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Ortega y Gasset: A VIDA PESSOAL

quarta-feira 23 de março de 2022

Extrato do livro "O Homem e a Gente". Trad. J. Carlos Lisboa. Livro Ibero-Americano, 1960.

O homem, ao achar-se vivendo, se acha tendo de ajustar-se a isso que chamamos contorno, circunstância ou mundo. Se esses três vocábulos vão diferenciando diante de nós o seu sentido, é coisa que agora não interessa. Neste momento, para nós, significam a mesma coisa; a saber, o elemento estranho ao homem, forâneo, o "fora de si", em que o homem tem de afanar-se para ser. Esse mundo é uma grande coisa, uma imensa coisa, de limites esbatidos, que está cheio até à borda de coisas menores, do que chamamos coisas e costumamos repartir em ampla e gorda classificação, dizendo que no mundo há minerais, vegetais, animais e homens. As diferentes ciências se ocupam do que são essas coisas, — por exemplo, de plantas e animais, a biologia. Mas a biologia, como qualquer outra ciência, é uma atividade determinada, de que alguns homens se ocupam, dentro já da sua vida, isto é: depois de já estarem vivendo. A biologia, — e qualquer outra ciência, — supõe portanto, que, antes de começar a sua operação, já tínhamos à vista, existiam para nós todas essas coisas. E isso que as coisas são, para nós, originariamente, primeiramente, em nossa vida de homem, antes de sermos físicos, mineralogistas, biólogos, etc, representa o que essas coisas são em sua realidade radical. O que, a seguir, as ciências nos digam sobre elas, será tudo tão plausível, tão convincente, tão exato quanto se queira, mas é evidente que o retiraram por complicados métodos intelectuais, daquilo que, inicialmente, primordialmente e sem mais, as coisas eram para nós, em nosso viver. A Terra será um planeta de certo sistema solar pertencente a certa galáxia ou nebulosa, e estará feita de átomos, cada um dos quais contém, por sua vez, uma multiplicidade de coisas, de quase-coisas ou enigmas que se chamam elétrons,. prótons, mésons, neutrons, etc. Mas nenhuma dessas sabedorias existiria, se a Terra não pre-existisse a elas como componente da nossa vida, como algo com que temos de nos ajustar e, portanto, com algo que nos importa, porque nos oferece certas dificuldades e nos proporciona certas facilidades. Isso quer dizer que, nesse plano prévio e radical de que as ciências partem e que dão por suposto, a Terra não é nada disso que a física, que a astronomia nos diz, mas é aquilo que me sustem firmemente, diversamente do mar, em que me afundo (a palavra terra — terra — vem de tersa, segundo Bréal, "a seca"), aquilo que talvez eu tenha de subir penosamente, porque é uma ladeira, aquilo que desço comodamente, porque é uma descida, aquilo que me distancia e separa lamentavelmente da mulher que amo, ou que me obriga a viver perto de alguém que detesto, aquilo que faz com que algumas coisas estejam perto de mim e outras longe, que umas estejam aqui e outras aí e outras ali, etc, etc. Estes e muitos outros atributos parecidos são a autêntica realidade da Terra, tal e qual •ela me aparece no âmbito radical que é a minha vida. Notem que todos esses atributos —, suster-me, ter de subir ou descer a ladeira, ter de cansar-me em ir por ela até onde está aquilo de que necessito, separar-me dos que amo, etc. — se referem todos a mim, de sorte que a Terra, em sua primordial aparição, consiste em puras referências de utilidade para mim. O mesmo encontrarão, se tomarem qualquer outro exemplo: a árvore, o animal, o mar ou o rio. Se fizermos abstração do que são em referência a nós, quero dizer, de seu ser para uma utilidade nossa, como meios, instrumentos ou, vice-versa, estorvos e dificuldades para nossos fins, ficam sem ser nada. Ou, expresso em outra forma-, tudo o que compõe, enche e integra o mundo em que, ao nascer, o homem se encontra, não tem por si condição independente, não tem um ser próprio, não é nada em si, — mas somente um algo para ou um algo contra os nossos fins. Por isso, não devíamos tê-lo chamado de "coisas", diante do sentido que esta palavra tem hoje para nós. Uma "coisa" significa algo que tem o seu próprio ser, à parte de mim, à parte do que seja para o homem. E se isso acontece com cada coisa da circunstância ou mundo, quer dizer que o mundo, em sua realidade radical, é um conjunto de "algos" com os quais o homem, — eu, — pode ou tem de fazer isto ou aquilo, — que é um conjunto de meios e estorvos, de facilidades e dificuldades com que, para viver efetivamente, me encontro. As coisas não são originariamente "coisas", mas algo que procuro aproveitar ou evitar, a fim de viver e viver o melhor possível, — portanto, aquilo com que consigo ou não fazer o que desejo: são assuntos em que ando constantemente. E, como fazer e ocupar-se, ter assuntos se diz em grego práctica, prâxis  , as coisas são radicalmente prágmata e minha relação com elas, pragmática. Não há, por má ventura, vocábulo em nossa língua ou, pelo menos, eu não o encontrei, que anuncie com suficiente adequação o que o vocábulo prâgma, sem mais nada, significa. Só podemos dizer que uma coisa, enquanto prâgma, não é algo que exista por si e sem ter a ver comigo. No mundo ou circunstância de cada um de nós, não há nada que não tenha a ver com cada qual, e este tem, por sua vez, a ver com tudo quanto parte dessa circunstância ou mundo. Este está composto exclusivamente de referências a mim e eu estou consignado a tudo quanto há nele, dependendo disso para o meu bem ou para o meu mal; tudo me é favorável ou adverso, carícia ou atrito, afago ou lesão, serviço ou dano. Uma coisa é, pois, enquanto prâgma, algo que manipulo com determinada finalidade, que maneio ou evito, com que tenho de contar ou que tenho de descontar, é um instrumento ou impedimento para. . . um trabalho, um utensílio, um traste, uma deficiência, uma falha, uma trava; em suma, é um assunto em que andar, algo que, mais ou menos, me importa, que me falta, que me sobra, portanto, uma importância. Espero agora, depois de haver acumulado todas essas expressões, que comece a tornar-se clara a diferença que existe, se se faz chocar na mente a ideia de um mundo de coisas com a ideia de um mundo de assuntos ou importâncias. Num mundo de coisas, não temos nenhuma intervenção: ele e tudo nele é por si. Diversamente, num mundo de assuntos ou importâncias, tudo consiste exclusivamente em sua referência a nós, tudo intervém em nós, isto é, tudo nos importa e somente é, na medida e no modo em que nos importa e nos afeta.


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