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O Existencialismo perante o Direito, a Sociedade e o Estado

Giuseppe Lumia: a filosofia da existência - Husserl

Os Precursores: Kierkegaard, Nietzsche, Husserl

terça-feira 5 de outubro de 2021

LUMIA. (Giuseppe) O EXISTENCIALISMO PERANTE O DIREITO, A SOCIEDADE E O ESTADO. Tradução de Adriano Jardim e Miguel Caeiro  . Colecção « Doutrina ». N.º 3. Livraria Morais Editora. Lisboa. 1964.


O existencialismo floresceu contemporaneamente, entre as duas guerras, na Alemanha e na França. São, de fato, do mesmo ano, 1927, o Sein und Zeit   de Heidegger e o Journal métaphisique de Marcel. Todavia, os seus motivos mais profundos fermentavam havia já tempo, embora fosse necessário esperar a grave crise de consciência europeia amadurecida durante os dois conflitos mundiais, para que eles irrompessem em todo o seu dramatismo. Seria muito extenso e difícil, e exorbitaria dos limites do presente trabalho, procurar todos os elementos que confluíram no movimento existencialista. Mas é fácil encontrar os seus precedentes imediatos, de uma parte, no pensamento de Kierkegaard   e de Nietzsche  , que lhe forneceram alguns dos temas inspiradores fundamentais, e de outra, na fenomenologia de Husserl  , que lhe emprestou o método de investigação. Tais influências são perceptíveis, em medida maior ou menor, em todos os filósofos do existencialismo, podendo perfeitamente dizer-se que nenhum deles lhes é completamente estranho.

O existencialismo, se deriva de Kiekegaard e de Nietzsche alguns dos seus motivos inspiradores mais profundos, toma da fenomenologia o seu método de trabalho. As obras fundamentais de Heidegger, de Sartre  , de Merleau-Ponty  , apresentam-se declaradamente como indagações fenomenológicas sobre o ser, sobre o tempo, sobre a consciência, sobre a percepção ; mas nem mesmo os autores que não descendem diretamente da fenomenologia se libertam, em maior ou menor grau, de influências husserlianas. Pode dizer-se que a importância de Husserl   cresceu depois da sua morte, à medida que se publicaram os seus inéditos e que a sua obra foi melhor conhecida e compreendida, não faltando quem veja nele o maior filósofo da nossa época.

A fenomenologia pretende ser, não um sistema filosófico, mas um método de filosofar, um método que, se de uma parte reivindica a autonomia da filosofia perante o psicologismo e o naturalismo, por outra entende manter a indagação filosófica num plano de absoluta aderência à realidade e de recusa de qualquer sugestão metafísica. Em face das tentativas de redução da filosofia a metodologia da história (historicismo) ou a metodologia da ciência (neopositivismo), a fenomenologia proclama a autonomia da investigação filosófica. Todavia, não repele a história, pois, pelo contrário, põe em relevo a gênese temporal   da verdade, nem se afasta da realidade, pois também procura dar-nos desta última uma imagem clara e sincera, isenta de abstrações e de preconceitos.

Husserl está estreitamente ligado às próprias origens do pensamento moderno, e, para além delas, à parte mais viva da especulação medieval, da qual, através de von Brentano  , seu mestre, extrai a teoria da intencionalidade da consciência. Para esta, a consciência é sempre consciência de qualquer coisa, é atividade que não pode desenvolve-se sem ser dirigida a um fim, sem ser «compreendida» em relação a um objeto. É este o ponto de partida da fenomenologia, ponto de partida bastante fecundo, pois que permite o superar da alternativa idealismo-realismo, consistente no reconhecimento da necessária correlação complicação, no fato do conhecer, do elemento subjetivo e do objetivo, da noese e do noema  . O Objeto intencionado pela consciência é, todavia, sempre um objeto mental, não importando que ele exista ou não fora da própria consciência. O dado imediato de que parte Husserl é precisamente o fenômeno, quer dizer, o ser como se apresenta ao pensamento, como se revela à consciência. A tarefa da filosofia é para ele a de «descrever» o fenômeno, não, porém, no seu aspecto particular ou contingente, mas naquele que ele apresenta de permanente e de necessário, ou seja, de «essencial». Nós podemos ter, por exemplo, a percepção de uma rosa ou de um cavalo ou do calor: são estados de consciência contingentes, cujo estudo é objeto da psicologia empírica, mas o fato da percepção, como o de imaginar, ou de exprimir-se, etc, são formas eternas, estruturas essenciais, nas quais se manifesta o ser da consciência e se extrai o seu significado. Quando prescindimos do lado empírico, existencial, o que nos resta são as essências eternas que a nossa mente intui diretamente. Órgão da filosofia é, assim, a intuição intelectual ou eidética, que instrui as essências com os mesmos caracteres de objetividade e de evidência com que se apresentam à intuição sensível os dados singulares da experiência.

Como é possível esta intuição eidética, esta «visão imediata» das essências (Wesensschau  )? É possível mediante a chamada redução fenomenológica. É este talvez o conceito mais importante e fecundo — e também o mais subentendido — do pensamento de Husserl. A redução fenomenológica consiste na suspensão do juízo — e aqui Husserl usa, do antigo cepticismo, o termo "epoche  " sobre tudo o que não apareça evidente à consciência: é o repúdio das opiniões correntes, das persuassões do senso comum, das teorias científicas, das doutrinas filosóficas, que havíamos aceitado sem as haver submetido à nossa reflexão pessoal, sem as haver passado pelo crivo severo da análise e da crítica. Só mediante o repúdio de qualquer pressuposto nos será possível construir a filosofia como «ciência rigorosa»; somente mediante o abandono da atitude natural, que cria em nós uma espécie de fé animal em um mundo colocado no espaço, que dura no tempo, etc, poderemos ter aquela atitude epocal que é desinteressada e, por isso, objetiva visão das coisas. Posto assim entre parêntesis o mundo ilusório das opiniões correntes, dos preconceitos e das abstrações, o «resíduo» desta redução é a realidade mesma, naquilo que nela, através da evidência, se nos revela como originário e essencial; é o mundo concreto da vida, a Lebenswelt  , à qual Husserl atribui o interesse   mais autêntico da filosofia, como indagação rigorosa dirigida às próprias coisas — «Zu den Sachen selbst  » —, segundo a expressão que ele mesmo usa. Nos escritos inéditos que se têm publicado nestes anos, aquele apelo ao «mundo da vida» aparece sempre mais insistente e acompanhado de sutis análises do tempo e do espaço, da corporeidade e da história. Se a teoria da intencionalidade recua à filosofia medieval, a redução fenomenológica liga o pensamento de Husserl às origens da filosofia moderna: à dúvida metódica cartesiana, à teoria dos idola de Bacon. Ela restabelece a exigência crítica que se unifica com o filosofar e que, todavia, é frequentemente negligenciada, pelo que é sempre oportuno o apelo que a ela se faça.

Nas suas últimas obras, ou seja, na Formale und transzendentale   Logik   e nas Méditations cartesiennes, Husserl reivindica o primado da consciência transcendental relativamente ao noema; a consciência é o cogito  , e os seus objetos não são mais do que cogitata. Husserl adverte, porém, que acentuado o caráter puramente mental do resíduo fenomenológico, o perigo nele implícito é o do solipsismo. E, na verdade, posto que tudo o que para mim vale como ser encontra o seu fundamento último na consciência transcendental, o outro não corre O .risco de reduzir-se, em definitivo, a uma modificação da minha consciência? O problema da intersubjetividade, já posto na Logik, é afrontado claramente na quinta parte das Méditations cartésiennes, publicadas pela primeira vez em francês, em 1931. Husserl exclui que nós possamos ter consciência dos outros com o mesmo caráter imediato e apodítico com que temos consciência de nós mesmos, pois, de outra forma, o nosso eu coincidia com o outro. A experiência do outro, pelo contrário, é «experiência do estranho», de qualquer coisa que não só não se identifica com o meu eu, mas que foge igualmente à minha «esfera de pertença» isto é, não se reduz a mero fenômeno da minha consciência. Mas como é possível tudo isto? Husserl explica que o eu encontra naquela sua esfera um corpo que se distingue de todos os outros corpos (Körper  ) por ser o meu corpo (Leib), do qual disponho e sobre o qual impero de maneira imediata. Mas também os outros corpos, embora transcendendo-me, me pertencem na realidade, enquanto, como fenômenos, não são mais do que modificações da minha consciência. Todavia, sinto que este mundo que me pertence é comum a outros eus, a outras unidades semelhantes a mim, das quais eu tomo consciência mediante um ato de «apresentação», pelo qual, quando se me apresenta um corpo animado que, pelo seu comportamento, oferece os indícios de uma realidade psíquica, eu, por uma espécie de «percepção de semelhança», sinto nele a presença de um outro eu, em tudo semelhante a mim mesmo, com o qual tenho em comum o mundo da minha experiência, e que está para mim como eu estou para ele. A existência dos outros garante assim a objetividade do meu mundo.

Mas como é possível compreender o outro, que está em face de mim na irredutível estraneidade? É possível, diz Husserl, mediante uma espécie de penetração no interior do outro, de Einfühlung  , que me permite «sentir» o outro sem todavia identificá-lo comigo. A forma originária de comunicação é, para Husserl, aquela que se realiza no par (die Paarung), pelo qual o eu e o tu, entrando em relação entre si, dão vida a um «nós» (Wirheit  ). Do par originário, mediante sucessivas integrações, tomam vida as formas associativas mais complexas, os grupos familiares, sociais, nacionais, até àquela comunidade que Husserl chama «intersubjetividade transcendental», a qual recolhe a totalidade das unidades, a que é comum o mesmo modo de experiência. Notável, em uma tal concepção, é o princípio pelo qual a presença do outro no eu não exclui a sua transcendência. O outro, embora estando presente na minha consciência, não se identifica comigo, continua ele mesmo. A compreensão que se estabelece entre o eu e o outro não implica, portanto, assimilação. Isto permite fundar de modo positivo as relações intersubjetivas, tornando possível uma livre coexistência e uma autêntica comunicação entre os homens, de tal forma que, longe de resolver-se no anulamento e na absorção do outro no eu, comporta o reconhecimento do outro como idêntico a mim.

No epílogo das Méditations cartésiennes Husserl indica aos estudiosos a tarefa de explorar com o método fenomenológico os vários setores da experiência ou, como ele lhe chama, as várias «ontologias regionais». O apelo foi aceito por vários setores, e precisamente como indagações fenomenológicas se apresentam alguns dos mais significativos textos do existencialismo.


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