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Cláudio Oliveira (Tudo-Todo:86-88) – “a Cadaistidade” (Jediesheit)

Entretiens et conférences

quarta-feira 7 de fevereiro de 2024, por Cardoso de Castro

Se dizemos, por exemplo, “homem inteiro” e “cada homem”, a determinação que “inteiro” acrescenta a “homem” é de natureza diferente da que é acrescentada por “cada”. A questão é saber precisamente em que consiste essa diferença. Chegamos assim, por um outro viés, à diferença entre hólon   e pân. Não mais a diferença etimológica, a diferença entre os sentidos que cada um dos termos porta em seu étimo, mas a diferença morfológica, a diferença entre os sentidos que cada um dos termos porta em sua forma, no modo como cada um deles incide sobre os termos que determina e com os quais se relaciona. São diferenças sem as quais jamais se alcançará aquela que de fato aqui se visa: a ontológica [1].

A diferença morfológica entre o adjetivo nominal e o adjetivo pronominal torna-se ainda mais sensível, quando os [86] substantivamos. Ao dizermos “o completo”, “o inteiro”, “o todo”, isso soa bem diferente de “o cada”, “o isto”, “o algum”. Digamos que soa bem menos estranho. O adjetivo nominal substantivado é um fato comum na língua. A ele corresponde, frequentemente, um substantivo, formado por sufixação, a partir do radical do adjetivo nominal. A língua tem, em geral, um conjunto de sufixos especificamente para essa função. De “o completo” chega-se a “a completu-de”; de “o inteiro” a “a inteireza”; de “o total” a “a totalidade”; de “o belo”, a “a beleza”; de “o bom”, a “a bondade”; de “o vero”, a “a verdade”.

A substantivação do adjetivo pronominal, por outro lado, é um fato bem menos comum, embora haja menos pronomes do que adjetivos na língua. E isso não é um acaso. Pronomes são palavras que podem, em geral, ser associadas a um número muito maior de palavras, quando não a todas. E isso já é uma informação fundamental sobre os pronomes: que eles são, em si mesmos, termos que estão já nesse âmbito de totalidade no sentido do em toda parte. Além disso, o fato de que eles sejam em menor número — um número aliás bem reduzido se comparado ao dos adjetivos — diz que esse tipo de palavra, na língua, é responsável por descrever um determinado conjunto de relações muito essenciais, que estão de algum modo presentes em todo dizer.

A substantivação do pronome implica que a língua se detenha sobre o sentido da função que os pronomes exercem na língua. Supondo-se que a língua chegue a “o cada”, “o isto”, “o algum” (supondo-se que se esteja de algum modo claro o que se possa querer dizer com isso), chega-se muito [87] raramente e com extrema dificuldade a “a cadaidade” [2], a “a istidade”, a “a algumidade”. Em geral, são termos forjados no bojo da reflexão filosófica, quase como uma violência contra a língua. Só com a filosofia se chega até eles. Ao dizer “o belo”, “o bom”, “o vero”, a língua não precisou da filosofia, assim como não precisou da filosofia para chegar a “a beleza”, “a bondade”, “a verdade” (mesmo que, com a filosofia, ela estabeleça com essas palavras um novo modo de relação: não é senão esse o sentido da interrogação socrática). Mas quando se fala em “o cada”, “o isto”, “o algo”, “o tudo”, “o nada”, parece que a língua chega a um outro estágio de si mesma, ao qual podemos dar, sem hesitação, o nome de filosofia. Talvez nenhuma língua tenha chegado a esse estágio antes da língua grega. E todas as outras que o fizeram, só o fizeram ao entrar em contato com ela. Talvez a filosofia [88] seja grega, em sua essência (in ihrem Wesen  ) [3], como quer Heidegger, porque só junto ao povo grego a língua chegou a uma tal radicalidade de interrogação sobre si mesma [4]. É o que lembra a afirmação de que “a filosofia é na origem de sua essência de tal modo que ela primeiro (pre)ocupou (convocou) (in Anspruch   genommen hat) o mundo grego (Das Griechentum), e só ele, para se desenvolver” [5].

Assim como a língua latina, que foi apenas a primeira delas, todas as línguas, no contato com a língua da filosofia grega, tiveram que estabelecer consigo mesmas a mesma relação de radicalidade que aí encontraram. Qualquer língua que se pretenda engajar no exercício da filosofia deve estabelecer consigo mesma tal relação, que não é outra coisa que a própria filosofia. Filosofia, aqui, entendida como a mais radical relação da língua consigo mesma. Se fazemos filosofia em língua portuguesa, é inevitável que nos detenhamos sobre essa língua com aquela mesma radicalidade.


Ver online : Cláudio Oliveira


[OLIVEIRA, Cláudio. Do Tudo e do Todo. Rio de Janeiro: Circuito, 2015]


[1Como exemplo do auxílio que a investigação etimológica e morfológica pode prestar à investigação ontológica, conferir o capítulo “Sobre a Gramática e Etimologia da palavra ‘ser’” que Heidegger faz preceder à “pergunta pela essência do ser (nach dem Wesen des Seins)” em Einführung in die Metaphysik. (Fünte, durchgesehene Auflage). Tübingen: Max Niemeyer, 1987. p. 40-56.

[2Ao buscar, em Die Frage nach dem Ding (Tübingen: Max Niemeyer, 1987. p. 12), a determinação geral de “uma cada coisa” (eines jeden Dinges) no ser uma “cada esta” (ein “je dieses” zu sein) e ao dar o nome a esta determinação geral de die Jediesheit (“a Cadaistidade”?), não é sem a seguinte observação que Heidegger o faz: wenn solche Wortbildung erlaubt ist, “se tal formação de palavra é permitida”. Cf., quanto à questão toda que envolve a reflexão sobre a relação entre o pronome demonstrativo e a coisidade da coisa, todo o item 5 (Einzelnheit und Jediesheit, “Singularidade e Cadaistidade”) dessa primeira parte da obra (“Distintas maneiras de se perguntar pela coisa”), bem como o item 6 (Das Ding als je dieses, “A coisa como cada esta”). Em todas essas passagens a discussão com Hegel e mais especificamente com o capítulo I (“Die sinnliche Gewissheit oder das Diese und das Meinen), do item A (Bewusstsein) da Fenomenologia do Espírito (Phänomenologie des Geistes. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986. p. 82-92.), é confessa, ainda que Heidegger afirme ser o princípio, nível e propósito do movimento de pensar de Hegel de outro tipo (p. 21). O que só prova que a questão aqui tratada, que não é senão a questão do isto (das Diese), portanto, a questão acerca de um pronome, é fundamental e que, cada filósofo, a sua vez, tem que com ela se defrontar.

[3HEIDEGGER, Martin, Was ist das — Die Philosophie? Pfullingen: Neske, 1992. p. 7.

[4Do diálogo da língua consigo mesma fala a conferência “O caminho para a língua” (“Der Weg zur Sprache” in Unterwegs zur Sprache, p. 239-268.9. Auflage. Stuttgart: Neske, 1990), em que Heidegger, citando uma frase do Monólogo de Novalis (“Exatamente o que é o mais próprio da língua [Das Eigentümliche, “o peculiar” mas também “o estranho”], que ela só se preocupa consigo mesma, ninguém sabe”, p. 241), entende o título do texto como uma alusão ao segredo da língua: “ela fala unicamente (einzig) e solitariamente (einsam) com ela mesma”, p. 241.

[5HEIDEGGER, Martin. Was ist das — Die Philosophie? p. 7.