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Ortega y Gasset: A VIDA PESSOAL

quarta-feira 23 de março de 2022

Extrato do livro "O Homem e a Gente". Trad. J. Carlos Lisboa. Livro Ibero-Americano, 1960.

Tal é a verdade radical sobre o que é o mundo, porque ela expressa a sua consistência ou aquilo em que consiste originariamente, como elemento em que temos de viver a nossa vida. Tudo mais que as ciências nos digam, sobre esse mundo, é e era, no melhor caso, uma verdade secundária, derivada, hipotética e problemática, — pela simples razão, repito, de que começamos a fazer ciência depois de já estar vivendo no mundo e, portanto, sendo já o mundo isso que é. A ciência é somente uma das inumeráveis práticas, ações, operações que o homem faz em sua vida.

O homem faz ciência como faz paciência, como faz a sua fazenda, — por isso se chama assim, — faz versos, faz política, negócios, viagens, faz o amor, faz que faz, espera, isto é, faz. . . tempo e, muito mais que tudo, o homem faz ilusões para si mesmo.

Todos esses dizeres são expressão da língua espanhola mais vulgar, familiar, coloquial. Não obstante, vemos hoje que são termos técnicos numa teoria da vida humana. Para vergonha dos filósofos, é mister declarar que eles não tinham visto nunca o fenômeno radical que é a nossa vida. Sempre o deixavam para trás, e foram os poetas e romancistas, foi sobretudo o homem qualquer que reparou nela, em seus modos e situações. Por isso, aquela série de palavras representa uma série de títulos em que se nomeiam grandes temas filosóficos sobre os quais seria necessário falar muito. Pense-se na profunda questão que anuncia a expressão "fazer tempo", — portanto, nada menos que esperar, a expectação e a esperança. Está por fazer-se uma fenomenologia da esperança. Que é no homem a esperança? Pode o homem viver sem ela?. Faz alguns anos, Paul Morand me enviou um exemplar de sua biografia de Maupassant com uma dedicatória que dizia: "Envio-lhe esta vida de um homem qui n’espérait pas…" Morand tinha razão? é possível, — literal e formalmente possível, — um viver humano que não seja um esperar? Não é a expectativa a função primária mais essencial da vida? e não é a esperança o seu órgão mais visceral? Como se vê, o tema é enorme.

E não é de menor interesse   esse outro modo de vida em que o homem "faz que faz"? Que é esse estranho e inautêntico fazer, ao qual, às vezes, o homem se dedica precisamente para não fazer de verdade, inclusive o que está fazendo? — o escritor, que não é escritor, mas faz de escritor, a mulher que mal é feminina, mas faz de mulher, faz que sorri, faz que desenha, faz que deseja, faz que ama, incapaz de fazer propriamente qualquer dessas coisas.


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