], assim como qualquer outro ente, é um real simplesmente dado. Assim, o ser em geral adquire o sentido de realidade. Em consequência, o conceito de realidade assume uma primazia toda especial na problemática ontológica. Tal primazia obstrui o caminho para uma analítica da presença [Dasein] genuinamente existencial, turvando inclusive a visualização do ser dos entes intramundanos imediatamente À MÃO e forçando, por fim, a problemática de ser a tomar uma direção desviante. Os demais modos de ser determinam-se então de maneira negativa e privativa com referência à realidade. STMSC: §43

Realidade como título ontológico remete ao ente intramundano. Se esse título servir para designar esse modo de ser, a manualidade e o ser simplesmente dado mostram-se como modos da realidade. Se, porém, essa palavra mantiver-se no significado legado a pela tradição CH: hodierno, ela significa o ser no sentido de coisas simplesmente dadas. Contudo, nem todo ser simplesmente dado é coisa simplesmente dada. A “natureza” que nos “envolve” é, na verdade, um ente intramundano que, no entanto, não apresenta o modo de ser do que está À MÃO e nem de algo simplesmente dado no modo de “coisidade da natureza”. Qualquer que seja a maneira de interpretar esse ser da “natureza”, todos os modos de ser dos entes intramundanos fundam-se, ontologicamente, na mundanidade do mundo e, assim, no fenômeno do ser-no-mundo. Disso resulta a seguinte compreensão: realidade não possui primazia no âmbito dos modos de ser dos entes intramundanos, assim como esse modo de ser não pode ser caracterizado adequadamente, do ponto de vista ontológico, como mundo ou presença [Dasein]. STMSC: §43

O ser junto ao ente intramundano, a ocupação, é descobridor. A fala, porém, pertence essencialmente à abertura da presença [Dasein]. A presença [Dasein] se pronuncia; se – enquanto ser-descobridor para o ente. É no enunciado que ela se pronuncia como tal sobre o ente descoberto. O enunciado comunica o ente no modo de sua descoberta. Na percepção, a presença [Dasein] que percebe essa comunicação traz a si mesma para o ser-descobridor com a referência ao ente discutido. Naquilo sobre o que o enunciado se pronuncia está contida a descoberta dos entes. A descoberta preserva-se no que se pronuncia. O que se pronuncia torna-se, por assim dizer, um manual intramundano que pode ser retomado e propagado. Por preservar a descoberta, o que se pronuncia e assim se acha À MÃO traz, em si mesmo, uma remissão ao ente sobre o qual todo enunciado se pronuncia. Descoberta é sempre descoberta de… Mesmo na repetição, a presença [Dasein] que repete chega a um ser para o próprio ente discutido. Contudo, ela é e se acredita dispensada de realizar originariamente o descobrimento. STMSC: §44

O “finado” que, em oposição ao morto, foi retirado do meio dos que “ficaram para trás” é objeto de “ocupação” nos funerais, no enterro, nas cerimônias e cultos dos mortos. E isso porque, em seu modo de ser, ele é “ainda mais” do que um instrumento simplesmente dado no mundo circundante e passível de ocupação. Junto com ele, na homenagem do culto, os que ficaram para trás são e estão com ele, no modo de uma preocupação reverencial. Assim, a relação ontológica com o morto também não deve ser apreendida como uma ocupação do que está À MÃO. STMSC: §47

Há na presença [Dasein] uma “não-totalidade” contínua e ineliminável, que encontra seu fim com a morte. Mas será que se deve interpretar como pendente o fato fenomenal de que esse ainda-não “pertence” à presença [Dasein] enquanto ela é? A que ente nos referimos quando falamos de pendente? Essa expressão significa aquilo que, sem dúvida, “pertence” a um ente, mas ainda falta. Estar pendente e faltar são co-pertinentes. Estar pendente, por exemplo, diz o resto de uma dívida a ser saldada. O que está pendente ainda não é disponível. Liquidar a “dívida” no sentido de suprimir o que está pendente significa “entrar no haver”, isto é, amortizar sucessivamente o resto, com o que se preenche, por assim dizer, o vazio do ainda-não até que se “ajunte” a soma devida. Estar pendente significa, portanto: o que é co-pertinente ainda não está ajuntado. Do ponto de vista ontológico, as partes a serem ajuntadas nesse caso não estão À MÃO, embora possuam o mesmo modo de ser das que já se acham À MÃO que, por sua vez, não se modificam com a entrada do resto. O remanescente à parte do conjunto é liquidado, ajuntando-se, sucessivamente, as partes. O ente em que alguma coisa ainda está pendente tem o modo de ser do que está À MÃO. Chamaremos de soma a junção ou a disjunção nela fundada. STMSC: §48

Essa disjunção que pertence a um modo de junção, a falta enquanto o que está pendente, não proporciona, de forma alguma, a determinação ontológica do ainda-não que, como morte possível, pertence à presença [Dasein]. Esse ente não possui, absolutamente, o modo de ser do que está À MÃO dentro do mundo. A junção daquilo que a presença [Dasein] é, “em seu percurso” até completar o “seu curso”, não se constitui como um ajuntamento “ininterrupto” de pedaços que, de algum modo e em algum lugar, estariam À MÃO por si mesmos. Ao preencher o seu ainda-não, a presença [Dasein] não é o que se juntou assim como ela também não é quando ela não é mais. A presença [Dasein] sempre existe no modo em que o seu ainda-não lhe pertence. Mas não existirá algum ente que, sendo como é, também pode ter um ainda-não sem que tenha de possuir o modo de ser da presença [Dasein]? STMSC: §48

O fruto não maduro, por exemplo, encaminha-se para o seu amadurecimento. No amadurecimento, aquilo que ele ainda não é, de modo algum, se oferece como algo que se lhe ajunta, no sentido de algo que ainda-não é simplesmente dado. O próprio fruto amadurece. O amadurecimento e o amadurecer caracterizam-lhe o ser enquanto fruto. Não fosse o fruto um ente que chegasse por si mesmo ao próprio amadurecimento, nada que se lhe acrescentasse de fora poderia eliminar-lhe o não amadurecimento. O ainda-não do não maduro não significa uma coisa exterior a qual, indiferentemente ao fruto, poderia ser simplesmente dada nele ou com ele. O ainda-não indica o próprio fruto em seu modo específico de ser. Enquanto algo À MÃO, a soma incompleta é “indiferente” ao resto que falta e não está À MÃO. Em sentido rigoroso, a soma não pode ser nem indiferente nem não indiferente. Em seu amadurecimento, o fruto é não apenas não indiferente em relação à maturidade entendida como o outro de si mesmo, mas o fruto em amadurecimento é o não amadurecimento. O ainda-não já está incluído em seu próprio ser, não como uma determinação arbitrária e sim como um constitutivo. Analogamente, a presença [Dasein], enquanto ela é, já é seu ainda-não entre todo e soma, holon   e pan  , totum e compositum, Com isso, sem dúvida, ainda não se reconheceu e nem se conceituou a sistemática das variações categoriais, encerradas nessa distinção.]. STMSC: §48

Mas o findar, enquanto acabar, não inclui em si a completude. Ao contrário, aquilo que se quer completar deve atingir seu acabamento possível. Completude é um modo derivado de “acabamento”. Este só é possível como determinação de um ser simplesmente dado ou de algo À MÃO. STMSC: §48

No sentido de desaparecer, o findar ainda pode modificar-se segundo o modo de ser de um ente. A chuva findou, ou seja, desapareceu. O pão findou, ou seja, foi consumido, não é mais disponível como algo À MÃO. STMSC: §48

Enquanto fim da presença [Dasein], a morte não se deixa caracterizar adequadamente por nenhum desses modos de findar. Caso se compreendesse o morrer como estar-no-fim, no sentido de um findar nos modos discutidos, supor-se-ia a presença [Dasein] como ser simplesmente dado ou como algo À MÃO. Na morte, a presença [Dasein] nem se completa, nem simplesmente desaparece, nem acaba e nem pode estar disponível À MÃO. STMSC: §48

Para a presença [Dasein], enquanto ser-no-mundo, muitas coisas podem ser impendentes. Em si mesmo, impender não é o que caracteriza propriamente a morte. Ao contrário, também essa interpretação poderia supor que a morte devesse ser compreendida no sentido de um acontecimento impendente que vem ao encontro dentro do mundo. Impendente pode ser, por exemplo, uma tempestade, a reforma da casa, a chegada de um amigo, isto é, entes simplesmente dados, À MÃO ou ainda co-presentes. A morte impendente não possui esse tipo de ser. STMSC: §50

Cabe caracterizar numa primeira aproximação o ser-para-a-morte como ser para uma possibilidade e, na verdade, para uma possibilidade privilegiada da própria presença [Dasein]. Ser para uma possibilidade, ou seja, para algo possível, pode significar: empenhar-se por algo possível, no sentido de ocupar-se de sua realização. No campo do que é simplesmente dado e do que está À MÃO, tais possibilidades vêm constantemente ao encontro: o que é passível de alcance, de controle, de acesso, etc. Enquanto ocupação, o empenhar-se por algo possível tem a tendência de anular a possibilidade do que é possível, tornando-o disponível. A realização que se ocupa do instrumento À MÃO (dispor, repor, compor, transpor, etc.) é, no entanto, apenas relativa, uma vez que o realizado ainda possui o caráter ontológico da conjuntura. Embora realizado, é real como algo possível para…, caracterizado por um ser-para. A presente análise deve esclarecer apenas como o em-penhar-se da ocupação comporta-se frente ao possível: não através de uma consideração temática e teórica do possível como possível e nem mesmo no tocante à sua possibilidade como tal, mas sim no modo em que ele, na circunvisão desvia o possível na direção de um possivelmente para-quê. STMSC: §53

Mas será que a interpretação ontológica deve, na verdade, concordar com a interpretação vulgar? Será que esta não é, em princípio, atingida por uma suspeita ontológica? Se, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] se compreende a partir das ocupações e interpreta todos os seus comportamentos como ocupação, então não haverá de interpretar justamente o modo de seu ser como decadência e encobrimento, modo que, no apelo, ela pretende recuperar da perdição nos afazeres do impessoal? A cotidianidade toma a presença [Dasein] como algo À MÃO de que se ocupa, ou seja, que pode ser gerenciado e calculado. A “vida” é um “negócio”, independentemente se ela cobre ou não os seus custos. STMSC: §59

Com a decisão conquistamos, agora, a verdade mais originária da presença [Dasein] porque a mais própria. A abertura do pre [das Da] abre, cada vez de modo igualmente originário, a totalidade do ser-no-mundo, ou seja, o mundo, o ser-em e o si-mesmo que esse ente é enquanto “eu sou”. Com a abertura do mundo, sempre já se descobriram entes intramundanos. A descoberta do que está À MÃO e do que é simplesmente dado funda-se na abertura de mundo; pois a liberação do todo conjuntural de qualquer manual exige um pre [das Da]-compreender da significância. Compreendendo-a, a presença [Dasein] ocupada numa circunvisão remete para o que vem ao encontro da mão. O compreender da significância como abertura de cada mundo funda-se, assim, no compreender em virtude de… a que está remetida toda descoberta da totalidade conjuntural. O abrigo, a manutenção, o abandono de suas funções são possibilidades constantes e imediatas da presença [Dasein] para as quais esse ente, em que está em jogo seu ser, sempre já se projetou. Lançada em seu “pre [das Da]”, a presença [Dasein] já está sempre faticamente remetida a um “mundo” determinado, o seu. Junto com ele, os projetos são faticamente conduzidos da perdição nas ocupações para o impessoal. Essa perdição pode ser interpelada pelo próprio de cada presença [Dasein], e a interpelação pode ser compreendida no modo da decisão. Essa abertura própria, porém, modifica, de forma igualmente originária, a descoberta do “mundo” e a abertura da co-presença [Dasein] dos outros nela fundada. Quanto a seu “conteúdo”, o “mundo” À MÃO não se torna um outro mundo, o círculo dos outros não se modifica, embora, agora, o ser-para o que está À MÃO, no modo de compreender e ocupar-se, e o ser-com da preocupação com os outros sejam determinados a partir de seu poder-ser mais próprio. STMSC: §60

A decisão não desprende a presença [Dasein], enquanto ser-si-mesmo mais próprio, de seu mundo, ela não a isola num eu solto no ar. E como poderia, se a presença [Dasein], no sentido de abertura própria, nada mais é propriamente do que ser-no-mundo? A decisão traz o si-mesmo justamente para o ser que sempre se ocupa do que está À MÃO e o empurra para o ser-com da preocupação com os outros. STMSC: §60

Rigorosamente, sentido significa a perspectiva do projeto primordial de um compreender ser. Com o ser deste ente que ele mesmo é, o ser-no-mundo compreende o ser dos entes intramundanos, de maneira igualmente originária, embora não temática e até indiferenciada, em seus modos primários de existência e realidade. Toda experiência ôntica de um ente, tanto a avaliação do que está À MÃO a numa circunvisão como o conhecimento científico de algo simplesmente dado, está sempre fundada em projetos mais ou menos transparentes do ser do respectivo ente. Mas estes projetos guardam em si uma perspectiva da qual se alimenta, por assim dizer, a compreensão de ser. STMSC: §65

A decisão antecipadora abre de tal maneira cada situação do pre [das Da] que, agindo, a existência se ocupa numa circunvisão do que, faticamente, está À MÃO no mundo circundante. O ser que se abre junto ao que, na situação, está À MÃO, isto é, o deixar vir ao encontro na ação do que é vigente no mundo circundante, só é possível numa atualização desse ente. A decisão só pode ser o que é como a atualidade de uma atualização, ou seja, o deixar vir ao encontro, sem deturpações, daquilo que ela capta na ação. STMSC: §65

Em contrapartida, falta ainda uma indicação dessa espécie para o terceiro momento constitutivo da cura: o ser-decadente-junto-a… Isso não deve significar que a decadência não se fundaria também na temporalidade. Indica, sobretudo, que a atualização, na qual se funda primariamente a decadência das ocupações com o que está À MÃO e o ser simplesmente dado, também está incluída nos modos da temporalidade originária de porvir e vigor de ter sido. Decidida, a presença [Dasein] se recupera justamente da decadência a fim de ser e estar tanto mais propriamente “por aí” no instante da situação, que se abriu. STMSC: §65

Só a elaboração da temporalidade da presença [Dasein] enquanto cotidianidade, historicidade e intratemporalidade proporciona a visão plena das implicações de uma ontologia originária da presença [Dasein]. Enquanto ser-no-mundo, a presença [Dasein] existe, faticamente, com e junto a entes que vêm ao encontro dentro do mundo. É, pois, no horizonte do ser dos entes não dotados do caráter de presença [Dasein], ou seja, do que meramente “subsiste”, nem mesmo sendo dado ou À MÃO, que o ser da presença [Dasein] recebe sua transparência ontológica abrangente. A interpretação das derivações do ser de tudo aquilo do qual dizemos que é necessita, porém, de uma ideia suficientemente clara do ser em geral. Enquanto não se conquistar esta ideia, a análise temporal   da presença [Dasein] a ser retomada permanecerá incompleta e crivada de obscuridades, para não se mencionar as dificuldades referentes ao conteúdo. A análise existencial e temporal da presença [Dasein] exige, por sua vez, uma nova retomada, no âmbito da discussão fundamental do conceito de ser. STMSC: §66

Para que os fenômenos obtidos na análise preparatória possam ser reconduzidos à visão fenomenológica, basta uma indicação a respeito dos estágios percorridos. A delimitação da cura resultou da análise da abertura constitutiva do ser do “pre [das Da]”. O esclarecimento deste fenômeno trouxe consigo a interpretação provisória da constituição fundamental da presença [Dasein], a saber, o ser-no-mundo. A investigação teve início com esta caracterização a fim de assegurar, desde o começo, um horizonte fenomenal suficiente frente às determinações ontológicas prévias da presença [Dasein], em sua maior parte inadequadas e não expressas. Ser-no-mundo foi caracterizado, numa primeira aproximação, na perspectiva do fenômeno do mundo. E, na verdade, a explicação partiu da caracterização ôntico-ontológica do que está À MÃO e do que é simplesmente dado “em” um mundo circundante para, então, destacando a intramundanidade, nela tornar visível o fenômeno da mundanidade. A estrutura da mundanidade, a significância, demonstrou-se, no entanto, conectada com o para onde o compreender, que pertence essencialmente à abertura, projeta-se, isto é, com o poder-ser da presença [Dasein], em virtude da qual ela existe. STMSC: §67

Enquanto existir, compreender é primariamente porvindouro, no poder-ser de qualquer projeto. Contudo, ele não se temporalizaria se não fosse temporal, isto é, se não fosse determinado, de modo igualmente originário, pelo vigor de ter sido e pela atualidade. Já esclarecemos, embora de modo grosseiro, que esta última ekstase   também constitui o compreender impróprio. A ocupação cotidiana compreende-se a partir do poder-ser que lhe vem ao encontro num possível sucesso ou insucesso, relativo àquilo de que se ocupa. Ao porvir impróprio, ao aguardar, corresponde um ser próprio junto àquilo de que se ocupa. O modo ekstático desta atualidade que vem de encontro desvela-se quando se compara esta ekstase com o modo da temporalidade própria. Pertence ao antecipar da decisão uma atualidade segundo a qual a decisão abre uma situação. Na decisão não apenas se recupera a atualidade da dispersão nas ocupações imediatas como ela se mantém atrelada ao porvir e ao vigor de ter sido. Chamamos de instante a atualidade própria, isto é, a atualidade mantida na temporalidade própria. Este termo deve ser compreendido em sentido ativo como ekstase. Ele remete a retração da presença [Dasein] decidida, mas mantida na decisão, ao que de possibilidades e circunstâncias passíveis de ocupação vem ao encontro na situação. Fundamentalmente, o fenômeno do instante não pode ser esclarecido pelo agora. O agora é um fenômeno temporal que pertence ao tempo da intratemporalidade: o agora “em que” algo nasce, perece ou simplesmente se dá. “No instante”, nada pode ocorrer. Ao contrário, enquanto atualidade em sentido próprio, é o instante que deixa vir ao encontro o que, estando À MÃO ou sendo simplesmente dado, pode ser e estar “em um tempo”. STMSC: §68

Começaremos a análise com a demonstração da temporalidade do medo. Caracterizou-se o medo como disposição imprópria. Em que medida o vigor de ter sido é o sentido existencial que o possibilita? Que modo desta ekstase caracteriza a temporalidade específica do medo? Medo é ter medo do que ameaça. Trata-se do que se aproxima prejudicialmente, como já descrito, do poder-ser fático da presença [Dasein], no âmbito do que está À MÃO e do que é simplesmente dado nas ocupações. No modo da circunvisão cotidiana, o ter medo abre algo que ameaça. Um sujeito meramente espectador nunca poderia descobrir algo assim. Mas não será esta abertura de ter medo de alguma coisa um deixar vir-a-si? Não é correta a determinação do medo como espera de um mal que está vindo (malum futurum  )? Não será o sentido temporal primário do medo tanto o porvir como o vigor de ter sido? Indiscutivelmente, o medo não apenas se “relaciona” com o que “está por vir”, entendido como o que só advém “no tempo”, mas também esse relacionar-se, em si mesmo, já está por vir, no sentido do tempo originário. Sem dúvida, também pertence à constituição existencial e temporal do medo um aguardar. Mas, de início, isso diz apenas que a temporalidade do medo é imprópria. Será que ter medo de alguma coisa é apenas esperar uma ameaça em advento? Esperar uma ameaça em advento ainda não precisa ser medo, e é tão pouco medo que lhe falta justamente o caráter do humor específico do medo. Este reside em que o aguardar próprio ao medo deixa e faz com que aquilo que ameaça volte para o poder-ser fático, empenhado em ocupações. Só no aguardar é que o que ameaça pode estar de volta para o ente que eu sou e, dessa forma, a presença [Dasein] só pode ser ameaçada caso já se tenha aberto, ekstaticamente, o para onde volta. O caráter de humor e afecção do medo reside em que o aguardar medroso tem medo “de si mesmo”, isto é, em que todo ter medo de alguma coisa é um ter medo por… O seu sentido existencial e temporal constitui-se por um esquecer-se de si: qual seja, extrair-se, de forma conturbada, do poder-ser fático em sentido próprio; é nesse esquecer que o ser-no-mundo ameaçado se ocupa do que está À MÃO. É com razão que Aristóteles determina o medo como lype tis he tarache, aflição e conturbação. A aflição pressiona a presença [Dasein] no sentido de voltar para o seu estar-lançado mas de tal maneira que justamente este estar-lançado se fecha. Já a conturbação funda-se num esquecer. O extrair-se no esquecimento de um poder-ser fático e decidido baseia-se nas possibilidades de salvação e escape previamente descobertas numa circunvisão. Porque se esquece de si e não apreendendo nenhuma possibilidade determinada, a ocupação que se teme salta do mais próximo para o mais próximo. Com isso, todas as possibilidades “possíveis” e impossíveis se oferecem. Aquele que tem medo não se detém em nenhuma delas; o “mundo circundante” não desaparece, ao contrário, lhe vem ao encontro justamente nesse não-mais-se-reconhecer no mundo circundante. Essa atualização conturbada do que é melhor por ser o mais próximo pertence ao esquecimento de si, inerente ao medo. É sabido que o habitante de uma casa em chamas, por exemplo, frequentemente, quer “salvar” as coisas mais indiferentes por estarem mais imediatamente À MÃO. A atualização esquecida de si de uma confusão de possibilidades soltas possibilita a conturbação do medo que, como tal, lhe constitui o caráter específico de humor. O esquecimento inerente à conturbação também modifica o aguardar, caracterizando-o como um aguardar aflito e conturbado por oposição a uma pura espera. STMSC: §68

Como a temporalidade da angústia se comporta frente à temporalidade do medo? Chamamos este fenômeno de disposição fundamental. Ela coloca a presença [Dasein] diante de seu estar-lançado mais próprio, desvelando a estranheza do ser-no-mundo cotidiano e familiar. Assim como o medo, a angústia também se determina formalmente por um com quê e um pelo quê a angústia se angustia. A análise mostrou, no entanto, que estes dois fenômenos coincidem. Isto não significa, porém, que os caracteres estruturais do com quê e pelo quê se confundem no sentido de que a angústia não se angustiaria nem com e nem por alguma coisa. A coincidência entre o com quê e o pelo quê deve significar que é um e o mesmo o ente que os realiza, ou seja, a presença [Dasein]. Especificamente, o com quê a angústia se angustia vem ao encontro não como algo determinado numa ocupação. A ameaça não provém do que está À MÃO e do que é simplesmente dado mas, sobretudo e justamente, de que tudo que está À MÃO e é simplesmente dado já não “diz” absolutamente nada. Não estabelece mais nenhuma conjuntura com o ente do mundo circundante. O mundo, no contexto do qual eu existo, afundou na insignificância, e o mundo que, dessa forma, se abre só é capaz de liberar entes sem conjuntura. O nada do mundo, com o que a angústia se angustia, não significa que, na angústia, se faça a experiência de uma ausência de seres simplesmente dados dentro do mundo. É preciso que eles venham ao encontro para que não estabeleçam nenhuma conjuntura e possam, assim, mostrar-se numa impiedade vazia. Isso significa, porém, que o aguardar da ocupação não encontra mais nada a partir do qual possa compreender-se. Ele agarra o nada do mundo; deparando-se com o mundo, porém, o compreender é trazido pela angústia para o ser-no-mundo como tal, de maneira que esse com quê a angústia se angustia é, também, o seu por quê. O angustiar-se com alguma coisa não possui nem o caráter de espera, nem de aguardar. O com quê a angústia se angustia já está “pre [das Da]-sente”, é a própria presença [Dasein]. Será que a angústia não se constitui pelo porvir? Sem dúvida, mas não pelo porvir impróprio do aguardar. STMSC: §68

A curiosidade é uma tendência ontológica privilegiada da presença [Dasein], segundo a qual ela se ocupa de um poder-ver. Tanto o “ver” quanto o conceito de visão não se restringem à percepção propiciada pelos “olhos do corpo”. Em sentido amplo, a percepção deixa vir ao encontro “corporalmente” em si mesmos o que está À MÃO e o ser simplesmente dado, no tocante ao seu aspecto. Esse deixar vir ao encontro funda-se numa atualidade. A atualidade fornece o horizonte ekstático no qual o ente pode ser corporalmente vigente. Entretanto, a curiosidade não atualiza o ser simplesmente dado a fim de, nele demorando-se, compreendê-lo. Ela busca ver apenas para ver e ter visto. Enquanto esta atualização presa em si mesma ao ser simplesmente dado, a curiosidade está numa unidade ekstática com um porvir e um vigor de ter sido correspondentes. A avidez do novo move-se, sem dúvida, em direção ao ainda-não-visto mas de tal maneira que a atualização tenta escapar do aguardar. A curiosidade é toda ela impropriamente porvindoura e isto a tal ponto que ela não aguarda uma possibilidade mas, em sua avidez, só cobiça a possibilidade como algo real. A curiosidade constitui-se de uma atualização que não se sustenta e, apenas atualizando, procura constantemente fugir do aguardar em que a atualização se “mantém” e se resguarda, embora insustentada. A atualidade “surge” da correspondente atualização que lhe pertence, no sentido mencionado de fuga. Mas a atualização em que “surge” a curiosidade se entrega tão pouco à “coisa” que, ao conquistar uma visão, já deixa de ver para ver a próxima. Do ponto de vista ontológico, o que possibilita o não demorar-se, característico da curiosidade, é a atualização que constantemente “surge” no aguardar a uma possibilidade apreendida e determinada. A atualização não “surge” do aguardar no sentido de que ela estaria onticamente desligada do aguardar para a ele se abandonar. O “surgir” é uma modificação ekstática do aguardar, de tal maneira que o aguardar ressurge da atualização. O aguardar abdica, por assim dizer, de si mesmo em não mais deixando que venham a si possibilidades impróprias da ocupação a partir daquilo de que se ocupa, à exceção daquelas que se oferecem para uma atualização que não se sustenta. A modificação ekstática do aguardar mediante a atualização que surge numa atualização que ressurge é a condição temporal e existencial da possibilidade de dispersão. STMSC: §68

Somente partindo do enraizamento da presença [Dasein] na temporalidade é que se pode penetrar na possibilidade existencial do fenômeno, ser-no-mundo, que, no começo da analítica da presença [Dasein], fez-se conhecer como constituição fundamental. Cabia, neste começo, assegurar a unidade inquebrantável da estrutura deste fenômeno. Com isso, ficou em segundo plano a questão sobre o fundamento da unidade possível das articulações desta estrutura. Na intenção de proteger o fenômeno das tendências de fragmentação mais evidentes e, por isso, mais fatais, interpretou-se, com maior detalhamento, o modo mais imediato e cotidiano do ser-no-mundo, a saber, o ser que se ocupa junto ao que está À MÃO dentro do mundo. Agora que a própria cura foi, ontologicamente, delimitada e reconduzida ao seu fundamento existencial, isto é, à temporalidade, a ocupação pode, por sua vez, ser explicitamente concebida a partir da cura e da temporalidade. STMSC: §69

A análise da temporalidade da ocupação se atém, inicialmente, ao modo de atarefar-se, numa circunvisão, com o que está À MÃO. Depois, persegue a possibilidade existencial e temporal de a ocupação, guiada pela circunvisão, modificar-se em descoberta “meramente” visualizadora dos entes intramundanos, no sentido de certas possibilidades da pesquisa científica. A interpretação da temporalidade do ser junto a, tanto o guiado pela circunvisão como o que se ocupa teoricamente do que está À MÃO e é simplesmente dado dentro do mundo, mostra, igualmente, como esta temporalidade já é, preliminarmente, a condição de possibilidade do ser-no-mundo, em que se funda o ser junto aos entes intramundanos. A análise temática da constituição temporal do ser-no-mundo leva às seguintes questões: De que modo algo como mundo é possível? Em que sentido mundo é? O que o mundo transcende e como transcende? Como o ente intramundano “independente” realiza uma “dependência” com o mundo transcendente? A exposição ontológica destas questões ainda não é a sua resposta. Bem ao contrário, ela propicia o esclarecimento prévio necessário das estruturas com as quais se pretende colocar o problema da transcendência. A interpretação existencial e temporal do ser-no-mundo considera, pois, três aspectos: a) a temporalidade da ocupação guiada pela circunvisão; b) o sentido temporal em que a ocupação, guiada pela circunvisão, se modifica em conhecimento teórico do que é simplesmente dado dentro do mundo; c) o problema temporal da transcendência do mundo. STMSC: §69

Como obter a visão capaz de orientar a análise da temporalidade da ocupação? Chamamos de modo de lidar no e com o mundo circundante o ser que se ocupa junto ao “mundo”. Escolhemos como fenômeno exemplar do ser junto a… o uso, o manejo, a produção de manuais e seus modos deficientes e indiferentes, ou seja, o ser junto àquilo que pertence às necessidades cotidianas. A existência própria da presença [Dasein] também se detém nesta ocupação, mesmo quando a ocupação permanece “indiferente” para a presença [Dasein]. O que está À MÃO numa ocupação não causa a ocupação no sentido de que a ocupação só surgiria devido às influências dos entes intramundanos. O ser junto ao que está À MÃO nem se deixa esclarecer onticamente por este, nem, ao inverso, este pode derivar-se daquele. Ocupação, enquanto modo de ser da presença [Dasein], e o ocupado, enquanto o que está À MÃO dentro do mundo, não são, em absoluto, simplesmente dados em conjunto. Não obstante, dá-se entre eles um “nexo”. É daquilo com que se lida, entendido corretamente, que se esclarece o modo próprio de lidar na ocupação. A falta da estrutura fenomenal daquilo com que se lida tem como consequência um desconhecimento da constituição existencial do modo de lidar. A análise dos entes que, de imediato, vêm ao encontro já obtém um ganho essencial quando não se passa por cima do caráter instrumental específico destes entes. Mas, além disso, é preciso compreender que o modo de lidar na ocupação nunca se detém num instrumento singular. O uso e manejo de um determinado instrumento permanecem, como tais, orientados por um nexo instrumental. Quando procuramos, por exemplo, um instrumento “deslocado”, isto não se refere, simples nem primariamente, apenas àquilo que se procura num “ato” isolado. Esta procura já descobre previamente o âmbito do todo instrumental. Todo “trabalhar” e pôr mãos à obra não significa vir de um nada e deparar-se com um instrumento isolado, preliminarmente dado. Ao contrário, significa provir de um mundo de obras já sempre aberto, ao se lançar mão de um instrumento. STMSC: §69

No que concerne àquilo com que se lida, a análise do modo de lidar recebe a indicação de que o ser existente junto a entes de ocupação não se orienta por um instrumento isolado À MÃO, mas sim pelo todo instrumental. Também a reflexão sobre o caráter ontológico privilegiado do instrumento À MÃO, isto é, a conjuntura, obrigou a esta apreensão daquilo com que se lida, inerente a todo modo de lidar. O termo conjuntura é compreendido ontologicamente. Quando se diz: seu conjunto se deixa e se faz junto com alguma coisa, o que se pretende não é constatar onticamente uma conjuntura de fatos mas acenar para o modo de ser do que está À MÃO. O caráter remissivo da conjuntura, do “com… junto…”, indica que, do ponto de vista ontológico, um instrumento isolado é impossível. Sem dúvida, pode acontecer que um único instrumento esteja À MÃO e “falte” o outro. Mas o que isso anuncia é a pertinência deste manual a um outro. O modo de lidar da ocupação só pode deixar que um manual venha ao encontro numa circunvisão, caso já se compreenda a conjuntura, isto é, que sempre algo está junto com algo. O ser junto a… da ocupação, que descobre numa circunvisão, é um deixar e fazer em conjunto, ou seja, um projeto que compreende a conjuntura. Se o deixar e fazer em conjunto constitui a estrutura existencial da ocupação e esta, enquanto ser junto a…, pertence à constituição essencial da cura que, por sua vez, se funda na temporalidade, então se deve buscar a condição de possibilidade do deixar e fazer em conjunto num modo de temporalização da temporalidade. STMSC: §69

A atualização que aguarda e retém constitui a familiaridade, segundo a qual a presença [Dasein], entendida como convivência, “se reconhece” no mundo circundante público. Compreendemos existencialmente o deixar e fazer em conjunto como um deixar-”ser”. É baseado nele que o manual, enquanto o ente que é, pode vir ao encontro numa circunvisão. Por isso, pode-se esclarecer ainda mais a temporalidade da ocupação com o exame dos modos de deixar vir ao encontro numa circunvisão, já caracterizados como surpresa, importunidade e impertinência. No tocante ao seu “verdadeiro em si”, o instrumento À MÃO vem ao encontro não como percepção temática de coisas, mas na não-surpresa do que é dado preliminarmente de forma “objetiva” e “evidente”. Mas se, no todo deste ente, algo surpreende, então aí reside a possibilidade de que o todo instrumental também venha a se impor como tal. Do ponto de vista existencial, como se deve estruturar o deixar e fazer em conjunto a fim de que algo surpreendente possa vir ao encontro? A questão não visa agora às condições fatuais que dirigem a atenção para algo preliminarmente dado, mas ao sentido ontológico da possibilidade como tal desse encaminhamento. STMSC: §69

Mas como é possível “constatar” o que falta, ou seja, o que não está À MÃO e não apenas o que está À MÃO mas não é manuseável? Na circunvisão, o não estar À MÃO descobre-se no dar pela falta. Tanto este como o “constatar”, nele fundado, do que não é simplesmente dado possuem suas próprias pressuposições existenciais. O dar pela falta não é, de modo algum, uma não atualização, mas sim um modo deficiente da atualidade no sentido da não atualização de algo esperado já sempre disponível. Se o deixar e fazer em conjunto não aguardasse “desde sempre” aquilo de que se ocupa e se o aguardar não se temporaliza-se na unidade com uma atualização, a presença [Dasein] jamais poderia “achar” que algo está faltando. STMSC: §69

O que não pode ser dominado pelo modo de lidar na ocupação, entendido como produzir, providenciar e também desviar, afastar, proteger-se de…, desvela-se em sua impossibilidade de superação. A ocupação se contenta com isso. O contentar-se com… é, no entanto, um modo próprio de deixar vir ao encontro numa circunvisão. Com base nesse descobrir, a ocupação pode deparar-se com o que é inoportuno, perturbador, impeditivo, perigoso, em suma, com o que, de algum modo, opõe resistência. A estrutura temporal do contentar-se reside num não-reter que aguarda e atualiza. A atualização que aguarda não conta “com” o que é inapropriado, não obstante disponível. O não contar com… é um modo de levar em conta aquilo a que não se pode ater. Com isso não se esquece mas se retém, de tal maneira que permanece À MÃO justamente em sua inapropriação. Manuais dessa espécie pertencem ao teor cotidiano do mundo circundante que faticamente se abriu. STMSC: §69

É fácil caracterizar a transformação do manejo e uso “práticos”, guiados pela circunvisão, em pesquisa “teórica”, considerando que: a pura visualização dos entes aparece na medida em que a ocupação se abstém de todo manejo. O decisivo para o “aparecimento” do comportamento teórico residiria, portanto, no desaparecimento da práxis. É justamente quando se toma a ocupação “prática” como o modo primário e predominante de ser da presença [Dasein] que a “teoria” deve sua possibilidade ontológica à falta da práxis, ou seja, a uma privação. Todavia, a suspensão de um manejo específico no modo de lidar da ocupação não faz da circunvisão orientadora um simples resto. A ocupação é que se desloca para a mera circunvisão de si mesma. com isso, ainda não se atinge, em absoluto, a atitude “teórica” da ciência. Ao contrário, demorando-se na suspensão do manejo, a ocupação pode assumir o caráter de uma circunvisão ainda mais aguçada, no sentido de “testar”, examinar o que foi alcançado ou de supervisionar o “funcionamento” que justamente agora “está parado”. Abster-se do uso instrumental significa tão pouco “teoria” que, na “observação” demorada, a circunvisão permanece inteiramente atada ao instrumento ocupado e À MÃO. O lidar “prático” possui seus modos próprios de demorar-se. E assim como a prática tem sua visão específica (”teoria”), também a pesquisa teórica não se dá sem a sua própria práxis. A leitura dos números e medidas, que resultam de um experimento, frequentemente necessita de uma construção “técnica” complexa que ordena a experiência. A observação no microscópio depende da produção de “preparados”. A escavação arqueológica, que precede à interpretação do “achado”, exige as mais intensas manipulações. E mesmo a elaboração mais “abstrata” de problemas e a fixação do que foi obtido manipulam instrumentos de escrever, por exemplo. Por mais “desinteressantes” e “evidentes” que possam ser estes aspectos inerentes à pesquisa científica, do ponto de vista ontológico, eles não são, de forma alguma, indiferentes. A referência explícita a que a atitude científica, enquanto modo de ser-no-mundo, não é apenas uma “atividade puramente espiritual” pode ser considerada prolixa e supérflua. Se, nessa trivialidade, ao menos ficasse claro que não é nada fácil perceber onde se situa, propriamente, a fronteira ontológica entre a atitude “teórica” e a “não teórica”! STMSC: §69

A circunvisão movimenta-se nas remissões conjunturais de um nexo instrumental À MÃO. Ela própria, por sua vez, é submetida à direção de uma supervisão, mais ou menos explícita, do todo instrumental de cada mundo de instrumentos e de seu correspondente mundo circundante público. A supervisão não é apenas um ajuntamento posterior de seres simplesmente dados. O essencial da supervisão é a compreensão primária da totalidade conjuntural, dentro da qual a ocupação de fato sempre se coloca. A supervisão, que ilumina a ocupação, recebe sua “luz” do poder-ser da presença [Dasein], em virtude do qual a ocupação existe como cura. Através de uma interpretação do que se vê, a circunvisão “supervisora”, própria da ocupação, coloca mais perto da presença [Dasein] aquilo que, em cada uso e manejo, está À MÃO. Chamamos de reflexão a aproximação específica que interpreta, numa circunvisão, aquilo de que se ocupa. O seu esquema característico é: “se-então”, se isto ou aquilo, por exemplo, deve-se produzir, deve ser retirado do uso ou guardado, então se faz necessário este ou aquele meio, caminho, circunstância e ocasião. A reflexão guiada pela circunvisão ilumina cada posição fática da presença [Dasein] em seu mundo circundante de ocupações. Ela nunca é, portanto, mera “constatação” do ser simplesmente dado de um ente ou de suas propriedades. A reflexão também pode realizar-se sem que aquilo mesmo que se aproxima numa circunvisão esteja ao alcance da mão ou vigente no campo mais próximo da visão. Este colocar mais perto o mundo circundante, na reflexão guiada pela circunvisão, tem o sentido existencial de uma atualização. Pois o tornar atual é somente um modo daquela. Nela, a reflexão visa diretamente às necessidades que não estão À MÃO. A circunvisão que torna atual não se refere a “meras representações”. STMSC: §69

A atualização, guiada pela circunvisão, é, no entanto, um fenômeno de múltiplos fundamentos. De início, ela sempre pertence a uma unidade ekstática plena da temporalidade. Seu fundamento é reter o nexo instrumental. Ocupando-se deste, a presença [Dasein] aguarda uma possibilidade. O que já se abriu, nesse reter que aguarda, coloca mais perto a atualização ou o tornar atual reflexivos. No entanto, para que a reflexão possa mover-se no esquema do “se-então”, é preciso que a ocupação já compreenda, “numa supervisão”, o nexo da conjuntura. Aquilo que é interpelado como o “se” já deve ser compreendido como isto ou aquilo. Para tanto, é necessário que a compreensão do instrumento se exprima numa predicação. O esquema “algo como algo” já está prelineado na estrutura do compreender pré-predicativo. A estrutura-como funda-se, ontologicamente, na temporalidade do compreender. Aguardando uma possibilidade, ou seja, aqui, aguardando um para quê, a presença [Dasein] volta a um ser para isso, o que significa: a presença [Dasein] retém um manual. Somente por isso é que, a partir do que foi retido, a atualização inerente a esse reter que aguarda pode, inversamente, colocá-lo, de modo explícito, mais perto em sua referencialidade ao para quê. No esquema da atualização, a reflexão aproximadora deve adequar-se ao modo de ser daquilo que deve ser aproximado. Pela reflexão, o caráter de conjuntura do que está À MÃO não é descoberto mas apenas aproximado, de tal maneira que a reflexão faz ver como tal, numa circunvisão, aquilo junto com o que algo está em conjunto. STMSC: §69

Por que, na fala modificada, aquilo sobre o que se fala, no caso o martelo pesado, se mostra diferentemente? Isto não se deve nem a um afastamento do manuseio e nem a uma mera ofesconsideração do caráter instrumental deste ente, mas sim a uma “nova” reconsideração do manual que vem ao encontro como algo simplesmente dado. A compreensão de ser, que orienta o modo de lidar na ocupação com o ente intramundano, transformou-se. Mas será que uma atitude científica já se constitui por se “conceber” como simplesmente dado algo que, numa reflexão guiada pela circunvisão, está À MÃO? Ademais, um manual pode também converter-se em tema de investigação e determinação científicas como, por exemplo, a pesquisa de um mundo circundante, do ambiente dentro de uma biografia histórica. O nexo instrumental À MÃO todos os dias, sua origem histórica, sua valorização e seu papel fático na presença [Dasein], faz-se objeto da economia como ciência. Para poder tornar-se “objeto” de uma ciência, o que está À MÃO não precisa perder o seu caráter instrumental. A modificação da compreensão de ser não parece ser um constitutivo necessário da gênese da atitude teórica “frente às coisas”. Certamente, caso modificação signifique: troca do modo de ser deste ente que aí se encontra tal como o compreender o compreende. STMSC: §69

Visando a uma primeira caracterização da gênese da atitude teórica a partir da circunvisão, estabelecemos como base um modo de apreensão teórica dos entes intramundanos, a saber, a natureza física, em que a modificação da compreensão de ser equivale a uma transformação. No enunciado “físico”: “o martelo é pesado”, não apenas se deixa de ver o caráter de ferramenta deste ente que vem ao encontro, mas também o que pertence a todo instrumento À MÃO, a saber, o seu lugar. Este se torna indiferente. Não que o ente simplesmente dado perca o seu “local”. O lugar transforma-se em posição no espaço e no tempo, em um “ponto do mundo”, que não se distingue de nenhum outro. Isto implica que a multiplicidade de lugares delimitados no mundo circundante, própria do instrumento À MÃO, não se transforma apenas em puro sistema de posições, mas sim que se aboliram os limites do próprio ente do mundo circundante. Torna-se tema o universo dos seres simplesmente dados. STMSC: §69

Para que a tematização do ser simplesmente dado, ou seja, do projeto científico da natureza, seja possível, a presença [Dasein] deve transcender o ente tematizado. A transcendência não consiste na objetivação, mas esta pressupõe aquela. Caso, porém, a tematização do ser simplesmente dado dentro do mundo seja uma transformação da ocupação descobridora, guiada por uma circunvisão, então o ser “prático” junto ao que está À MÃO deve ter como base uma transcendência da presença [Dasein]. STMSC: §69

Assim como, na unidade de temporalização da temporalidade, a atualidade surge do porvir e do vigor de ter sido, também o horizonte de uma atualidade se temporaliza, de modo igualmente originário, nos horizontes de porvir e vigor de ter sido. À medida que a presença [Dasein] se temporaliza, um mundo também é. Com referência a seu ser que se temporaliza como temporalidade, a presença [Dasein] é e está, essencialmente, “em um mundo”, com base na constituição ekstática e horizontal da temporalidade. O mundo não é algo À MÃO nem algo simplesmente dado. O mundo se temporaliza na temporalidade. Ele “é” “presença [Dasein]” com o fora de si das ekstases. Se não existir presença [Dasein] alguma, também nenhum mundo se faz “pre [das Da]”-sente. STMSC: §69

O ser que, faticamente, se ocupa junto ao que está À MÃO, a tematização do ser simplesmente dado e a descoberta objetivante deste ente já pressupõem mundo, isto é, só são possíveis como modos de ser-no-mundo. Fundando-se na unidade horizontal da temporalidade ekstática, o mundo é transcendente. Ele já deve ter-se aberto, ekstaticamente, para que, a partir dele, entes intramundanos possam vir ao encontro. Ekstaticamente, a temporalidade já se mantém nos horizontes de suas ekstases e, temporalizando-se, retorna para o ente que vem ao encontro no pre [das Da]. Com a existência fática da presença [Dasein], também já vêm ao encontro entes intramundanos. Que estes entes se descobrem junto com o próprio pre [das Da] da existência, isto não está à mercê da presença [Dasein]. Somente o que, cada vez, se descobre e se abre, em que direção se faz, até onde e como se faz é que são tarefas de sua liberdade, embora sempre nos limites de seu estar-lançado. STMSC: §69

A presença [Dasein] arruma espaço através de direcionamento e dis-tanciamento. com base na temporalidade da presença [Dasein], como isso é existencialmente possível? A função fundadora da temporalidade com relação à espacialidade da presença [Dasein] será demonstrada apenas em suas linhas gerais, na medida em que esta demonstração é imprescindível para as discussões ulteriores a respeito do sentido ontológico do “acoplamento” de espaço e tempo. A descoberta de uma região que dá direções pertence à arrumação de espaço, própria da presença [Dasein]. Por região, indicamos, de início, o para onde a que possivelmente pertence um instrumento À MÃO no mundo circundante e, portanto, passível de localização. Em todo deparar-se, ter À MÃO, deslocar e descartar um instrumento, já se descobriu uma região. O ser-no-mundo das ocupações está direcionado em se direcionando. O pertencer traz uma remissão essencial à conjuntura. Esta sempre se determina faticamente a partir do nexo conjuntural do instrumento de que se ocupa. As remissões conjunturais são apenas compreensíveis no horizonte de um mundo já aberto. Da mesma forma, somente o seu caráter de horizonte é que possibilita o horizonte específico do para onde a que pertence na região. A descoberta de uma região direcionadora funda-se num aguardar que retém ekstaticamente o possível para-lá e para-aqui. Enquanto aguardar que se direciona à região, arrumar-se é, de modo igualmente originário, aproximar (dis-tanciar) do que está À MÃO e do que é simplesmente dado. A partir da região previamente descoberta, a ocupação em se dis-tanciando volta ao que está próximo. Tanto a aproximação como a avaliação e medição dos intervalos, dentro do que é simplesmente dado num dis-tanciamento dentro do mundo, estão fundadas numa atualização, inerente à unidade da temporalidade, dentro da qual também o direcionamento se faz possível. STMSC: §70

A estrutura essencial da cura, a decadência, anuncia-se na aproximação, que possibilita ter À MÃO e atarefar-se, “empenhando-se nas coisas”. Sua constituição existencial e temporal é privilegiada. Pois, nela, e também na aproximação fundada numa “atualização”, ressurge o esquecer que aguarda uma atualidade. Na atualização aproximadora de alguma coisa a partir de seu lá, a atualização se perde em si mesma, esquecendo-se desse lá. É por isso que, começando numa tal atualização, a “observação” de um ente intramundano dá a impressão de que ele, “numa primeira aproximação” e decerto aqui, é apenas uma coisa simplesmente dada, embora indeterminada, num espaço. STMSC: §70

A irrupção da presença [Dasein] no espaço apenas é possível com base na temporalidade ekstática e horizontal. O mundo não é simplesmente dado no espaço; o espaço, no entanto, só pode ser descoberto no seio de um mundo. É justamente a temporalidade ekstática da espacialidade inerente à presença [Dasein] que torna compreensível a independência entre espaço e tempo e, inversamente, também a “dependência” entre presença [Dasein] e espaço. Esta última se revela no fenômeno já conhecido da ampla predominância de “representações espaciais” na auto-interpretação da presença [Dasein] e no teor significativo da linguagem. Este primado do espacial na articulação de significados e conceitos não tem seu fundamento num poder próprio do espaço e sim no modo de ser da presença [Dasein] CH: a não há oposição, ambos se pertencem mutuamente. Sendo essencialmente decadente, a temporalidade perde-se na atualização, compreendendo-se não apenas numa circunvisão a partir do que está À MÃO nas ocupações, mas também retirando, daquilo que a atualização sempre encontra de vigente, a saber, as relações espaciais, os parâmetros para articular o que a compreensão compreende e pode interpretar. STMSC: §70

O caráter histórico das antiguidades ainda conservadas funda-se, portanto, no “passado” da presença [Dasein], a cujo mundo elas pertenciam. Em consequência, somente a presença [Dasein] “passada” e não a “presente” seria histórica. Mas será que a presença [Dasein] pode ser um passado se determinamos o “passado” como o que não é mais simplesmente dado ou o que não mais está À MÃO? Manifestamente, a presença [Dasein] nunca pode ser um passado. Não porque não passe, mas porque, em sua essência, ela nunca pode ser algo simplesmente dado. Pois sempre que ela é, existe. Em sentido rigorosamente ontológico, a presença [Dasein], que não mais existe, não é passada, mas o vigor de ter sido presença [Dasein]. As antiguidades ainda simplesmente dadas possuem um caráter “passado” e histórico, com base em sua pertinência instrumental e proveniência do ter sido de um mundo que pertence a uma presença [Dasein] que é o vigor de ter sido presença [Dasein]. Isto é o primordialmente histórico. Mas será que a presença [Dasein] só se torna histórica por não mais estar presente? Ou será que ela é histórica justamente em existindo faticamente? Será a presença [Dasein] o ter sido apenas no sentido do vigor de ter sido presença [Dasein], ou será ela o ter sido enquanto atualizante e porvindouro, ou seja, na temporalização de sua temporalidade? STMSC: §73

Primariamente histórico, dizíamos, é a presença [Dasein]. Secundariamente histórico é, porém, o que vem ao encontro dentro do mundo, não apenas o instrumento À MÃO em sentido amplo mas também a natureza do mundo circundante, como “solo histórico”. Chamamos de ente pertencente à história do mundo o ente não dotado do caráter de presença [Dasein] mas que é histórico por pertencer ao mundo. Pode-se ver que o conceito vulgar de “história mundial” surge justamente por orientar-se de acordo com este sentido secundário de histórico. O que pertence à história do mundo não é histórico devido a uma objetivação historiográfica. Mas já o é em si mesmo enquanto o ente que vem ao encontro dentro do mundo. STMSC: §73

A presença [Dasein] cotidiana, que toma tempo, de início encontra preliminarmente o tempo no que está À MÃO e no ser simplesmente dado que vêm ao encontro dentro do mundo. Ela compreende o tempo assim “experimentado” no horizonte da compreensão ontológica imediata, ou seja, como algo, de alguma maneira, simplesmente dado. O como e por que se chega a formar o conceito vulgar de tempo exige um esclarecimento a partir da constituição ontológica, fundada no tempo, da presença [Dasein], que se ocupa do tempo. O conceito vulgar de tempo provém de um nivelamento do tempo originário. A comprovação dessa origem do conceito vulgar de tempo justifica a interpretação da temporalidade como tempo originário, já antes empreendida. STMSC: §78

O que pertence à essência dessa possibilidade de datação e onde ela se funda? Pode-se fazer uma pergunta mais supérflua do que esta? “É sabido” que com o “agora em que…” nos referimos a um “ponto do tempo”. O “agora” é tempo. De modo indiscutível, também compreendemos o “agora em que”, o “então, quando” e o “outrora, quando” num nexo com o “tempo”. Todavia, com a compreensão “natural” do “agora”, etc, ainda não se concebe que estes também se referiram ao “tempo”, nem como isso é possível e nem o que significa “tempo”. Será, então, evidente que “compreendemos sem mais” o “agora”, o “então” e o “outrora” e os pronunciamos “naturalmente”? Nesse caso, de onde tiramos o “agora em que…”? Será que o achamos em meio aos entes intramundanos, em meio ao que é simplesmente dado? Manifestamente não. Será que ele já foi achado? Será que alguma vez nos dispusemos a procurá-lo e a constatá-lo? “Todo tempo” nós dispomos dele, sem tê-lo assumido explicitamente, e dele fazemos uso insistente sem verbalizá-lo. A fala mais trivial, pronunciada distraidamente na cotidianidade como, por exemplo, “está frio” refere-se a um “agora em que…” Por que, ao dizer aquilo de que se ocupa, a presença [Dasein], mesmo sem verbalizar, pronuncia um “agora em que…”, um “então, quando…” e um “outrora, quando…”? Porque o dizer que interpreta alguma coisa pronuncia, conjuntamente, a si mesmo, isto é, pronuncia o ser junto ao que está À MÃO, que compreende numa circunvisão e que vem ao encontro na descoberta. E porque esse dizer e discutir que também interpreta a si está fundado numa atualização e só é possível como tal. STMSC: §79

O “tempo público” comprova-se como o tempo “no qual” vêm ao encontro dentro do mundo o que está À MÃO e o que é simplesmente dado. Isso exige que se denomine de intratemporal o ente não dotado do caráter de presença [Dasein]. A interpretação da intratemporalidade tanto proporciona uma visão mais originária da essência do “tempo público” como também possibilita delimitar o seu “ser”. STMSC: §80

O ser da presença [Dasein] é a cura. Esse ente existe lançado na decadência. Entregue ao “mundo” descoberto em seu pre [das Da] e dependente de suas ocupações, a presença [Dasein] aguarda seu poder-ser-no-mundo. E isso de maneira a “contar” com e por meio daquilo com que ela estabelece uma conjuntura privilegiada em virtude desse poder-ser. O ser-no-mundo cotidiano da circunvisão precisa de possibilidade de visão, ou seja, de claridade para poder lidar, numa ocupação, com o que está À MÃO em meio ao que é simplesmente dado. Com a abertura fática de seu mundo, a natureza se descobre para a presença [Dasein]. Em seu estar-lançado, ela se entrega à mudança de dia e noite. Com sua claridade, o dia propicia a visão possível, e a noite a retira. STMSC: §80

Aguardando a possibilidade de visão dentro da circunvisão das ocupações, a presença [Dasein] compreende-se a partir de seus trabalhos diários, no “então, quando amanhecer” e, assim, ela dá a si mesma o seu tempo. O “então” das ocupações é datado a partir do que no mundo circundante se acha num nexo conjuntural mais imediato com o tornar-se claro: com o nascer do sol. Pois, quando ele nasce, é tempo de… com isso, a presença [Dasein] data o tempo que ela deve tomar. E o faz a partir daquilo que, no horizonte do abandono ao mundo, vem ao encontro como uma conjuntura privilegiada para o poder-ser-no-mundo de uma circunvisão. A ocupação usa a luz e o calor despendidos pelo sol, que se “acham À MÃO”. O sol data o tempo interpretado nas ocupações. É dessa datação que nasce a medida “mais natural” do tempo, isto é, o dia. E por ser finita a temporalidade da presença [Dasein], que deve tomar seu tempo, os seus dias já estão contados. O “durante o dia” propicia ao aguardar nas ocupações a possibilidade de se determinar, numa ocupação prévia, os “então” das ocupações, ou seja, de se dividir o dia. A divisão se cumpre, por sua vez, no tocante àquilo que data o tempo, a saber, o sol em seu curso. Da mesma forma que o nascer do sol, também o pôr-do-sol e o meio-dia são “locais” privilegiados que o astro ocupa. Lançada no mundo, temporalizando-se e dando a si mesma tempo, a presença [Dasein] leva em conta o curso do sol em seu retorno regular. com base na interpretação do tempo, que é previamente datado a partir do estar-lançado no pre [das Da], o acontecer da presença [Dasein] é o dia-a-dia. STMSC: §80

Essa datação, realizada pelo astro que despende luz e calor e pelos seus “lugares” privilegiados no céu, é uma indicação do tempo que, imediatamente, embora dentro de certos limites, se cumpre com unanimidade para “todo mundo”, na convivência que se faz “sob o mesmo céu”. O que se deve datar pode estar disponível no mundo circundante, embora não se limite a cada mundo instrumental das ocupações. Neste, o que sempre já está descoberto é, sobretudo, a natureza do mundo circundante e o mundo circundante público. Todo mundo pode logo “contar” com essa datação pública na qual todos dão a si mesmos o seu tempo, pois ela usa uma medida pública disponível. Essa datação conta com o tempo no sentido de uma medição do tempo, necessitando, portanto, de um medidor de tempo, ou seja, de um relógio. Isso implica que: com a temporalidade da presença [Dasein] que, lançada e entregue ao “mundo”, dá a si mesma tempo, também já se descobriu o “relógio”, ou seja, um manual que, retornando regularmente, se fez acessível na atualização que aguarda. O ser lançado junto ao que está À MÃO funda-se na temporalidade. A temporalidade é o fundamento do relógio. Enquanto condição de possibilidade da necessidade fatual do relógio, a temporalidade condiciona, igualmente, a possibilidade de sua descoberta. Pois somente a atualização, que aguarda e retém o transcurso do sol, que vem ao encontro junto com a descoberta dos entes intramundanos, é que possibilita e exige a datação que interpreta a si mesma, a partir do que está publicamente À MÃO no mundo circundante. STMSC: §80

O que significa ler o tempo? “Olhar o relógio” não pode dizer apenas: observar, em sua modificação, o instrumento que se acha À MÃO e seguir as posições dos ponteiros. No uso do relógio, em que se constata que horas são, dizemos, explicitamente ou não: agora são tantas ou tantas horas, agora é tempo de…, agora não é tempo de…, agora até às… E um tomar tempo que funda e dirige esse olhar o relógio. Aqui torna-se ainda mais claro o que já se mostrou a respeito da contagem mais elementar do tempo: em sua essência, orientar-se pelo tempo, olhando o relógio, é dizer-agora. Isso é tão “evidente” que não prestamos atenção e nem sequer sabemos explicitamente que, nesse momento, o agora já está interpretado e compreendido em todo o seu teor estrutural de possibilidade de datação, dimensão de lapso, público e mundanidade. STMSC: §80

Mas o tempo do mundo também é “mais subjetivo” do que qualquer sujeito possível porque, no sentido bem entendido de cura como ser do si-mesmo que existe faticamente, ele também possibilita esse ser. “O tempo” não é e nunca está simplesmente dado no “sujeito”, nem no “objeto” e nem tampouco “dentro” ou “fora”. O tempo “é” “anterior” a toda subjetividade e objetividade porque constitui a própria possibilidade desse “anterior”. Será que o tempo possui um “ser”? Em caso negativo, seria então um fantasma ou seria ainda “mais ente” do que todo ente possível? A investigação capaz de prosseguir rumo a essas questões terá de se deparar com os mesmos “limites” já estabelecidos na discussão provisória do nexo entre verdade e ser. Mesmo que posteriormente se possa responder a estas questões ou ainda colocá-las originariamente, cabe compreender, de início, que, sendo ekstática e horizontal, a temporalidade temporaliza uma espécie de tempo do mundo, que, por sua vez, constitui uma intratemporalidade do que está À MÃO e do que é simplesmente dado. Em sentido rigoroso, porém, esse ente nunca pode ser chamado de “temporal”. Assim como todos os entes não dotados de caráter de presença [Dasein], ele é atemporal, quer ocorra, se origine e decorra “realmente”, quer subsista “idealmente”. STMSC: §80

Esse encobrimento nivelador do tempo do mundo, realizado pela compreensão vulgar do tempo, não é acidental. Mas justamente porque a interpretação cotidiana do tempo se mantém unicamente na direção da visão da compreensibilidade das ocupações, compreendendo somente o que se “mostra” em seu horizonte, é que se lhe devem escapar tais estruturas. O contado na medição temporal das ocupações, o agora, é compreendido conjuntamente na ocupação do que está À MÃO e do que é simplesmente dado. Como essa ocupação do tempo se volta para o tempo aí compreendido e o “observa”, ela vê os agora que, de algum modo, estão “pre [das Da]-sentes por aí”, no horizonte da compreensão de ser que, constantemente, orienta essa ocupação. Os agora também são e estão, portanto, de certo modo, simplesmente dados em conjunto: ou seja, tanto o ente como o agora vêm ao encontro. Embora não se diga explicitamente que os agora são, como as coisas, simplesmente dados, do ponto de vista ontológico, eles são “vistos” no horizonte da ideia de ser simplesmente dado. Os agora passam e os agora que passaram constituem o passado. Os agora advêm e os agora que advirão delimitam o futuro. Enquanto tempo-agora, a interpretação vulgar do tempo do mundo não dispõe de horizonte para, assim, poder tornar acessíveis para si mundo, significância e possibilidade de datação. Essas estruturas permanecem, necessariamente, encobertas, e tanto mais quanto a interpretação vulgar do tempo consolida ainda mais esse encobrimento através da maneira em que constrói, conceitualmente, a sua caracterização do tempo. STMSC: §81