Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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Sloterdijk (IT:28-29) – eros e thymos

domingo 21 de junho de 2020

Quem se interessa pelos homens como portadores de emoções orgulhosas e autoafirmativas deveria se decidir por cortar os nós do erotismo sobrecarregado. Neste caso, então, decerto é preciso retornar ao ponto de vista fundamental da psicologia filosófica dos gregos. Segundo essa psicologia, a alma não se expressa apenas no eros   e em suas intenções para com o uno e os muitos, mas também e muito mais nas mobilizações do thymós. Enquanto o erotismo aponta caminhos em direção aos “objetos” que nos faltam e por meio de cuja posse ou proximidade nos sentimos agraciados, a timótica revela para os homens as vias sobre as quais eles fazem valer aquilo que possuem, podem, são e querem ser. De acordo com a convicção dos primeiros psicólogos, o homem foi inteiramente criado para o amor e isso aconteceu de duas formas: conforme o eros elevado e unificador, uma vez que a alma é marcada pela lembrança de uma perfeição perdida; e conforme o eros popular e dispersivo, uma vez que a alma está constantemente submetida a uma pluralidade multicolorida de “desejos” (melhor, de complexos de apetite-atração). De maneira nenhuma ele deve se entregar apenas aos afetos desejantes. Com ênfase igualmente intensa, ele deve despertar para as exigências de seu thymós, se necessário, até mesmo à custa das inclinações eróticas. Ele é desafiado a preservar sua dignidade e a angariar para si tanto autoestima quanto consideração dos outros sob a luz de critérios elevados. Isso é assim e não pode ser de outra forma, porque a vida exige de cada indivíduo que ele suba no palco da existência e faça valer suas forças entre os seus iguais, tanto para seu próprio proveito como para o proveito comum.

Quem estivesse disposto a suspender a segunda determinação do homem em favor da primeira se desviaria da necessidade de uma dupla formação psíquica e transverteria a relação das energias em meio à administração interna — para o prejuízo do senhorio. Foi antes de tudo nas ordens religiosas e nas subculturas embriagadas de humildade, nas quais belas almas se enviavam mutuamente saudações de paz, que no passado as pessoas observaram tais inversões. Nestes círculos etéreos, o campo [28] timótico conjunto foi bloqueado pela censura à superbia [1], enquanto as pessoas preferiam se regalar com os encantos da modéstia. Honra, ambição, orgulho, elevada autoestima — tudo isso foi escondido por detrás de uma espessa parede de prescrições morais e de “conhecimentos” psicológicos que se encaminhavam todos em conjunto para o desterro do chamado egoísmo. O ressentimento já precocemente instituído nas culturas imperiais e em suas religiões contra o eu e sua inclinação para fazer valer a si e o que é seu, ao invés de ser feliz na subordinação, desviou a atenção por não menos de dois mil anos da compreensão de que o tão vilipendiado egoísmo representava frequentemente apenas o caráter incógnito das melhores possibilidades humanas. Somente Nietzsche   cuidou para que surgissem novamente relações claras nessa questão.

De maneira notável, o consumismo atual alcançou o mesmo alijamento do orgulho em favor do erotismo, sem quaisquer desculpas altruístas, holistas e nobres, uma vez que compra dos homens o seu interesse   por dignidade por meio de facilidades materiais. Assim, o constructo de início completamente desprovido de fidedignidade do hommo oeconomicus chega efetivamente a sua meta junto ao consumidor pós-moderno. Quem não conhece ou não deve conhecer mais nenhum desejo senão aqueles que, para aludir a Platão, provêm da “parte” erótica ou desejante da “alma”, é um mero consumidor. Não é à toa que a instrumentalização do nu é o sintoma-diretriz da cultura do consumo, uma vez que a nudez sempre é acompanhada por um impacto de desejo. Na maioria das vezes, porém, os clientes conclamados para a ânsia não estão desprovidos de forças de defesa. Eles atenuam o ataque duradouro à dignidade de sua inteligência com uma ironia igual mente duradoura ou com uma indiferença adquirida com o aprendizado.

[Excerto de SLOTERDIJK  , Peter. Ira e Tempo. Ensaio político-psicológico. Tr. Marco Casanova  . Rio de Janeiro: Estação Liberdade, 2012, p. 28-29]


Ver online : IRA E TEMPO


[1Em latim no original: “soberba”. (N.T.)