EM DIREÇÃO DAS ORIGENS DA EXPERIÊNCIA CRISTÃ DA VIDA
a. Dos místicos medievais ao Novo Testamento
Voltando-se para o passado, a fim de reviver criticamente as etapas decisivas da história espiritual do Ocidente, Heidegger começa a executar uma tarefa, que entrevira já vagamente ao escrever a sua dissertação sobre Duns Escoto . Naquela data, ele julgava encontrar no testemunho dos místicos medievais a expressão do verdadeiro sentido da vida, como ele mesmo a experimentava e entendia. Ele anunciara então uma interpretação filosófica da Mística de Eckhart [1], vista sem dúvida como o modelo supremo da harmonia entre vivência espiritual e conceitualização escolástica atribuída à mundivisão medieval. E lícito conjeturar que o curso professado no semestre invernal 1919-20, sob o título “Os fundamentos filosóficos da Mística medieval” [2], constitui o cumprimento daquela promessa.
Entretanto, a esta altura Heidegger já não considera as obras dos espirituais cristãos como imagem fiel da xperiência fática da vida. Não só a Psicologia escolástica, como ele pensava outrora [3], mas também a literatura ascético-mística da Idade Média está eivada de incrustações metafísicas, estranhas aos fenômenos, que se trata de exprimir. Se é justo atribuir aos grandes representantes da Mística medieval, como mais tarde a Lutero [4], a Pascal [5] ou a Kierkegaard [6] a experiência vigorosa e a consciência viva do sentido da existência, como transparece nos seus escritos de edificação, enquanto se mantêm na simples descrição dos fenômenos, tão logo se passa ao nível da conceitualização e da sistematização teorética, eles caem sob o influxo de esquemas inadequados à transmissão de suas vivências [7].
A constatação deste fenômeno filosófico-cultural, que se manifesta ao longo de toda a história da civilização cristã desde a Idade Média aos tempos modernos, obriga Heidegger a confrontar-se com a grande figura que está à origem desta tradição: Sto. Agostinho . Os resultados de tal estudo foram recolhidos nas aulas que ele consagrou, em 1921, ao tema “Agostinho e o Neoplatonismo” [8]. À margem do livro X das Confissões, Heidegger mostra como Sto. Agostinho pensa a partir da experiência da vida na sua facticidade. Para ele o sentido do homem não se determina tanto por um conteúdo objetivo (Gehalt ), quanto pela atitude assumida na própria atuação (Vollzug ) da vida. Entretanto Sto. Agostinho serve-se frequentemente, na expressão de sua experiência genuína da existência, de categorias neoplatônicas, que a falseiam totalmente. Nele se manifesta exemplarmente o destino do pensamento cristão que, caindo sob a tutela da filosofia grega, foi incapaz de inventar um aparelho conceitual, proporcionado à experiência da vida, própria da fé [9].
E assim que, remontando gradualmente o curso da tradição, Heidegger recorre finalmente ao próprio Novo Testamento, onde ele encontra, na sua pureza original, num estado de teorização mínima, a compreensão cristã da vida. No inverno de 1920-21, o seu curso, intitulado “Introdução à fenomenologia da Religião”, é dedicado ao comentário de duas passagens dos escritos mais antigos do Novo Testamento (1 Ts 4,13 - 5,11; 2Cor 12,1-10). Através da análise destas passagens ele mostra os traços característicos da experiência cristã.
Aos tessalonicenses S. Paulo fala da escatologia cristã: a vida do fiel funda-se na esperança do retorno de Cristo. Recusando-se a datar este acontecimento, antes insistindo sobre o seu caráter repentino e inesperado, o Apóstolo propõe uma interpretação “kairológica”, não “cronológica”, da história. O sentido da “parusia” não é tanto o de um fato exterior no fim da sucessão do tempo natural, da vida terrena do homem. A vida nova, a ressurreição, que ela traz consigo, acontece já no “hoje” da decisão da fé. Esta antecipação existencial do futuro, do fim, da morte, que domina a antropologia do Novo Testamento, fornecerá a Heidegger a chave de sua concepção da temporalidade da existência humana. A função da esperança cristã no advento do Senhor não é tanto a de fornecer uma explicação objetiva da vida, como a de despertar continuamente o fiel para a decisão. Trata-se de uma experiência da vida na sua facticidade histórica, que coloca o acento na atitude pessoal, não no conteúdo nocional e normativo. O cálculo do tempo e a fixação das condições da salvação, que permitem dormir um sono sossegado, opõem-se frontalmente à vigilância cristã, à espera do Senhor, que vem como o ladrão no meio da noite.
Na segunda epístola aos Coríntios, S. Paulo refere-se ao “aguilhão na carne”, que lhe foi dado para que não se ensoberbecesse com a alteza das revelações que recebera. Heidegger vê nestas palavras, tão importantes para Kierkegaard, outro traço essencial da experiência protocristã. O fiel não se entende a partir de visões grandiosas, mas sim das fraqueza de sua vida fática, assumida na fé e na esperança.
b. O sentido da vida na experiência protocristã
Heidegger buscar de início na experiência cristã medieval o fundamento vivencial de uma metafísica, que culminasse na afirmação de Deus, como polo transcendente do espírito humano e garantia do valor do seu conhecimento. Todavia, o aprofundamento da sua análise veio transtornar completamente este plano.
Talvez fosse já desde o começo a historicidade fática da experiência cristã, que ele mesmo vivia, o que o atraía secretamente para os místicos medievais. Em todo caso, é só depois da Grande Guerra que ele reconhece como nota dominante da compreensão cristã do homem, expressa no Novo Testamento, não a afirmação de uma dimensão metafísica do espírito, de tal sorte que sua temporalidade consista na assimilação progressiva dos valores eternos, mas sim o encarar a vida como um todo de possibilidades mundanas, que cada um tem de assumir neste ou naquele projeto fundamental.
Esta historicidade peculiar da vida fática é, segundo Heidegger, a perspectiva pré-ontológica que guia secretamente a descrição concreta da existência cristã no Novo Testamento. Ela corresponde, na sua opinião , ao fenômeno original da vida. Sua tarefa será, pois, tomar a perspectiva assim revelada como fio condutor da análise sistemática do homem. Só a fidelidade a esta intuição mestra, ao longo de toda a análise fenomenológica, possibilitará extrair da “própria coisa” as categorias que lhe são proporcionadas.