Se dizemos, por exemplo, “homem inteiro” e “cada homem”, a determinação que “inteiro” acrescenta a “homem” é de natureza diferente da que é acrescentada por “cada”. A questão é saber precisamente em que consiste essa diferença. Chegamos assim, por um outro viés, à diferença entre hólon e pân. Não mais a diferença etimológica, a diferença entre os sentidos que cada um dos termos porta em seu étimo, mas a diferença morfológica, a diferença entre os sentidos que cada um dos termos porta em sua forma, no modo como cada um deles incide sobre os termos que determina e com os quais se relaciona. São diferenças sem as quais jamais se alcançará aquela que de fato aqui se visa: a ontológica [1].
A diferença morfológica entre o adjetivo nominal e o adjetivo pronominal torna-se ainda mais sensível, quando os [86] substantivamos. Ao dizermos “o completo”, “o inteiro”, “o todo”, isso soa bem diferente de “o cada”, “o isto”, “o algum”. Digamos que soa bem menos estranho. O adjetivo nominal substantivado é um fato comum na língua. A ele corresponde, frequentemente, um substantivo, formado por sufixação, a partir do radical do adjetivo nominal. A língua tem, em geral, um conjunto de sufixos especificamente para essa função. De “o completo” chega-se a “a completu-de”; de “o inteiro” a “a inteireza”; de “o total” a “a totalidade”; de “o belo”, a “a beleza”; de “o bom”, a “a bondade”; de “o vero”, a “a verdade”.
A substantivação do adjetivo pronominal, por outro lado, é um fato bem menos comum, embora haja menos pronomes do que adjetivos na língua. E isso não é um acaso. Pronomes são palavras que podem, em geral, ser associadas a um número muito maior de palavras, quando não a todas. E isso já é uma informação fundamental sobre os pronomes: que eles são, em si mesmos, termos que estão já nesse âmbito de totalidade no sentido do em toda parte. Além disso, o fato de que eles sejam em menor número — um número aliás bem reduzido se comparado ao dos adjetivos — diz que esse tipo de palavra, na língua, é responsável por descrever um determinado conjunto de relações muito essenciais, que estão de algum modo presentes em todo dizer.
A substantivação do pronome implica que a língua se detenha sobre o sentido da função que os pronomes exercem na língua. Supondo-se que a língua chegue a “o cada”, “o isto”, “o algum” (supondo-se que se esteja de algum modo claro o que se possa querer dizer com isso), chega-se muito [87] raramente e com extrema dificuldade a “a cadaidade” [2], a “a istidade”, a “a algumidade”. Em geral, são termos forjados no bojo da reflexão filosófica, quase como uma violência contra a língua. Só com a filosofia se chega até eles. Ao dizer “o belo”, “o bom”, “o vero”, a língua não precisou da filosofia, assim como não precisou da filosofia para chegar a “a beleza”, “a bondade”, “a verdade” (mesmo que, com a filosofia, ela estabeleça com essas palavras um novo modo de relação: não é senão esse o sentido da interrogação socrática). Mas quando se fala em “o cada”, “o isto”, “o algo”, “o tudo”, “o nada”, parece que a língua chega a um outro estágio de si mesma, ao qual podemos dar, sem hesitação, o nome de filosofia. Talvez nenhuma língua tenha chegado a esse estágio antes da língua grega. E todas as outras que o fizeram, só o fizeram ao entrar em contato com ela. Talvez a filosofia [88] seja grega, em sua essência (in ihrem Wesen ) [3], como quer Heidegger, porque só junto ao povo grego a língua chegou a uma tal radicalidade de interrogação sobre si mesma [4]. É o que lembra a afirmação de que “a filosofia é na origem de sua essência de tal modo que ela primeiro (pre)ocupou (convocou) (in Anspruch genommen hat) o mundo grego (Das Griechentum), e só ele, para se desenvolver” [5].
Assim como a língua latina, que foi apenas a primeira delas, todas as línguas, no contato com a língua da filosofia grega, tiveram que estabelecer consigo mesmas a mesma relação de radicalidade que aí encontraram. Qualquer língua que se pretenda engajar no exercício da filosofia deve estabelecer consigo mesma tal relação, que não é outra coisa que a própria filosofia. Filosofia, aqui, entendida como a mais radical relação da língua consigo mesma. Se fazemos filosofia em língua portuguesa, é inevitável que nos detenhamos sobre essa língua com aquela mesma radicalidade.