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O Existencialismo perante o Direito, a Sociedade e o Estado

Giuseppe Lumia: o existencialismo teológico - Chestov

Existencialismo teológico: Barth, Chestov, Berdjaev

terça-feira 5 de outubro de 2021

LUMIA. (Giuseppe) O EXISTENCIALISMO PERANTE O DIREITO, A SOCIEDADE E O ESTADO. Tradução de Adriano Jardim e Miguel Caeiro  . Colecção « Doutrina ». N.º 3. Livraria Morais Editora. Lisboa. 1964.


A orientação teística e a ateia estão presentes desde a origem no existencialismo. Contemporâneos são, de fato, como se sabe, Sein und Zeit   de Heidegger e o Journal méthaphisique de Marcel, ambos do ano de 1927. Todavia, o primeiro documento do existencialismo remonta a nove anos atrás, 1919, ano em que o teólogo suíço Barth publicou o seu Comentário à Segunda Epístola aos Romanos, de S. Paulo. A corrente religiosa, diretamente ligada à obra de Kierkegaard  , é, pois, a mais remota e atravessa, até aos nossos dias, toda a história do existencialismo. Dentro dela, Sciacoa distinguiu entre um existencialismo teístico e um existencialismo teológico. Ao primeiro pertencem os pensadores católicos, ao segundo os pensadores luteranos e ortodoxos. A diferença entre as duas correntes situa-se para além da diversa inspiração confessional, pois assenta em razões mais propriamente filosóficas. Na verdade, o existencialismo teológico pretende fundar-se diretamente sobre a revelação cristã, e apresenta-se como comentário e interpretação da palavra de Deus; o existencialismo teístico, pelo contrário, embora inspirado no cristianismo e não querendo contradizer a verdade revelada, não se funda diretamente sobre esta, apresentando-se como autônoma indagação filosófica. Da corrente teológica, faremos uma resenha dos mais notáveis e expressivos representantes: o suiço protestante Karl Barth e os russos ortodoxos Lev Chestov e Nicolaj Berdjaev  .

Se a teologia de Barth descende diretamente de Kierkegaard e da tradição luterana e calvinista, a concepção dos pensadores russos que citamos — Chestov e Berdjaev   — aproxima-se da tradição platonizante, assas viva no ambiente ortodoxo, reportando-se aos fortes motivos irracionalísticos desenvolvidos por Soloviev e à temática existencial de Dostoievski. Só depois da revolução, nos ambientes parisienses da emigração, teve lugar o encontro destes pensadores com o existencialismo «ocidental», no qual eles próprios se reconhecem, encontrando neste alguns motivos fundamentais do seu pensamento.

Chestov (1866-1938) aproxima-se em particular de Dostoievski e de Nietzsche   ao pronunciar, em nome de Deus, a mais severa condenação da razão e da moral   «racional». O pecado de origem, diz ele, não é o existir. Tudo o que foi criado vem de Deus, e não pode deixar de ser bom. Repele o «mito de Anaximandro  », segundo o qual todas as coisas pagam com a morte a original injustiça do seu nascimento, ao haver querido afirmar a própria individualidade separando-se do «indistinto», do «todo». Para Chestov as coisas criadas são boas, e Deus mesmo, diz ele, reportando-se ao mito bíblico da criação, disso se compraz. O pecado original foi o cometido por Adão, o qual ousou colher, contra a proibição de Deus, os frutos da árvore da ciência. A humanidade teria vivido em um estado de feliz inocência se tivesse conservado o seu primitivo estado de ignorância. Mas quis comer aqueles frutos e «soube» — soube da sua limitação, soube da morte, soube do mal: foi infeliz. «A luz da ciência — escreve — desconhecida antes da queda, fez conhecer ao homem o seu limite; indicou-lhe os pretensos limites do possível e do impossível, do que é devido e do que não o é; mostrou-lhe o enigmático princípio e o fim inevitável. Até que não teve luzes, não teve limites; tudo era possível, tudo era perfeito, como está escrito na Bíblia.

A ciência, para Chestov, é culpa; o grande pecado do orgulho é que perdeu a humanidade. No seu furor blasfemo, o homem pretendeu, até, demonstrar a existência de Deus, isto é, reduzir o inefável mistério de Deus às mesquinhas proporções humanas. Toda a filosofia cristã tem, aos olhos de Chestov, o grave defeito de querer conciliar Atenas e Jerusalém, quando entre as duas cidades não pode existir mais do que insanável contradição. A ciência é a grande inimiga do homem. E na verdade, a atividade racional é atividade objetivante e na objetivação se perde o sentido profundo do eu, perde-se o valor singular da subjetividade. A verdade objetiva é uma verdade impessoal, anônima, indiferente, é a verdade de todos, não a minha verdade.

O irracionalismo de Chestov subverte não só a ciência, mas também a moral, enquanto esta pretende atingir as suas leis pela razão. A moral não é, de fato, mais do que o aspecto normativo daquela necessidade lógica na qual a razão aprisionou o homem com o pretexto de libertá-lo. A lei é filha da razão, e o pecado é filho da lei. «O contrário do pecado não é a virtude, mas a liberdade» — escreveu Chestov, e a liberdade está para além ou para aquém da lei. A lei serve somente para dissimular o pecado, para dar ao homem uma aparência de santidade, quando tudo nele é, pelo contrário, impiedade e blasfêmia. As ações do homem são indiferentes perante Deus e, tal como Barth colocava no mesmo plano Francisco de Assis e César Bórgia, assim Chestov não encontra distinção entre a súplica de um Pascal   e a blasfêmia de um Nietzsche.

À «filosofia especulativa», dominada pela razão, Chestov opõe a «filosofia existencial», que faz um todo com a fé. A fé liberta-nos da objetividade da razão e da necessidade da lei. Ela é a confiança irracional de um Tertuliano que grita o seu «credo quia absurdum», de um Abraão que não hesita em violar as leis humanas para obedecer à ordem de Deus, de um Job que do abismo do seu desespero ousa   erguer até Deus a sua apaixonada invocação. A fé é aceitação do absurdo que está em Deus, da contradição que está no homem, da tragédia que está na morte. Para a fé não existe o impossível, porque a Deus tudo é possível; pela fé o homem resgata a sua Uberdade sem lei e colhe o sentido miraculoso da existência. Nunca o motivo irracionalístico foi desenvolvido com tanto vigor; nunca, antes de Chestov, tantos raciocínios foram empregados para condenar a razão.