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A Fenomenologia

Lyotard (1954:9-11) – a eidética

A eidética de Husserl

quinta-feira 15 de junho de 2023, por Cardoso de Castro

A cada ciência empírica corresponde uma ciência eidética concernente ao eidos   regional dos objetos estudados por ela e a própria fenomenologia é definida, nessa etapa do pensamento husserliano, como ciência eidética da região consciência.

 I — O ceticismo psicologista

O psicologismo contra o qual Husserl   luta identifica sujeito do conhecimento e sujeito psicológico. Afirma que o juízo "essa parede é amarela" não é uma proposição independente de mim, que o expresso e percebo essa parede. Diremos que "parede", "amarela" são conceitos definíveis em extensão e em compreensão independentemente de todo pensamento concreto. Será, pois, necessário conferir-lhes uma existência em si, transcendente ao sujeito e ao real? As contradições de realismo das ideias (platônico por exemplo) são inevitáveis e insolúveis. Mas, se ao menos admitimos o princípio de contradição como critério para a validade de uma tese (no caso platônica), não estaremos afirmando a independência em relação ao pensamento concreto? Passamos assim do problema da matéria lógica, o conceito, ao problema de sua organização, os princípios. Mas o psicologismo não se rende nesse ponto. Quando o lógico supõe que duas proposições contrárias não podem ser verdadeiras simultaneamente ele está apenas exprimindo que me é impossível de fato, no nível do vivido pela consciência, acreditar que a parede seja amarela e verde. A validade dos grandes princípios funda-se sobre minha organização psíquica, e se são indemonstráveis é porque são inatos. Disto decorre evidentemente que não existe enfim verdade independente dos passos psicológicos que a ela conduzem. Como poderei saber se meu saber se adequa a seu objeto, como o exige a concepção clássica de verdadeiro? Qual é o sinal de sua adequação? Necessariamente, um determinado "estado de consciência" pelo qual qualquer indagação sobre o objeto do qual existe saber se mostra supérfluo: a certeza subjetiva.

Assim, o conceito era algo vivido, o princípio uma condição contingente do mecanismo psicológico, a verdade uma crença coroada de êxito. Sendo o próprio saber científico relativo à nossa organização, nenhuma lei poderia ser considerada absolutamente verdadeira mas tão-somente uma hipótese em via de verificação sem fim, a eficácia das operações (pragma  ) que ela torna possíveis definia sua validade. A ciência teceria portanto uma rede   de símbolos cômodos (energia, força, etc.) com que veste o mundo; seu único objetivo seria então estabelecer entre esses símbolos relações constantes que permitam a ação. O problema de um conhecimento do mundo propriamente dito não se propunha. Não se podia mais afirmar um progresso desse conhecimento no decorrer da história da ciência: a história é um devir sem significado determinado, um acúmulo de tentativas e de erros. É portanto necessário renunciar a propor problemas à ciência para os quais não existe resposta. Enfim, a matemática é um vasto sistema formal   de símbolos estabelecidos convencionalmente e de axiomas operatórios sem conteúdo limitativo: tudo aí é possível à nossa fantasia (Poincaré). A verdade matemática define-se ela própria segundo o referencial de axiomas escolhidos de início. Todas essas teses convergem para o ceticismo.

 II — As essências

Husserl demonstra (Rech. logiques. Ideen I) que esse ceticismo apoiado no empirismo suprime-se contradizendo-se. Com efeito, o postulado de base para todo empirismo consiste na afirmação de que a experiência é a única fonte de verdade para qualquer conhecimento: mas essa afirmação mesma deve ser posta à prova da experiência. Ora, a experiência, fornecendo apenas o contingente e o singular, não pode fornecer à ciência o princípio universal e necessário de uma afirmação semelhante. O empirismo não pode ser compreendido pelo empirismo. Por outro lado, é impossível confundir por exemplo o fluxo de estados subjetivos experimentados pelo matemático enquanto ele raciocina e o raciocínio: as operações do raciocínio são definíveis independentemente desse fluxo; pode-se apenas dizer que o matemático raciocina corretamente quando por esse fluxo subjetivo acede à objetividade do raciocínio verdadeiro. Mas essa objetividade ideal   é definida por condições lógicas e a verdade do raciocínio (sua não-contradição) impõe-se tanto ao matemático como ao lógico. O raciocínio verdadeiro é universalmente válido, o raciocínio falso é maculado de subjetividade, portanto intransmissível. Do mesmo modo um triângulo retângulo possui uma objetividade ideal no sentido que ele é o sujeito de um conjunto de predicados, inalienáveis sob pena de perder o próprio triângulo retângulo. Para evitar o equívoco da palavra "ideia", diremos que ele possui uma essência, constituída por todos os predicados cuja supressão imaginária acarretaria a supressão do triângulo em pessoa. Por exemplo, todo triângulo é por essência convexo.

Mas, se permanecemos no nível dos "objetos" matemáticos, o argumento formalista, que faz desses objetos concepções convencionais, permanece poderoso; demonstrar-se-á por exemplo que os pretensos caracteres essenciais do objeto matemático são na realidade dedutíveis a partir de axiomas. Por esse motivo, Husserl amplia, a partir do segundo temo das Recherches logiques, sua teoria da essência para aplicá-la ao terreno favorito do empirismo, a percepção. Quando dizemos "a parede é amarela" estarão implicadas nesse juízo as essências? E, por exemplo, a cor poderá ser tomada independentemente da superfície sobre a qual se "expõe"? Não, pois uma cor separada do espaço em que ela se dá seria impensável. Pois se, fazendo "variar" pela imaginação o objeto cor, retiramos a ele seu predicado "extensão", suprimimos a possibilidade do próprio objeto cor, chegamos a uma consciência de impossibilidade. Esta revela a essência. Há, portanto, nos juízos dos limites à nossa fantasia, que nos são fixados pelas próprias coisas de que há juízo e que a Fantasia mesma revela graças ao processo da variação.

O processo da variação imaginária dá-nos a própria essência, o ser do objeto. O objeto (Objekt  ) é "uma coisa qualquer" por exemplo o número dois, a nota dó, o círculo, uma proposição qualquer, um dado sensível (Ideen I). Fazemo-lo "variar" arbitrariamente, obedecendo apenas à evidência atual e vivida do eu posso ou não posso. A essência ou eidos   do objeto é constituído pelo invariante que permanece idêntico através das variações. Assim, se se opera a variação sobre o objeto como coisa sensível, obtém-se como ser mesmo da coisa: o conjunto espaço-temporal  , provido de qualidades segundas, colocado como substância e unidade causai. A essência se experimenta pois numa intuição vivida; a "visão das essências" (Wesenschau) não possui qualquer caráter metafísico, a teoria das essências não se enquadra num realismo platônico em que a existência da essência seria afirmada, a essência é somente aquilo em que a "própria coisa" me é revelada numa doação originária.

Tratava-se exatamente, como o queria o empirismo, de voltar "às próprias coisas" (zu den Sachen selbst  ), de suprimir toda opção metafísica. Mas o empirismo era ainda metafísico quando confundia essa exigência do retorno às coisas com a exigência de fundar todo o conhecimento na experiência, considerando como conhecimento indiscutível que só a experiência nos dá as próprias coisas: há um preconceito empírico, pragmatista. Na realidade, a última fonte de direito para qualquer afirmação racional está no "ver" (sehen  ) em geral, isto é, na consciência doadora originária (Ideen). Não pressupomos nada, diz Husserl, "nem mesmo o conceito de filosofia". E quando o psicologismo pretende identificar o eidos, obtido pela variação, com o conceito cuja gênese é psicológica e empírica, respondemos apenas que, se ele quer se limitar à intuição originária tomando-a como sua lei, seus conhecimentos a respeito são menores do que ele pretende. O número dois é talvez, considerado como conceito, construído a partir da experiência, mas na medida em que eu obtenho desse número o eidos por variação, eu afirmo que este eidos é "anterior" a qualquer teoria da construção do número e a prova é que toda explicação genética se apoia sempre no saber atual da "alguma coisa" que a gênese deve explicar. A interpretação empirista da formação do número dois pressupõe a compreensão originária desse número. Esta compreensão é portanto uma condição para toda ciência empírica; o eidos que ela nos oferece é apenas um puro possível, mas existe uma anterioridade desse possível em relação ao real de que trata a ciência empírica.

 III. — A ciência eidética

Verifica-se por conseguinte a possibilidade de conferir a esta ciência sua validade. As incertezas da ciência, sensíveis já para as ciências humanas, mas que ao cabo atingem aquelas que serviam de modelo, físico e matemático, têm sua origem numa cega preocupação experimental. Antes de fazer física é necessário estudar o que é o fato físico, sua essência. O mesmo se pode dizer quanto às outras disciplinas. Da definição do eidos tomado pela intuição originária, poder-se-á tirar as conclusões metodológicas que orientarão a pesquisa empírica. Por exemplo, é claro que nenhuma psicologia empírica séria pode ser empreendida se a essência do psíquico não foi estabelecida de maneira a evitar qualquer confusão com a essência do físico. Em outros termos, é necessário definir as leis eidéticas que guiam qualquer conhecimento empírico; esse estudo constitui a ciência eidética em geral, ou então ontologia da natureza (isto é estudo do esse ou essência); essa ontologia foi tomada em sua verdade como prolegômeno à ciência empírica correspondente, por ocasião do desenvolvimento da geometria e do papel que ela desempenhou no saneamento do conhecimento físico. Todas as coisas naturais têm, como essência, efetivamente, ser especial e a geometria é a eidética do espaço: mas ela não abarca toda a essência da coisa, daí o surto de novas disciplinas. Podemos pois distinguir hierarquicamente, a partir do empírico: 1) essências materiais (a do vestiário, por exemplo) estudadas por ontologias ou ciências eidéticas materiais; 2) essências regionais (objeto cultural) coroando as precedentes e explicitadas por eidéticas regionais; 3) a essência do objeto em geral, segundo a definição dada precedentemente, cujo estudo é feito por uma ontologia formal O). Essa última essência que coroa todas as essências regionais é uma "pura forma eidética" e a "região formal" que ela determina não é uma região coordenada pelas regiões materiais mas "a forma vazia de região em geral". Essa ontologia formal é identificável à lógica pura; é a mathesis   universalis, ambição de Descartes   e de Leibniz  . É claro que essa ontologia deve definir não só a noção de teoria em geral, mas todas as formas de teorias possíveis (sistema da multiplicidade).

Tal é o primeiro grande movimento do intento husserliano. Ele se apoia no fato, definido como "estar aí individual e contingente"; a contingência do fato remete à essência necessária pois pensar a contingência é pensar que pertence à essência desse fato poder ser diferente do que é. A facticidade implica, portanto, numa necessidade. Esse propósito retoma aparentemente o platonismo e sua "ingenuidade". Mas contém igualmente o cartesianismo porque se esforça por fazer do conhecimento das essências não o fim de todo conhecimento mas a introdução necessária ao conhecimento do mundo material. Nesse sentido a verdade da eidética reside no empírico, razão por que essa "redução eidética", pela qual fomos levados a passar da facticidade contingente do objeto ao seu conteúdo inteligível pode ser também chamada "mundana". A cada ciência empírica corresponde uma ciência eidética concernente ao eidos regional dos objetos estudados por ela e a própria fenomenologia é definida, nessa etapa do pensamento husserliano, como ciência eidética da região consciência; em outras palavras, em todas as ciências empíricas do o homem (Geistwissenschaften) se encontra implícita necessariamente uma essência da consciência e é essa implicação que Husserl tenta articular em Ideen II.


Ver online : Jean Lyotard