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Wahl: PRIMEIRA TRÍADE: EXISTÊNCIA - SER - TRANSCENDÊNCIA

quarta-feira 23 de março de 2022

As Filosofias da Existência
Jean Wahl  
Trd. I. Lobato e A. Torres
Europa  -América
1962

AS CATEGORIAS DAS FILOSOFIAS DA EXISTÊNCIA

O que desejaríamos fazer agora era agrupar numa espécie de quadro as categorias essenciais das filosofias da existência. Este quadro nem sempre será perfeita mente satisfatório; permitirá, contudo, que nos orientemos através das principais idéias destes filósofos.

PRIMEIRA TRÍADE: EXISTÊNCIA - SER - TRANSCENDÊNCIA

Vimos como facticidade e emotividade, uma vez unidas, produzem, de qualquer forma, a ideia e o sentimento de existência. Este termo, produto de uma tendência empirista (mas de um empirismo metafísico) e de uma tendência afectiva e romântica, vai ser o primeiro termo da primeira tríade: existência, ser e transcendência [que nos desculpem o caráter bastante arbitrário e, o que é mais, aparentemente hegeliano desta disposição. Consideramo-lo antes de tudo como um simples alinhamento]. Esta tríade vai deter-nos mais tempo que as outras, e particularmente o primeiro termo desta tríade, que é a existência; logo que tenhamos dito o que temos a dizer sobre a existência, poderemos passar um pouco mais rapidamente sobre as outras categorias. É da interpretação dos primeiros termos que dependerá a de todos os outros.

Kierkegaard   escreveu: «Não se pode acentuar a existência com mais força do que eu acentuei.» Neste ponto, ele inspirava-se em parte em Schelling  , de quem ouvira algumas lições, conforme referimos. Ele queria primeiro que tudo opor a existência à essência. «O existente», escreve Schelling, «é aquilo através do qual o que deriva do pensamento fica arruinado.» Tua res agitur (Trata-se de ti), diz ele ainda. E, em oposição às filosofias negativas, fundava a sua «filosofia positiva».

Mas é preciso remontar a uma época mais distante, a Hamann, mais distante ainda, a Lutero  . Posteriormente, Kierkegaard voltar-se-á violentamente contra ele; entretanto deve-lhe muito das suas ideias e muitos dos seus sentimentos. «O por mim, eis o que é essencial no pensamento de Lutero no seu comentário à Epístola aos Romanos.» Nós pedimos por nós (pro nobis). A grande descoberta de Lutero é que a relação com Deus não reside numa esfera racional, mas numa relação pessoal, irracional. Além disso, Kierkegaard insistirá fortemente no facto de que a crença nunca é coisa certa, está sempre em luta com a não-crença; encontraremos este mesmo pensamento em Jaspers  . A crença é uma coisa inquieta, como dizia Lutero, constantemente em luta com ela própria. E para atingir as mais altas esferas da crença é preciso passar pelo tormento da consciência; há uma necessidade, em Lutero, da consciência dilacerada; só o pecador é justificado. Para ter consciência do «perante Deus», devemos ter consciência do nosso pecado, porque é aí que verdadeiramente, pela primeira vez, nos encontramos perante Deus pela nossa própria consciência do abismo que nos separa dele.

Já em 1834 Kierkegaard escreve: «O Cristo não ensina, age; ele é.» Por outro lado, diz-nos: «A existência corresponde ao indivíduo que, na doutrina de Aristóteles  , é qualquer coisa que subsiste fora da esfera do conceito.» Destas duas maneiras, a ideia do ser como irredutível ao pensamento introduz-se no próprio pensamento de Kierkegaard.

Convirá definir o conceito de existência? Kierkegaard vê no facto de se abster de uma tal definição o sinal daquilo a que chama um tacto filosófico muito seguro. Podemos simplesmente enumerar os caracteres dos existentes.

«A palavra existência», diz Jaspers, «é um dos sinônimos da palavra realidade, mas graças à maneira como Kierkegaard a acentua tomou um aspecto novo; ela designa o que eu sou fundamentalmente por mim.» «A partir de um começo obscuro na obra de Kierkegaard, esta realidade entrou numa história profunda.»

A palavra existência não é mais que um sinal destinado, disse ainda Jaspers, a dirigir-nos para esta certeza que não é uma certeza intelectual, que não é um conhecimento objectivo; para esta existência que ninguém pode afirmar nem a seu próprio respeito, nem a respeito de outrem; por consequência, a dar crédito a Jaspers, o filósofo, e mesmo o existente, não deve intitular-se existencialista, nem sequer existente, uma vez que tem incessantemente de pôr em dúvida a sua própria existência, uma vez que existe mais pela dúvida acerca da sua existência que por uma afirmação dogmática. «Nós dizemos: existência, falamos desta realidade que é a existência, mas a existência não é um conceito, é somente um sinal» que orienta para um além de toda a objectividade.

Estes filósofos, sendo Kierkegaard o primeiro, escolheram a palavra existência de preferência a muitas outras palavras que tinham curso anteriormente em filosofia, como as palavras vida, ou valor ou alma. Kierkegaard procurou uma palavra para significar esta acuidade na relação entre o eu e a transcendência sobre a qual queria insistir. Na sua Dissertação sobre a Ironia ele serve-se da palavra ninguém; mas logo a seguir escolhe a palavra existência. «À força de conhecimentos, acaba-se por esquecer o que é existir. Não se esqueceu só o que é existir religiosamente, mas o que é existir humanamente.» «A existência é uma energia de pensamento.»

A primeira característica da existência, se lhe podemos chamar uma característica, é a de que não é definível, de que não é cognoscível objectivamente. Ela nada é que possa tornar-se objecto, nada é sobre o que eu me possa explicar. Como diz Jaspers, só podemos falar da existência passada, isto é, da existência feita objecto. A existência esvai-se se a observarmos.

A primeira coisa a dizer é talvez que a existência se conhece a si própria, e é neste sentido que o primeiro dos existentes é Sócrates   e que o primeiro preceito do existente será: «Conhece-te a ti próprio.»

Mas este eu próprio que devo conhecer não está voltado para as considerações racionais como o eu cartesiano, ou para as considerações objectivas, como o espírito hegeliano, ou para as ideias, não está voltado para o que é reconhecível por todos. O existente é aquele que Kierkegaard chama o único ou o pensador subjectivo. Está sempre em contacto com ele próprio e numa preocupação infinita de si próprio.

O que é existir para Kierkegaard? É, primeiro, ser um indivíduo dotado de vontade e apaixonado e que se conhece como tal [recordemos aqui Feuerbach: «A paixão é o único critério da existência»]. A paixão nasce da nossa visão da contradição entre o finito e o infinito e nasce da nossa incerteza. Paixão e vontade mostrar-se-ão pelo caráter intenso da relação com os termos com que estiverem em ligação.

Em quarto lugar, existir é «ir sendo». A paixão, a decisão, são movimentos. A existência não admite definição, mas, se dissermos que ela é movimento, caracterizá-la-emos legitimamente; porque a definimos por qualquer coisa que também não admite definição. A existência é temporalidade, tarefa, contínuo «ir sendo».

Não é «ir sendo» à maneira da ideia hegeliana, não se trata de um «ir sendo» lógico, trata-se de «ir sendo» que se faz, como acabamos de dizer, pela escolha e decisão e na paixão.

De resto, não há aí algo que está ligado ao «conhece-te a ti próprio»? Todo o conhecimento ético e ético-religioso «se relaciona com o facto de que o sujeito existente existe». Ser existente não é considerar-se como dado, mas como devendo ser criado por si próprio.

Este «ir sendo» será um «ir sendo» que nos colocará constantemente em perigo. O existente é aquele que se arrisca a si próprio. E iremos encontrar sob uma outra forma a mesma ideia em Heidegger, quando ele disse que o existente é aquele que se coloca a si próprio em jogo.

Até aqui não mencionamos a ideia de Deus, não encaramos o aspecto religioso do pensamento de Kierkegaard nesta definição da existência. E, efectivamente, segundo certos passos, parece ser possível que haja para Kierkegaard existentes fora do cristianismo: Sócrates era um existente; havia mais existência num filósofo grego médio que em todas as filosofias modernas. Não é menos verdade que a existência cristã é estímulo e intensificação da existência. Em que sentido? Esta vontade e esta paixão de que nós falávamos vão encontrar-se intensificadas pelo facto de o termo com o qual iremos estar em ligação ser o próprio Absoluto. Como podemos saber que é o Absoluto? Precisamente pela Intensidade desta paixão e desta vontade. Sentir-nos-emos perante Deus. E esta categoria do «perante Deus», que estava no centro do pensamento de Lutero, é posta por Kierkegaard no centro do seu próprio pensamento.

Para ascender a este «perante Deus», é preciso passar pela consciência do pecado; sentir-se pecador é sentir-se perante Deus, e sentir-se perante Deus é sentir-se pecador. É, pois, pelo pecado que se entra na vida religiosa. Existir será, pois, ser pecador. Existir será tomar consciência do facto de a própria existência ser pecado. Mas, por outro lado, a existência é o mais alto valor que nos é possível atingir. Encontramo-nos perante um paradoxo, e já dissemos que o pensamento de Kierkegaard é essencialmente paradoxal. A existência é simultaneamente o mais alto valor e o pecado. Dizendo isto, atingimos já uma fase que deixa de ser a fase de qualquer religião paradoxal, o que Kierkegaard chama religião B, por oposição à religião A. Pode-se estar na religião de imanência, mas a religião B, que é a religião elevada ao seu mais alto grau, é a religião do absurdo e da transcendência.

Assim, um vez que se entrou na esfera religiosa, trata-se ainda de realizar uma espécie de viagem espiritual para ir de uma religião que fica perto da filosofia, uma religião semelhante à de Platão  , para a verdadeira religião que é um escândalo para a razão.

Eis como os dois caracteres que damos à existência, a paixão e a vontade, se vão encontrar intensificados. Além disso, o «ir sendo» vai-se encontrar transformado; não se trata de «ir sendo» de uma maneira geral, trata-se de se ir tornando cristão. De facto, o cristianismo não é qualquer coisa que seja dada. O cristianismo é qualquer coisa que se conquista. Não se nasce cristão, diz Kierkegaard; cada qual torna-se cristão, e vem-se mesmo a ser mais facilmente cristão se não se estiver, desde o princípio, no seio do cristianismo; mas nunca se chega a ser cristão completamente, porque é uma determinação alta de mais para o homem, e foi provavelmente neste sentido que Kierkegaard disse muitas vezes: «Eu não sou cristão», querendo dizer: eu não sou digno de dizer que sou cristão. As palavras «eu sou cristão», diríamos nós, forçando um pouco as palavras de Kierkegaard, são contraditórias: só se pode tender para o cristianismo, nunca se é completamente cristão.

Assim, as ideias de vontade e de paixão, a ideia de «ir sendo», transformam-se pelo seu contacto — que é mais que um contacto — com o cristianismo. Igualmente a ideia de risco: porque, agora, o que arriscamos, o que sabemos arriscar no cristianismo, é a nossa salvação ou a nossa danação eterna. O que pomos em perigo em cada um dos nossos actos é a nossa felicidade eterna. Trata-se pois, em todos os momentos da nossa vida, de saber se ela no além será bem-aventurada ou para sempre desventurada.

O pensamento do indivíduo será essencialmente paradoxal, dado que, no momento em que o indivíduo atinge a religião B, atinge o cristianismo profundo; ele será contacto de um ser finito com o infinito, que ele não pode compreender. Seremos um paradoxo na medida em que o finito apreende o infinito. Mas, por outro lado, este próprio infinito ao qual o nosso pensamento se deve ligar é paradoxo, porque Deus, que é a eternidade e o infinito, encarnou-se num local determinado do espaço, num momento determinado do tempo. E aí é que está o maior paradoxo. E é pelo efeito deste paradoxo que o nosso pensamento está incessantemente tenso, a partir do momento em que o descobriu.

A filosofia da existência não se opõe ao pensamento, contanto que este pensamento seja intenso e apaixonado. Recordemos que Kierkegaard definiu a existência, na medida em que pode ser definida, como uma energia de pensamento. Podemos mesmo dizer que o pensamento existencial é reflexão; não é verdade que a reflexão sufoque a originalidade: pode aguçá-la; e Kierkegaard quererá unir a reflexão ao caráter autêntico, originário do pensamento naquilo a que ele chama um sério imediato, uma juventude séria, uma primitividade adquirida, uma imediação amadurecida. Sem dúvida, em certos momentos, ele diz, para se opor aos cartesianos: «Quanto mais penso, menos sou, e quanto mais sou, menos penso»; e não é menos verdade que só há real existência se houver a reflexão da existência. Há aqui dois termos anti-téticos; há uma luta de morte entre o pensamento e a existência; mas esta luta de morte constitui precisamente a existência. Kierkegaard diz: «Se eu penso a existência, eu abulo-a. Mas aquele que a pensa existe. A existência encontra-se posta ao mesmo tempo que o pensamento.» Não podemos conceber a existência, nem eliminá-la, nem eliminar o seu pensamento. Reside aí o paradoxo e, simultaneamente, a essência do pensamento existencial.

Uma vez que chegamos aí, que devemos fazer? Poderemos voltar às coisas «deste mundo» ? Foi o que Kierkegaard pensou e o que quis efectuar pela ideia de repetição. Trata-se de reencontrar «este mundo» depois de ter estado em contacto com o paradoxo, com o absurdo, com Deus.

Devemos escolher e devemo-nos escolher, escolhermo-nos tal qual somos, devemos assumir o próprio destino. é o que ele chama imediação amadurecida, que só pode existir quando se passou pela mediação divina. Devemo-nos escolher, mas simplificando-nos constantemente, pela própria paixão, pela paixão do próprio absoluto.

Trata-se sempre de se unificar, de se simplificar, porque o simples é mais elevado que o complexo. As crianças têm uma multidão de ideias, mas aquele que medita realmente, um Sócrates, por exemplo, só tem uma ideia. Aumentar os nossos conhecimentos, diz Kierkegaard, reencontrando uma fórmula neoplatônica, é muitas vezes diminuirmo-nos nós próprios.

Devemos entretanto acrescentar que, ao mesmo tempo, Kierkegaard sabe muito bem que ele próprio é feito de dualidades, de diversidades, de diversidades infinitas. Há assim em Kierkegaard um conflito entre esta vontade de unidade e esta multiplicidade quase infinita que ele sente em si.

A existência é a palpitação de uma vida intensa, o agudo extremo da subjectividade.

O pensador subjectivo torna-se um espírito existente infinito, torna-se um mistério por esta relação profunda em relação a si próprio e ao objecto da sua afirmação.

Já dissemos em que sentido Jaspers conserva o pensamento de Kierkegaard. A existência é «ir sendo», a existência está sempre voltada para os possíveis e ao mesmo tempo para o que é a sua origem, para o que é originário. É a ideia do Ursprung  .

(Encontramos, destas duas maneiras, ideias de Kierkegaard. O existente é o que se relaciona com si próprio e o que se relaciona com a transcendência. Vemos como, por esta fórmula, Jaspers, ao mesmo tempo que explica o seu próprio pensamento, explica o de Kierkegaard, que está na origem do seu. A existência será o que toma lugar entre o que pode ser estudado pelas ciências, que é aquilo a que Jaspers consagra o primeiro volume da sua Filosofia, que se chama A Orientação no Mundo, e o que é a transcendência. Os problemas existenciais cessam na transcendência; esta põe um ponto final aos problemas, não permite a existência do possível, enquanto a existência é essencialmente possibilidade, ao mesmo tempo que é regresso à origem [Há ao mesmo tempo uma luta e uma união entre a existência e o Dasein  , segundo Jaspers. A existência é graças ao Dasein, ainda que ela seda mais que ele. E é ela, por outro lado, que lhe dá consistência e seriedade, ao mesmo tempo que ao contacto da existência esta se desvanece. É ela, enfim, que deve decifrar o significado dos números: «A existência realiza-se no Dasein, esclarece-se na consciência em geral, revela o seu conteúdo no espírito», e é ela ainda, como acabamos de dizer, que revela o significado dos números.]

Encontraremos certos pensamentos análogos em Gabriel Marcel  . O que ele quer, já o vimos, é ir para além das oposições do sujeito e do objecto, do pensamento e do ser, da alma e do corpo, para qualquer coisa que não pode ser dita no sentido em que as verdades conceptuais são ditas. Mas o que distingue Gabriel Marcel dos outros filósofos da existência, exceto de Sartre   e principalmente de Merleau-Ponty  , é o lugar que ele atribui ao corpo. Porque o corpo não ocupava lugar no pensamento explícito de Kierkegaard e não tem grande lugar no de Jaspers ou de Heidegger. Não se pode dizer que eu tenha um corpo, diz Gabriel Marcel; eu sou o meu corpo, o corpo não é um instrumento, e é acerca desta relação, de resto indefinível, entre a alma e o corpo, que serão constituídas as outras relações entre nós e os objectos exteriores. Esta relação da alma e do corpo não deve ser concebida segundo o modelo dessas outras relações, que, ao contrário, dele são derivadas. Assim, no seu Journal Métaphysique, Gabriel Marcel meditava acerca da ligação de eu próprio e de meu corpo e perguntava-se o que significavam essas duas palavras: «meu corpo».

Mas não nos devemos deter aí; é preciso ir além de si próprio, e então encontramo-nos em comunhão e em união com qualquer coisa que nos envolve e nos excede; e é esse o não-objectivável e esse o não-esgotável de que falávamos. Ê tomando consciência do inobjectivável que Gabriel Marcel atinge a formulação de uma série de antíteses; de um lado, haverá a objectividade, a técnica, a ciência e o problema, e, de um outro lado, haverá a existência, a presença, o eu e o tu, o ser, por oposição ao ter, a metafísica, a fé e o mistério. O problema é qualquer coisa de intelectual que está perante mim e separada de mim, ao passo que o mistério me domina; estou, de qualquer forma, circunscrito no próprio problema, e é neste momento que o problema se converte em mistério. O mistério é um problema em que aquele que o põe está comprometido.

Se agora procurarmos saber o que é a existência em Heidegger, será necessário que prestemos atenção à etimologia do termo «existência». Sem dúvida, esta etimologia não é estranha a certas coisas que Kierkegaard nos diz acerca da existência. Toda a existência é separação, porque existir é manter-se fora de, consistir, tomar lugar fora de — a existência é sempre separação e intervalo; existência e distância tornam-se quase sinônimos; a existência ê distância. í; por isso que não há aqui junção, como em Hegel  , entre o pensamento e o ser. fi por isso também que é no pecado que primeiro apreenderemos a existência. A existência apresenta-se antes de tudo como disseminação, como pluralidade. Há uma multidão de existentes. Mas cada um deles tem um fim, deve ter um fim, que é o de constituir uma unidade, uma simplicidade com todas as suas determinações. Nós poderíamos dizer que da existência como extensão e disseminação chegamos à existência como tensão. E quanto mais avançarmos mais as coisas se aprofundarão, mais passaremos da existência como dispersão no tempo e no espaço à existência como tensão, e daí poderemos chegar à existência como êxtase; há uma espécie de escala que vai da existência extensão à existência tensão e à existência êxtase. Assim, a existência, que era primeiro separação e quebra, torna-se união. A própria intensidade da nossa experiência, nascida na dispersão, faz-nos passar à unidade.

Mas enquanto Kierkegaard, em certos passos da sua obra, tira desta ideia a afirmação de que a existência é dispersão, disseminação, o que Heidegger tira desta etimologia é que existir é estar fora de si. E neste sentido que ele diz que a existência é naturalmente estática, no sentido primitivo do termo. Estar fora de si é estar no mundo. Assim, ao «eu sou» cartesiano, Heidegger substitui o «eu estou no mundo», porque nunca há sujeito absolutamente separado do mundo, e o erro da filosofia consiste em podermos ter posto de um lado o sujeito e do outro lado o conjunto do que não é o sujeito. O sujeito cria sempre em volta de si um mundo, ou, para tentar traduzir os termos de Heidegger, mundaniza um mundo, porque o mundo não é, mas mundaniza-se. É preciso criar um termo para bem demonstrar que o mundo não é à maneira de um comum sendo.

Talvez fosse conveniente demonstrar aqui como a ideia do mundo, que quase não tinha lugar na filosofia de Descartes  , ainda que um seu tratado se chame Le Monde (O Mundo), ocupe um lugar cada vez maior nas filosofias modernas, primeiro em Kant  , depois em Heidegger. Descartes, no início da sua meditação, punha em dúvida a realidade do mundo. Pode dizer-se que Husserl   fez o mesmo no inicio da sua. Kant punha em dúvida o conceito de mundo, e encarava-o como uma ideia para a qual nós tendemos. Para Heidegger estamos sempre abertos para o mundo.

Pode-se recordar uma comparação que Heidegger fez entre a sua filosofia e a de Leibniz  . Ele diz que os sendo que somos não têm necessidade de portas e janelas, não como as mónadas de Leibniz, não porque estes sendo fossem encerrados em si próprios, mas porque estão em relação directa com o mundo, porque estão no mesmo nível do mundo, porque estão, por assim dizer, na rua. Assim, as consciências, para nos servirmos das palavras que Heidegger evita, não estão fora delas, porque não há o estar nelas, nós estamos sempre e já no mundo e sempre também em relação imediata com os outros. Ê ao que nós aludíamos no que dizíamos a respeito da comunicação. Mesmo na nossa mais íntima individualidade, mesmo quando sentimos ao máximo a nossa solidão, não estamos separados dos outros; a própria ideia de ser sem os outros não é ainda, diz Heidegger, senão um modo do «com os outros». Heidegger, dizíamos nós, não nos isola dos outros, como se diz por vezes, e, para ele, é de nossa essência ser com os outros como ser com o mundo.

Poderíamos comparar o que diz Sartre sobre a existência com o que dizem os filósofos que mencionamos.

Não há essência de nós próprios, diz Sartre. Só haverá essência de mim próprio quando eu estiver morto. A essência é qualquer coisa que se aplica ao que já não é.

Seria interessante confrontar neste ponto o pensamento de Sartre com o de Gabriel Marcel e o de Heidegger. Para Gabriel Marcel, não há essência intelectual de nós próprios, mas uma essência afectiva, uma presença de eu próprio para mim próprio, que é uma espécie de essência velada, como todo o valor é uma essência velada. E, por outro lado, para Heidegger, é inexacto dizer que não há essência de mim próprio, há uma essência de mim próprio, mas que é a minha existência, quer dizer, que é o facto de eu estar no mundo.

Que é a existência para Sartre? É primeiro que tudo ser nos meus actos e pelos meus actos. Ele retoma a fórmula de Lequier: fazer e, ao fazer, fazer-se. Cada um é segundo o que faz. Tu nada és mais do que a tua vida, diz uma das personagens de um drama   de Sartre. O homem define-se pelos seus actos. Deixou de haver gênio desconhecido. Nós já dissemos que neste ponto o pensamento de Sartre se aproxima muito mais do de Hegel que do de Kierkegaard. Nunca podemos determinar o valor das nossas afeições senão pelos actos que as definem. Os nossos sentimentos constroem-se com os nossos actos. Da mesma maneira que não há outro gênio senão o que se exprime pelas suas obras, não há outra possibilidade de amor senão a que se manifesta. O homem é tal qual se projecta, o homem só será depois e será tal qual se fizer. O homem é primeiramente um projecto que se vê subjectivamente, o homem será o que projectou ser.

Ainda que existam diferenças a este respeito entre Sartre e Kierkegaard, eles estarão, contudo, de acordo sobre a ideia de que somos essencialmente escolha, uma escolha pela qual, segundo Sartre, não só nos comprometemos a nós, mas também comprometemos os outros.

Vamos agora à nossa segunda ideia, a ideia de ser. A existência é essencialmente inclinada para o ser. Insistimos sobre o lado subjectivista do pensamento de Kierkegaard. Mas só há subjectividade em relação a um ser que me transcende.

Em 1854, Kierkegaard escrevia no seu diário: «A existência do cristão está em contacto com o ser.» Jesus é, acima de tudo, ser, muito mais que pensamento.

Kant demonstrara que o ser é indemonstrável, uma vez que é posição, e foi partindo dai que Schelling desenvolveu a sua filosofia da existência. Falando de uma das grandes tradições que estão na origem das filosofias da existência, insistimos nesta afirmação da irredutibilidade do ser como sendo a afirmação do que Heidegger e Sartre depois dele chamam a facticidade. O ser é um ponto de partida e nunca pode ser um ponto de chegada do pensamento. Em vão os pensadores abstractos tentam demonstrar o ser pelo pensamento, e só conseguem demonstrar uma coisa com isso, é que são pensadores abstractos. Desde que falo idealmente do ser, já não falo do ser, mas da essência.

Uma ideia do ser apresenta-se em Kierkegaard sob a forma do Outro absoluto que não podemos pensar, mas que, por outro lado, não podemos deixar de pensar. O nosso pensamento erra em volta deste Outro absoluto como uma borboleta em volta da luz. Não podemos separar-nos dele e ele consome-nos.

Assim, desde a origem das filosofias da existência, vemos a afirmação ontológica.

Tínhamos dito que as filosofias da existência comportam a união de uma afirmação da existência propriamente dita e a afirmação de que esta existência pensa o ser, que assim existencialismo e ontologia neste sentido estão unidos, que há uma união do existencial e do ontológico.

Já tínhamos encontrado esta união em Kierkegaard quando ele diz que o nosso espírito erra em volta da ideia de ser que ele não pode pensar completamente, mas na qual não pode deixar de pensar. A filosofia de Jaspers é uma filosofia que põe este problema do ser. E Heidegger escreve que o único problema filosófico é o do ser.

Esta ideia do ser apresenta-se-nos nestas filosofias como dado, como indemonstrável. Por exemplo, Gabriel Marcel diz-nos que o ser é antes de tudo o irredutível, é aquilo a que não se pode chegar, é aquilo donde se deve necessariamente partir.

Um segundo caráter que tínhamos notado a respeito da relação entre estas filosofias e a ideia de ser é que, na maior parte delas, a ideia de ser não se apresenta sob um aspecto único. Sem dúvida, poder-se-ia dizer que em Kierkegaard, em Gabriel Marcel, não encontramos esta preocupação de distinguir os modos nos quais o ser se apresenta. Mas se considerarmos Jaspers, Heidegger e em seguida Sartre, nós vemos que estes filósofos se preocupam em notar as diferentes espécies de ser que se apresentam em nós.

Encaremos, por exemplo, Jaspers. De um ponto de vista formal  , ele distingue o ser-objecto, o ser-sujeito e o ser em si. De um ponto de vista mais próximo dos conteúdos das diferentes formas de ser, ele distingue aquilo a que chama Dasein, isto é, o ser particular e determinado. Na verdade, este ser particular e determinado nunca é completamente particular e determinado. Tende continuamente a dirigir-se segundo fins, está ligado a um corpo que ele só pode explicar a si próprio pelo conjunto da vida. Mas, apesar disso, aí se encontra como ponto de partida o ser particular e determinado. Há em segundo lugar o que Jaspers chama o ser da consciência em geral, ou seja o ser na medida como é estudado intelectualmente, e especialmente pelas ciências e pelas filosofias racionais. É todo o domínio das ciências e da filosofia intelectual que há-de ser posto sob a rubrica da consciência em geral. Depois há a existência, que não se reduz nem ao ser particular e determinado, nem ao ser da consciência em geral. Ora, em cada um de nós, há estes três seres. Sentimo-los coexistir, e constituem todos três o ser que somos. Então unidos um ao outro de uma certa maneira, e, ao mesmo tempo, lutam um contra o outro. Só podemos ter consciência da existência por uma espécie de luta contra o Dasein, contra o ser particular determinado, e por uma luta contra a consciência, em geral, como ela se manifesta na ciência. Eis, portanto, três espécies de ser que nós somos. Mas nós próprios não seríamos se não houvesse outra coisa para além de nós, e esse é um dos ensinamentos que Jaspers extrai da feno-menologia. Nós só existimos e somos na medida em que existe outra coisa além de nós. Há o mundo e há a transcendência. Nós não podemos ser se o mundo não é. Neste ponto, encontramos em Jaspers e em Heidegger a mesma afirmação. E nós não podemos ser se a transcendência para a qual propendemos não for.

Deste modo, vemos que há cinco formas de ser, três que nós somos, duas que não somos. E as três que somos não podem ser sem as duas que nós não somos.

Não chegamos a uma ideia única do ser, chegamos sempre a esta multiplicidade de seres. E, neste sentido, podemos dizer que há aí um malogro da ontologia. Podemos dizer que a filosofia de Jaspers é ao mesmo tempo uma ontologia do malogro e um malogro da ontologia. A ontologia é necessária, mas encalha fatalmente. Porque constituir ontologias é o contrário de constituir uma ontologia. Um conjunto de ontologias é completamente o contrário de uma ontologia.

Acrescentemos, contudo, que, para Jaspers, este próprio malogro nos revelará a transcendência, que o malogro da ontologia nos revela o ser, que neste sentido o malogro da ontologia é ontologia.

Se agora encararmos o papel da ideia de ser em Heidegger, vemos que ele parte do facto de nós termos uma ideia do ser, de termos um entendimento do ser, o que ele chama Seinsverständnis  . E é porque o nosso ser tem esta percepção da ideia de ser que todo o conhecimento é possível. A ideia de ser é um a priori   de todo o conhecimento.

Não é um entendimento puramente intelectual. Esta ideia de ser está posta em questão, posta em jogo e em risco, por assim dizer, em todas as nossas acções. Na meditação filosófica que é a própria essência do homem comprometemos o nosso ser, pomos o nosso ser em risco. Entra no nosso ser, é do nosso próprio ser e está para além do próprio ser. Arriscamo-nos a nós próprios, e nós próprios somos talvez essenciais para que o ser seja. Num certo sentido, o Sein   não seria sem o Dasein, como, por outro lado, o Dasein não seria sem o Sein.

Assim, por outro lado, há um entendimento natural do ser de que partimos, e, por outro lado, há um perigo para nós na ideia de ser da qual somos portadores para a nossa meditação e para toda a nossa acção.

E porque o homem é que pode haver uma ontologia, e é toda a questão do realismo e do idealismo que aqui poderia ser posta. Heidegger é num sentido, se assim se quiser, realista, porque há sendos que são independentes de nós: que tenhamos visto os astros, ou que não os tenhamos visto, esses astros como sendos são. Mas, no entanto, se não houvesse homem, não haveria ser. Assim, o ôntico é independente do homem, mas o ontológico não é independente, e o ôntico no seu ser depende do ontológico; porque estes sendos só podem ser concebidos como sendos porque há um sendo que pensa o ser. Senão e ser são pois dois termos em que cada um é pela sua relação com o outro.

O existente autêntico é esse, precisamente, que tem o entendimento daquilo que Heidegger chama a diferença onto-ontológica, isto é, precisamente a diferença entre os sendos particulares e o ser. Estes dois termos devem ser sempre distintos e ao mesmo tempo ligados, e o problema filosófico fundamental consiste em procurar o ser. A única questão filosófica, diz Heidegger, aliás não fazendo mais que seguir um passo de Aristóteles que ele gosta de citar, é a questão do ser. E essa pergunta tomará a forma desta: que se quer dizer quando se diz que o ser é o ser do sendo?

Como, segundo Heidegger, abordar a questão do ser? É preciso distinguir dois momentos no pensamento de Heidegger, o momento em que ele escreve o seu livro fundamental, Sein und Zeit  , e, por outro lado, o momento actual, quer dizer, aquele que é expresso no seu último livro, Holzwege  .

O que ele diz em Sein und Zeit  , e o que de resto ele poderia repetir ainda hoje, é que só podemos abordar a pergunta do ser conhecendo este sendo, este ser que nós somos. E preciso pois que procuremos primeiro o ser do sendo que nós somos. E Sein und Zeit é inteiramente consagrado à procura deste ser do sendo que nós somos, e chega a esta conclusão que nós somos essencialmente preocupação; da ideia de preocupação podemos chegar à ideia de temporalidade; nós somos essencialmente temporalidade.

Que quer ele dizer quando diz que somos preocupação? Quer dizer que estamos sempre voltados para o futuro, que olhamos sempre para além do presente, mas que ao mesmo tempo somos condicionados pelo nosso passado. Estamos numa situação, o presente, que é apenas uma junção da preocupação do futuro e do facto de termos de tomar em conta o passado. Teremos de reflectir sobre cada um destes termos.

Dizer o que dissemos é dizer que a preocupação implica o tempo. Procurando o ser do sendo que nós somos, encontramos a preocupação e por ela o tempo. E Heidegger não conclui que o ser é o tempo, mas que o tempo é horizonte a partir do qual podemos pôr o problema do ser.

Ele não diz que ser e tempo são idênticos. Ê que na verdade, o sendo que nós somos não é mais que uma das formas de sendo, e vamos ver que o mesmo problema que se punha para Jaspers se põe para Heidegger. Há diferentes formas do sendo.

Há o Dasein, que já não é definido por Heidegger como o ser determinado particular, como é para Jaspers. O Dasein somos nós próprios, é a existência. Há pois uma diferença fundamental entre o emprego do termo Dasein em Heidegger e o emprego do termo Dasein em Jaspers.

Mas o que existe não somos só nós, não há simplesmente o Dasein, a existência, há o que nós vemos, o que Heidegger chama o Vorhanden  , as coisas manifestadas, como as montanhas, as nuvens, os cursos de água. Há o Zuhanden, quer dizer, as ferramentas, os instrumentos. Há os seres viventes. Há os seres matemáticos, que subsistem, que não são falando com propriedade. Há, pois, fora de nós, três outras formas de sendo, cada uma das quais uma espécie de ser diferente. E a questão consiste então em saber se se poderá reduzir estas diferentes formas do sendo a nós próprios. É o problema do idealismo e do realismo que se poria e, para dizer a verdade, não é resolvido por Heidegger. Heidegger pensa que é possível evitar o pôr-se deste problema, que estes dois termos «idealismo» e «realismo» não correspondem finalmente a nada e que é necessário colocarmo-nos para além deles. E tem, sem dúvida, razão nesta ambição propriamente dita, mas a impressão que normalmente pode ter o leitor é a de que em certos casos Heidegger é idealista, noutros realista e que ele não foge a este problema, ao qual, na sua opinião  , é preciso fugir.

Vejamos, para precisar um pouco a nossa ideia, o que podemos dizer sobre as relações entre estas diferentes formas de ser em Heidegger.

Primeiro há uma dessas formas de ser que pode, evidentemente, ser reduzida a uma das outras. O Vorhanden, o espectáculo, não passa de uma ideia derivada, e o que aparece ao primeiro contacto é um mundo de obstáculos e de instrumentos; é só gradual e lentamente que constituímos um mundo puramente espectáculo; ao século XVI e ao século XVII coube a tarefa da constituição deste mundo. O que primitivamente há é, pois, o mundo de obstáculos e de utensílios. E para ir deste mundo ao do espectáculo é preciso suprimir qualquer coisa no mundo dos obstáculos e dos utensílios. É preciso fazer deles coisas simplesmente contempladas.

Resta saber se esta forma de ser, o Zuhanden, pode ser reduzida completamente à sua relação com a existência e se as outras formas de ser, das quais Heidegger nos fala muito pouco, lhe podem ser reduzidas.

Em primeiro lugar, a subsistência dos objectos matemáticos deriva muito provavelmente para Heidegger do mundo dos obstáculos e dos utensílios, ainda que seja preciso fazer intervir um certo a priori necessário para o destacar.

Resta, porém, o mundo da vida. Como reacção em parte contra as filosofias da vida que precederam o aparecimento da filosofia da existência, Heidegger pensa que a ideia da vida não é uma das ideias com o auxílio das quais se podem resolver os problemas. Muito pouco podemos dizer da vida. Ela é a ideia que mais problemas nos levanta. Ainda não estamos preparados para resolver o problema da vida.

Se chegássemos a resolvê-lo, ficaria de pé o problema de saber se a essência da vida não é a preocupação, assim como a essência do sendo que nós somos, a essência do Dosem. Mas Heidegger não chegou a este ponto do problema.

Tal é a posição de Heidegger, segundo pensamos, no fim da sua meditação tal qual está descrita em Sein und Zeit. Vimos o horizonte a partir do qual se pode pôr o problema do ser, não chegamos a resolver o problema do ser, porque sabemos apenas que o ser do sendo que nós somos é a preocupação: mas não sabemos ainda muito claramente se podemos dizer que o ser do sendo que nós somos é também o ser dos outros sendos.

Em Holzwege, a maneira de abordar o problema parece um pouco diferente. Pode-se contudo ver como ele está ligado ao que Heidegger disse precedentemente. Ele disse sempre que o único problema da filosofia é o problema do ser, mas nota que não podemos resolver o problema do ser porque o nosso ir ao encontro do ser é num sentido impossível: o ser revela-se-nos de certo modo pela sua ausência. O ser é presença e ausência ao mesmo tempo, ele revela-se, mas nunca se revela completamente, e pode-se mesmo dizer que ele se esconde. Eis porque não pode haver resposta para o problema do ser, só pode haver problema a respeito do ser. A tarefa da filosofia é antes aperceber este problema que trazer-lhe uma solução, e a característica do ser humano contemporâneo é só poder dominar a presença do ser pela sua ausência. Além disso, veremos como o ser, dando-se sucessivamente como presença, como representação, como vontade de poder, compreende uma temporalidade profunda das revelações do ser.

Em Sartre vemos dificuldades da mesma ordem, baseadas, como em Jaspers e Heidegger, nas diferenças fundamentais na ideia do ser, ou, melhor, nas ideias do ser. Há duas espécies de ser, o ser em si e o ser para si. Um é inteiramente plenitude; o outro, ausência e vacuidade. Um é o ser propriamente dito, se assim se quiser, o outro é o nada. Há, de uma parte, o estático, de outra parte, um dinamismo incessante, que é antes ausência que presença. Mas também neste ponto se põe o problema do idealismo e do realismo. Vemos em que sentido e por que razões Sartre foi levado a afirmar a existência do «em si». Ele foi levado a isso por duas razões. Primeiro por uma espécie de preocupação epistemológica de postular uma realidade independente do conhecimento. Para que haja conhecimento é preciso que haja afirmação de qualquer coisa que é independente do conhecimento e que é o «em si». E, por outro lado, a observação de alguns dos nossos sentimentos o conduziu a esta afirmação, que há em nós uma espécie de nostalgia do estático, do repouso, de uma plenitude no repouso. Assim, o «para si» tende para o «em si», e, por outro lado, psicologicamente, o «para si» tende para o «em si».

Mas, se vimos os motivos que tem Sartre para admitir o «para si» e o «em si», entende-se menos como ele resolveria o problema que consistiria em saber qual destes dois modos de ser é anterior ao outro. Se ele diz que é o «em si», e que o «para si» é uma espécie de buraco no «em si», temos uma resposta realista. Se, pelo contrário, ele disser que é o «para si», temos uma resposta idealista.

O que temos a mostrar principalmente é que esta ideia de «em si», motivada por duas preocupações, uma epistemológica, a outra psicológica, é sobretudo uma resposta a estas preocupações, mais do que a constatação de uma realidade. Um Heraclito, um Hegel, um Bergson  , demonstraram que nada há estático, que só há o que Sartre entende pelo «para si». Assim se compreendem os motivos pelos quais ele afirma um «em si». Mas não se vê muito bem que haja uma legitimação na afirmação do cem si».

Se repensarmos agora a ideia que enunciamos há pouco de uma espécie de oscilação entre o idealismo e o realismo tanto em Sartre como em Heidegger, poderíamos talvez legitimar esta oscilação vendo que a filosofia da existência é uma filosofia da ambiguidade, porque a própria existência é ambiguidade.

Para retomarmos o que dissemos acerca da ideia de ser e o resumirmos, podemos, pois, dizer que, em Kierkegaard, o ser era o Outro absoluto em redor do qual o nosso pensamento gira como que fascinado sem nunca o poder agarrar, e há em todos estes filósofos esta mesma fascinação do ser e também este mesmo malogro perante o ser, uma vez que só temos diante de nós formas disjuntas do ser. Esta disjunção encontramo-la em Jaspers. Nós encontramo-la em Heidegger e encontramo-la em Sartre. Estamos pois perante ontologias, mas poderíamos dizer ontologias frustradas e que se sabem frustradas, que se julgam forçadamente frustradas. É, aliás, este talvez o significado do título do último livro de Heidegger, Holzwege, que significa qualquer coisa como «Caminhos que não conduzem a parte alguma», «Caminhos perdidos». Não podemos atingir o ser.

A filosofia da existência é caracterizada por uma união profunda do existencial e do ontológico. Este ontológico, como tal, será, por sua vez, caracterizado de uma dupla maneira: de um lado pelo facto de ser indemonstrável, de ser postulado e não demonstrado; em segundo lugar, pelo facto de em Heidegger, em Jaspers, em Sartre, ele ser múltiplo. Partindo da primeira observação, poderíamos dizer que a posição deste ontológico é um malogro para a razão: partindo da segunda, poderíamos dizer que é um malogro para a própria ontologia; poderemos ainda chamar ontologia à afirmação de múltiplas categorias de seres? A ideia de ontologia no plural não é a negação da própria ontologia?

Da ideia de malogro devemos passar à ideia de transcendência. O nosso malogro é o sinal de que há transcendência. Que a existência esteja sempre inclinada para o ser, nisso consiste a sua transcendência. E Jaspers nota com razão que as filosofias da existência não constituem o que ele chama uma absolutização da existência. O materialismo é uma absolutização da matéria na medida que reduz tudo à matéria. O idealismo é uma absolutização do espírito, na medida que reduz tudo ao espírito. Mas as filosofias da existência não reduzem tudo à existência, porque a existência deve sempre definir-se em relação a outra coisa que não é a existência, em relação à transcendência.

Vimos que, em Kierkegaard, a subjectividade se aguça e intensifica na relação com outro termo diferente dela. O pensador subjectivo está sem dúvida concentrado no seu pensamento, mas nesta concentração ele tenta atingir o Outro absoluto. A subjectividade no seu ponto extremo faz nascer a objectividade. Quando eu estou lançado para o extremo, por essa mesma razão surge o ser, e é pela minha relação com ele que eu estou lançado.

A ideia de transcendência não tem, evidentemente, o mesmo sentido em Kierkegaard que reveste em todos os aspectos da filosofia de Heidegger. E podemos ver que em Jaspers encontramos sentidos da palavra «transcendência» que às vezes estão próximos dos de Kierkegaard e às vezes próximos dos de Heidegger.

Mas para compreender o lugar da ideia de transcendência nas filosofias da existência temos de, por assim dizer, partir de três filósofos ao mesmo tempo: de Kierkegaard, como acabamos de o fazer, de Husserl e também de Kant.

Em Husserl há a afirmação que o pensamento é sempre dirigido para outra coisa diferente do pensamento. E Heidegger diz que esta ideia de intencionalidade tal qual se apresenta em Husserl se fundamenta numa ideia mais profunda que a ideia de intencionalidade, que é a própria ideia de transcendência.

No seu livro sobre Kant, Heidegger desenvolve a ideia de que só se pode verdadeiramente compreender o que Kant chama o transcendental   vendo no transcendental um encaminhamento para o ontológico, e que Kant, apesar das aparências, não é um teórico do conhecimento, mas um teórico do ser.

Eis, pois, três origens históricas do papel da ideia de transcendência nos filósofos da existência.

A que é que Jaspers chama transcendência? É preciso aqui distinguir dois sentidos. Há a transcendência como domínio do ser — e nós encontramos aqui alguma coisa de análogo ao Outro absoluto de Kierkegaard — e há o movimento de transcendência que nós realizamos; e encontramos aqui um sentido da palavra análogo ao que será empregado às vezes por Heidegger e por Sartre quase sempre. Primeiro vamos estudar a transcendência como domínio do ser, objecto do terceiro volume da Filosofia de Jaspers, aquele que tem precisamente por título Transcendência.

Há para além do domínio cientifico e para além do domínio da existência o que Jaspers chama a transcendência. E que a transcendência fique para além do domínio científico tal qual ele o define, quer dizer, como implicando sempre alguns postulados particulares, isso é evidente. Que ela esteja para além do domínio da existência e de que maneira o pode estar, eis o que requer mais algumas explicações.

O domínio da existência é o domínio do possível, não do possível intelectual, mas do possível vivido, do possível na medida em que este é o que na nossa acção se quer. E Jaspers fala sempre da existência possível. A consideração científica move-se no domínio do que ê, mas cada vez que nós nos movemos no domínio da existência movemo-nos no domínio de qualquer coisa que está prestes a ser, mas que ainda não é. Havemos, efectivamente, de ver que a ideia de futuro, a ideia de projecto, a ideia de possível, são essenciais à ideia de existência. Somos aquilo que fizermos, somos o que vamos ser, o que estamos prestes a ser, ou ainda o que temos de ser.

E é por isso que só há existência livre. A ideia de existência está ligada à ideia de liberdade tanto para Jaspers como para Kierkegaard, e é esta uma das razões por que eles se opõem ao positivismo, por um lado, e ao idealismo absoluto, por outro lado.

Mas o existente, no que Jaspers chama as situações-limites, perante o sofrimento, perante a morte, perante a própria contradição que ele sente em si, perante o próprio problema da verdade e da fé, sente que há qualquer coisa que não é ele e que é diferente de todos os outros existentes, e é o domínio da transcendência.

Isto pode ver-se particularmente a propósito do problema da verdade e da fé. O existente só existe na medida em que se devote, se consagre, a uma verdade que sinta única, que é a única verdade pela qual deve sacrificar-se. Mas ele sabe ao mesmo tempo muito bem que outros se devotam, e são existentes porque se devotam e se consagram a verdades que não são a sua e que são para eles a única verdade. Então é preciso pensar que para além de cada um há qualquer coisa que não podemos atingir, a transcendência, na qual se unirão de uma maneira desconhecida para nós todos os projectos, todas essas diferenças, todos esses únicos que nós somos.

Este domínio da transcendência será um domínio que estará situado para além da possibilidade e da liberdade, para além da escolha. A liberdade, a escolha, a possibilidade, morrem neste domínio da transcendência que nos limitamos a afirmar, sobre a qual nada podemos dizer, ou pelo menos, diz Jaspers, só podemos exprimir-nos por tautologias, por círculos viciosos, por antíteses, por toda a espécie de meios contornantes.

Assim, para além de nós próprios, descobrimos alguma coisa pela qual existimos, mas sobre a qual nada podemos verdadeiramente dizer a não ser com o auxílio de absurdos. E o que Shakespeare, por exemplo, nos mostra quando diz: «O resto é silêncio.» O resto é o que é absolutamente impermeável ao espírito.

Temos pois em Jaspers o equivalente do Outro absoluto em Kierkegaard, com a diferença de que já não se trata aqui do deus da religião revelada, mas de qualquer coisa que não podemos absolutamente designar e que é o último plano no qual tudo se destaca.

E, ao mesmo tempo, em Jaspers há um segundo sentido da palavra «transcendência», na medida em que ele caracteriza o movimento que realizamos incessantemente para nos ultrapassarmos a nós próprios [Para distinguir entre os diversos modos da transcendência neste segundo sentido, permito-me remeter para o meu estudo La pensée de l’existence (O Pensamento da Existência) (Flammarion, 1952)]. O existente realiza constantemente um movimento de transcendência, ultrapassa-se sem cessar, como disse Nietzsche  , ao qual se liga Jaspers, ao mesmo tempo que se liga a Kierkegaard.

Vemos, pois, em Jaspers um duplo sentido da palavra «transcendência».

Em Heidegger reencontramos a palavra «transcendência», mas, nele, ela tem múltiplos empregos: há aqui múltiplos movimentos de transcendência. O existente transcende incessantemente, e é por isso que ele é existente. Dissemos que existir, para Heidegger, é estar fora de si, é ser no mundo. De resto, não é preciso representar-se o movimento supondo um eu no qual se estaria primeiro encerrado e que se transcenderia em seguida, porque este eu não está encerrado em si próprio: está sempre fora de si próprio, ele é transcendência. Assim, eis um modo de transcendência que aparece como absolutamente essencial à existência, é a transcendência para o mundo, é o que define o próprio existente, segundo Heidegger.

Mas há mais. Existimos na medida em que estamos em comunhão com outrem. Há o Mitsein  , que é essencial ao Dasein.

Em terceiro lugar, e isto é tão essencial, pelo menos, como a transcendência para o mundo, estamos incessantemente em transcendência para o futuro, e lembramo-nos do que dissemos acerca da importância da ideia de futuro e de possível nas filosofias da existência.

Assim estamos sempre ao pé do mundo, estamos sempre com os outros, dirigimo-nos sempre para o futuro. Tais são os três primeiros sentidos da palavra «transcendência», e estes três primeiros sentidos ligam-se ao que vimos em Jaspers como o segundo sentido da palavra «transcendência». Ultrapassamo-nos incessantemente a nós próprios. Mas há ainda dois sentidos da palavra «transcendência» em Heidegger, que vão aproximar-nos do primeiro sentido de Jaspers e do sentido clássico da palavra «transcendência». Continuamente nós transcendemos para o ser. Transcendemos para o ser pela mesma razão que temos em nós este entendimento da diferença ontológica que nos permite postular o ser como diferente de todos os senãos. E, ao mesmo tempo, sabemos que existimos neste sentido em que estamos fora do nada, transcendemo-nos a nós próprios fora do nada. Restaria saber — reservamos o problema para mais tarde — o que é o nada. Não é finalmente a mesma coisa que o ser? Neste caso, estas duas últimas transcendências viriam identificar-se uma com a outra.

Mas neste momento vemos que temos cinco transcendências, cuja transcendência para o ser está bastante próxima do sentido vulgar da palavra.

Ora, vários destes diferentes sentidos da palavra «transcendência» vamos encontrá-los de novo em Sartre, que fala muitas vezes de transcender para o mundo, de transcender para o futuro.

Assim, partimos nestas breves observações a respeito da ideia de transcendência do Outro absoluto de Kierkegaard, passamos pelos dois sentidos da palavra «transcendência» em Jaspers, para ver as cinco transcendências de Heidegger, das quais somente as duas últimas lembram a transcendência primitiva tal qual é compreendida clàssicamente e outras três, como a transcendência sartriana, são o que se pode chamar transcendências niveladas.

Tratar-se-ia de saber se os filósofos da existência tomaram a palavra «transcendência» num sentido legítimo. Gabriel Marcel, opondo-se neste ponto a Heidegger e a Sartre, diz que não é legitimo tomar a palavra «transcendência» nos diferentes sentidos em que foi por eles tomada, que o termo «transcendência» se aplica essencialmente a Deus, na medida em que ele ultrapassa todas as qualificações que podemos estabelecer. Gabriel Marcel é partidário do sentido clássico da palavra «transcendência».

Restaria perguntar se, de uma certa maneira, Heidegger não é mais fiel à própria origem da palavra «transcendência» que este sentido clássico, se este não remonta a um sentido mais primitivo. A palavra «transcender» implica um movimento de subir e, por consequência, neste sentido pode dizer-se que a observação de Heidegger é justa: só o Dasein transcende, porque Deus, precisamente porque está para além, não podemos dizer que transcende. Transcender é efectuar um movimento e somos nós que efectuamos esse movimento de transcendência.

Eis em que sentido se poderia dizer que os filósofos da existência regressam a um sentido mais primitivo, mais original, da palavra «transcendência».


Ver online : Jean Wahl