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Ortega y Gasset: A VIDA PESSOAL

quarta-feira 23 de março de 2022

Extrato do livro "O Homem e a Gente". Trad. J. Carlos Lisboa. Livro Ibero-Americano, 1960.

Não, a vida não é existir só a minha mente, existirem as minhas ideias: é totalmente o contrário. A partir de Descartes, o homem ocidental tinha ficado sem mundo. Mas viver significa ter de ser fora de mim, no absoluto fora que é a circunstância ou mundo: é ter de, querendo ou não, enfrentar-me e chocar-me, constantemente, incessantemente com quanto integra esse mundo: minerais, plantas, animais, os outros homens. Não há remédio. Tenho de atracar-me com isso tudo. Tenho velis nolis de ajustar-me, pior ou melhor, com tudo isso. Mas isso, — encontrar-me com tudo e necessitar ajustar-me com tudo, — isso me acontece ultimamente a mim só, e tenho de fazê-lo solitariamente, sem que no plano decisivo, — note-se que digo no plano decisivo, — ninguém me possa dar ajuda.

Isso quer dizer que já estamos muito longe de Descartes, de Kant  , de seus sucessores românticos, — Schelling  , Hegel  , daquilo que Carlyle chamava "o luar transcendental  ". Nem é preciso dizer que estamos muito mais longe ainda de Aristóteles  .

Estamos, pois, longe de Descartes, de Kant. Estamos mais longe ainda de Aristóteles e de Santo Tomás. Porventura é nosso dever e nosso destino, — não só o dos filósofos, mas o de todos, — distanciarmo-nos, distanciarmo-nos. . .? Não vou responder agora, nem sim, nem não. Nem sequer vou revelar de que, querendo ou não, havíamos de nos distanciar. Fica aí esse enorme ponto de interrogação, — com o qual pode cada um fazer o que lhe agrade, — usá-lo como um laço de gaúcho para captar o porvir ou simplesmente enforcar-se nele.

A solidão radical da vida humana, o ser do homem, não consiste, pois, em que não haja realmente nada mais do que ele. Ao contrário: há nada menos que o universo com todo o seu conteúdo. Há, portanto, infinitas coisas, mas, — aí está!, — em meio delas, o Homem, em sua realidade radical, está só, — só com elas e, como entre essas coisas estão os outros seres humanos, está só com eles. Se não existisse nada mais que um único ser, não se poderia dizer congruentemente que estaria só. A unicidade nada tem a ver com a solidão. Se meditássemos sobre a "saudade" portuguesa, — como é sabido, saudade é a forma galaico-lusitana de "solitudinem", de soledade, — falaríamos mais desta e veríamos que a solidão é sempre solidão de alguém, a saber, que é um ficar sozinho e um sentir falta. Assim é, a tal ponto, que a palavra com que o grego dizia meu e solitário, — Monos, — vem de moné, que significa ficar, — subentende-se: ficar sem, sem os outros. Quer seja porque se foram, quer seja porque morreram; em todo caso, porque nos deixaram, — nos deixaram… sozinhos. Ou seja porque os deixamos a eles, fugimos deles e vamos para o deserto ou para o retiro a fazer vida de moné. Daí, monakhós, monastérios e monge. E no latim solus. Meillet, cujo extremo rigor de foneticista e cuja falta de talento semântico tornam necessário que eu procure contrastar com ele minhas espontâneas averiguações etimológicas, suspeita que solus venha de sed-lus, isto é, do que fica sentado quando os demais se foram. Nossa Senhora da Soledade é a Virgem que fica sozinha de Jesus, pois o mataram, e o sermão da Semana Santa, que se chama o sermão da solidão, medita sobre a mais dolorida palavra de Cristo: Eli, Eli/lamma sabacthani — Deus meus, Deus meus, ut quid   dereliquisti me? — "Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste? Por que me deixaste só de ti?" é a expressão que mais profundamente declara a vontade de Deus de se fazer homem, — de aceitar o mais radicalmente humano, que é a sua radica) solidão. Ao lado disso, a lançada do centurião Longinos não tem tanta significação.

E este é o momento para recordar Leibniz  . Não vou, é claro, empregar nem um instante para entrar em sua doutrina. Limito-me a fazer notar aos bons conhecedores de Leibniz que a melhor tradução da sua palavra mais importante, — Mônada, — não é unidade, tampouco unicidade. As manadas não têm janelas. Acham-se fechadas em si mesmas, — isto é idealismo. Mas, em seu último sentido, a concepção de Leibniz, da mônada, se expressaria da melhor maneira chamando às manadas "soledades". Também em Homero  , um centurião dá uma lançada em Afrodite, faz manar o seu delicioso sangue de fêmea olímpica, e a faz correr gemendo ao pai Júpiter, como qualquer mocinha well-to-do. Não, não. Cristo foi homem, sobretudo, e, antes de tudo, porque Deus o deixou sozinho — sabacthani.


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