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A GÊNESIS DA ONTOLOGIA FUNDAMENTAL DE M. HEIDEGGER

Mac Dowell: A fundamentação da metafísica através da fenomenologia da vida do espírito

Ensaio de Caracterização do Modo de Pensar de Sein und Zeit

sábado 11 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

MAC DOWELL, João A.. A Gênese da Ontologia Fundamental de Martin Heidegger. São Paulo: Edições Loyola, 1993, p. 125-138

EM DIREÇÃO DAS ORIGENS DA EXPERIÊNCIA CRISTÃ DA VIDA

a. Dos místicos medievais ao Novo Testamento

Voltando-se para o passado, a fim de reviver criticamente as etapas decisivas da história espiritual do Ocidente, Heidegger começa a executar uma tarefa, que entrevira já vagamente ao escrever a sua dissertação sobre Duns Escoto  . Naquela data, ele julgava encontrar no testemunho dos místicos medievais a expressão do verdadeiro sentido da vida, como ele mesmo a experimentava e entendia. Ele anunciara então uma interpretação filosófica da Mística de Eckhart   [1], vista sem dúvida como o modelo supremo da harmonia entre vivência espiritual e conceitualização escolástica atribuída à mundivisão medieval. E lícito conjeturar que o curso professado no semestre invernal 1919-20, sob o título “Os fundamentos filosóficos da Mística medieval” [2], constitui o cumprimento daquela promessa.

Entretanto, a esta altura Heidegger já não considera as obras dos espirituais cristãos como imagem fiel da xperiência fática da vida. Não só a Psicologia escolástica, como ele pensava outrora [3], mas também a literatura ascético-mística da Idade Média está eivada de incrustações metafísicas, estranhas aos fenômenos, que se trata de exprimir. Se é justo atribuir aos grandes representantes da Mística medieval, como mais tarde a Lutero   [4], a Pascal   [5] ou a Kierkegaard [6] a experiência vigorosa e a consciência viva do sentido da existência, como transparece nos seus escritos de edificação, enquanto se mantêm na simples descrição dos fenômenos, tão logo se passa ao nível da conceitualização e da sistematização teorética, eles caem sob o influxo de esquemas inadequados à transmissão de suas vivências [7].

A constatação deste fenômeno filosófico-cultural, que se manifesta ao longo de toda a história da civilização cristã desde a Idade Média aos tempos modernos, obriga Heidegger a confrontar-se com a grande figura que está à origem desta tradição: Sto. Agostinho  . Os resultados de tal estudo foram recolhidos nas aulas que ele consagrou, em 1921, ao tema “Agostinho e o Neoplatonismo” [8]. À margem do livro X das Confissões, Heidegger mostra como Sto. Agostinho pensa a partir da experiência da vida na sua facticidade. Para ele o sentido do homem não se determina tanto por um conteúdo objetivo (Gehalt  ), quanto pela atitude assumida na própria atuação (Vollzug  ) da vida. Entretanto Sto. Agostinho serve-se frequentemente, na expressão de sua experiência genuína da existência, de categorias neoplatônicas, que a falseiam totalmente. Nele se manifesta exemplarmente o destino do pensamento cristão que, caindo sob a tutela da filosofia grega, foi incapaz de inventar um aparelho conceitual, proporcionado à experiência da vida, própria da fé [9].

E assim que, remontando gradualmente o curso da tradição, Heidegger recorre finalmente ao próprio Novo Testamento, onde ele encontra, na sua pureza   original, num estado de teorização mínima, a compreensão cristã da vida. No inverno de 1920-21, o seu curso, intitulado “Introdução à fenomenologia da Religião”, é dedicado ao comentário de duas passagens dos escritos mais antigos do Novo Testamento (1 Ts 4,13 - 5,11; 2Cor 12,1-10). Através da análise destas passagens ele mostra os traços característicos da experiência cristã.

Aos tessalonicenses S. Paulo fala da escatologia cristã: a vida do fiel funda-se na esperança do retorno de Cristo. Recusando-se a datar este acontecimento, antes insistindo sobre o seu caráter repentino e inesperado, o Apóstolo propõe uma interpretação “kairológica”, não “cronológica”, da história. O sentido da “parusia” não é tanto o de um fato exterior no fim da sucessão do tempo natural, da vida terrena do homem. A vida nova, a ressurreição, que ela traz consigo, acontece já no “hoje” da decisão da fé. Esta antecipação existencial do futuro, do fim, da morte, que domina a antropologia do Novo Testamento, fornecerá a Heidegger a chave de sua concepção da temporalidade da existência humana. A função da esperança cristã no advento do Senhor não é tanto a de fornecer uma explicação objetiva da vida, como a de despertar continuamente o fiel para a decisão. Trata-se de uma experiência da vida na sua facticidade histórica, que coloca o acento na atitude pessoal, não no conteúdo nocional e normativo. O cálculo do tempo e a fixação das condições da salvação, que permitem dormir um sono sossegado, opõem-se frontalmente à vigilância cristã, à espera do Senhor, que vem como o ladrão no meio da noite.

Na segunda epístola aos Coríntios, S. Paulo refere-se ao “aguilhão na carne”, que lhe foi dado para que não se ensoberbecesse com a alteza das revelações que recebera. Heidegger vê nestas palavras, tão importantes para Kierkegaard, outro traço essencial da experiência protocristã. O fiel não se entende a partir de visões grandiosas, mas sim das fraqueza de sua vida fática, assumida na fé e na esperança.

b. O sentido da vida na experiência protocristã

Heidegger buscar de início na experiência cristã medieval o fundamento vivencial de uma metafísica, que culminasse na afirmação de Deus, como polo transcendente do espírito humano e garantia do valor do seu conhecimento. Todavia, o aprofundamento da sua análise veio transtornar completamente este plano.

Talvez fosse já desde o começo a historicidade fática da experiência cristã, que ele mesmo vivia, o que o atraía secretamente para os místicos medievais. Em todo caso, é só depois da Grande Guerra que ele reconhece como nota dominante da compreensão cristã do homem, expressa no Novo Testamento, não a afirmação de uma dimensão metafísica do espírito, de tal sorte que sua temporalidade consista na assimilação progressiva dos valores eternos, mas sim o encarar a vida como um todo de possibilidades mundanas, que cada um tem de assumir neste ou naquele projeto fundamental.

Esta historicidade peculiar da vida fática é, segundo Heidegger, a perspectiva pré-ontológica que guia secretamente a descrição concreta da existência cristã no Novo Testamento. Ela corresponde, na sua opinião  , ao fenômeno original da vida. Sua tarefa será, pois, tomar a perspectiva assim revelada como fio condutor da análise sistemática do homem. Só a fidelidade a esta intuição mestra, ao longo de toda a análise fenomenológica, possibilitará extrair da “própria coisa” as categorias que lhe são proporcionadas.


[1”Espero em outra oportunidade poder mostrar como a Mística de Eckhart só alcança sua interpretação filosófica e sua valorização a partir destas considerações e da metafísica do problema da verdade, que será tocada mais abaixo” (DS, p. 232 n. 1).

[2”Die philosophischen Grundlagen der mittelalterlichen Mystik”. Trata-se de conjeturas, uma vez que não conhecemos o conteúdo inédito destas lições.

[3Cf. DS, pp. 10s.

[4Cf. SZ, p. 10a, 190 n. 1. Lutero viu e criticou a inadequação do aparelho conceituai da teologia escolástica. Ele não foi, porém, capaz de substituí-lo, positivamente, por categorias extraídas da própria experiência cristã, cuja peculiaridade tão bem ressaltara nos seus primeiros escritos. Destarte, ele recaiu nas malhas da tradição, que pretendia superar. Cf. também O. Pöggeler, op. cit., pp. 40s.

[5Cf. SZ,p. 139 n. 1.

[6Cf. SZ, pp. 190 n. 1, 235 n. 1, 338 n. 1.

[7Cf. SZ, pp. 190 n. 1, 235 n. 1.

[8Para maiores esclarecimentos cf. O. Pöggeler, op. cit., pp. 38-45, ao qual devemos também as nossas referências ao conteúdo dos cursos “Augustinus und der Neuplatonismus” e “Einleitung in die Phänomenologie der Religion”, que será mencionado logo a seguir. Sobre S. Agostinho ver também SZ, pp. 43d-44a, 139 n. 1,171,190 n. 1, 427b.

[9Cf. SZ, p. 10a. H.-G. Gadamer, em seu artigo “Martin Heidegger und die Marburger Theologie”, publicado em Zeit und Geschichte. Dankesgabe an Rudolf Bultmann zum 80. Geburtstag, edit. por E. Winkler, Tübingen, 1964, refere do modo seguinte o conteúdo da participação de Heidegger, recentemente chegado a Marburgo como professor extraordinário, num debate da sociedade teológica daquela Universidade: “Ele disse (…) que a verdadeira tarefa da teologia, que ela precisaria reencontrar, consiste em buscar a palavra, que é capaz de chamar para a fé e na fé guardar” (p. 479).