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Gadamer (VM): objetivismo

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Ao contrário, quanto mais clarividente se nos torna o lento desenvolvimento do pensamento husserliano, através da evolução de sua grande tarefa, vai se tornando mais claro que, com o tema da intencionalidade, institui-se uma crítica cada vez mais radical ao "objetivismo" da filosofia anterior — incluindo a Dilthey   — que deveria culminar na exigência de "que a fenomenologia intencional, pela primeira vez, fez do espírito enquanto espírito, um campo de experiência sistemática e uma [248] ciência, dando, com isso, uma reviravolta total à tarefa do conhecimento. A universalidade do espírito absoluto abarca todo o ente numa historicidade absoluta, na qual se inclui a natureza como uma construção do espírito". Não é por acaso que, aqui, o espírito se oponha como o único absoluto, isto é, não relativo, à relatividade de tudo que se lhe manifesta; sim, o próprio Husserl   reconhece a continuidade entre a sua fenomenologia e o questionamento transcendental   de Kant   e de Fichte  : Mas é preciso que se acrescente que o idealismo alemão que parte de Kant já estava apaixonadamente preocupado em superar a ingenuidade que já era bem visível (sc. do objetivismo). VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Essas declarações do Husserl tardio já podem ter sido motivadas pela confrontação com Ser e tempo  , mas a elas precedem inumeráveis tentativas de Husserl, demonstrando que ele tinha sempre em vista a aplicação de suas idéias aos problemas das ciências do espírito históricas. Aqui, portanto, não se trata de um ponto de conexão periférico com o trabalho de Dilthey — ou, mais tarde, com o de Heidegger — mas representa a conseqüência de sua própria crítica à psicologia objetivista e ao objetivismo da filosofia precedente. Isso se torna absolutamente claro após a publicação das Idéias III". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

O engate de Dilthey às Investigações lógicas de Husserl atinge em cheio o cerne da questão. Segundo o próprio Husserl, o trabalho de toda sua vida encontra-se dominado, desde as Investigações lógicas, pelo a priori   da correlação entre o objeto da experiência e a forma dos dados. Já na quinta investigação lógica ele tinha elaborado o modo próprio das vivências intencionais e diferenciado a consciência, tal como a convertera em tema de investigação, "enquanto vivência intencional" (este é o título do segundo capítulo), da unidade real das vivências na consciência, e de sua percepção interna. Nesse sentido, e já nessa época, a consciência não é para ele um "objeto", mas uma atribuição (Zuordnung  ) essencial — esse foi o ponto que se tornou tão elucidativo para Dilthey. O que se manifestou na investigação dessa atribuição foi uma primeira superação do "objetivismo", na medida em que, por exemplo, o significado das palavras não pode continuar sendo confundido com o conteúdo psíquico real da consciência, p. ex., com as representações associativas que uma palavra desperta. Intenção de significado e cumprimento de significado fazem parte essencialmente da unidade do significado, e, tal qual os significados das palavras que usamos, todo ente que possua validez para mim possui, correlativamente e com necessidade essencial, uma "generalidade ideal   dos modos reais e possíveis das coisas dadas serem experimentadas". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Como vimos, o conceito de mundo da vida se opõe a todo objetivismo. Trata-se de um conceito essencialmente histórico, que não tem em mente a um universo do ser, a um "mundo que é". Nem mesmo a idéia infinita de um mundo verdadeiro, partindo-se da progressão infinita dos mundos humano-históricos, deixa-se formular com sentido na experiência histórica. É verdade que se pode indagar pela estrutura do que abrange a todos os mundos ambientais experimentados alguma vez pelos homens, que representa, com isso, a possível experiência do mundo como tal e, nesse sentido, é que se pode perfeitamente falar de uma ontologia do mundo. Uma tal ontologia do mundo continuaria sendo sempre algo bastante diferente do que poderiam produzir as ciências da natureza, pensadas até o fim. Ela representaria uma tarefa filosófica que toma a estrutura essencial do mundo por objeto. Mas mundo da vida quer dizer outra coisa, o todo em que estamos vivendo enquanto seres históricos. E aqui já não se pode mais evitar a [252] conclusão de que, diante da historicidade da experiência nela implicada, a idéia de um universo de possíveis mundos da vida históricos é fundamentalmente irrealizável. A infinitude do passado, mas sobretudo o caráter aberto do futuro histórico não é conciliável com essa idéia do universo histórico. Husserl extraiu explicitamente essa conclusão, sem retroceder ante o "fantasma" do relativismo. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Gostaria de relembrar que o próprio Husserl já havia colocado [260] a problemática dos paradoxos que surgem do desenvolvimento de seu solipsismo transcendental. Por isso não é fácil assinalar objetivamente o ponto a partir do qual Heidegger pode colocar sua ofensiva ao idealismo fenomenológico de Husserl. Deve-se admitir, inclusive, que o projeto heideggeriano de Ser e tempo não escapa por completo ao âmbito da problemática da reflexão transcendental. A idéia da ontologia fundamental, sua fundamentação sobre a pre-sença, que coloca sua importância no ser, assim como a analítica dessa pre-sença, pareciam de fato tão-somente colocar as medidas a uma nova dimensão de questionamento dentro da fenomenologia transcendental. O fato de que todo sentido do ser e da objetividade só se torna compreensível e demonstrável a partir da temporalidade e historicidade da pre-sença — uma fórmula perfeitamente possível para a tendência de Ser e tempo — eis algo que também Husserl reivindicou em seu sentido, ou seja, a partir da base da historicidade absoluta do eu-originário. E se o programa metódico de Heidegger se orienta criticamente contra o conceito da subjetividade transcendental a que Husserl reportava toda fundamentação última, Husserl podia ter qualificado isso de ignorância da radicalidade da redução transcendental e já teria superado e excluído toda implicação de uma ontologia da substância e, com isso, também o objetivismo da tradição. Pois também Husserlse sentia em oposição ao todo da metafísica. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Todavia, justamente nesse apelo de Husserl aos seus precursores torna-se patente sua diferença com respeito a Heidegger. A crítica de Husserl ao objetivismo da filosofia precedente representava uma continuação metódica das tendências modernas e se entendia como tal. A reivindicação de Heidegger, [261] pelo contrário, era, desde o princípio, a de uma teologia de signo inverso. Em sua própria iniciativa ele vê menos o cumprimento de uma tendência, preparada e já pronta há muito tempo, do que uma retomada do primeiro começo da filosofia ocidental, um reacender da velha e esquecida polêmica grega em torno do "ser". Quando apareceu Ser e tempo já se admitia de modo natural, que essa retomada do mais antigo era, ao mesmo tempo, um progresso com respeito à oposição da filosofia contemporânea, e, sem dúvida, o fato de que Heidegger assuma as investigações de Dilthey e as idéias do conde Yorck na continuação da filosofia fenomenológica não representou um engate arbitrário. O problema da facticidade era, de fato, também o problema central do historicismo, pelo menos sob a forma da crítica hegeliana às pressuposições dialéticas da "razão na história". VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

A essência da pergunta é a de abrir e manter abertas possibilidades. Quando um preconceito se torna questionável — face ao que nos diz outra pessoa ou um texto — isso não quer dizer conseqüentemente que ele seja simplesmente deixado de lado e que o outro ou o diferente venha a substituí-lo imediatamente em sua validez. Essa é, antes, a ingenuidade do objetivismo histórico, a admissão de que nós podemos fazer caso omisso de nós mesmos. Na verdade, o preconceito próprio só entra realmente em jogo, na medida em que já está metido nele. Somente na medida em que se exerce, pode experimentar a pretensão de verdade do outro e oferecer-lhe a possibilidade de que este se exercite por sua vez. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Na suposta ingenuidade da nossa compreensão, na qual nos guiamos pelo padrão da compreensibilidade, o outro se mostra a partir do próprio, e isso de tal modo que ele não se expressa mais, em absoluto, como próprio e como outro. O objetivismo histórico, na medida em que apela para o seu método crítico, oculta o entrelaçamento efeitual-histórico em que se encontra a própria consciência histórica. É verdade que, graças ao seu método crítico, ele desmorona a arbitrariedade e o capricho de certos atualizadores congraçamentos com o passado, mas com isso ele se livra da má consciência de negar aquelas pressuposições que não são arbitrárias nem aleatórias, mas sustentadoras, as quais guiam seu próprio compreender; dessa forma negligencia a verdade que seria acessível, apesar de toda finitude de nossa compreensão. Nisso o objetivismo histórico se parece à estatística, que é um meio propagandístico tão distinto por deixar falar a linguagem dos fatos, e aparenta assim uma objetividade que, na verdade, depende da legitimidade de seu questionamento. VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

A essência da pergunta é colocar possibilidades e mantê-las em aberto. Mas, frente ao que diz uma outra pessoa ou um texto, se for preciso questionar algum preconceito, isto não significa que ele simplesmente seja colocado de lado e que o outro ou a outra pessoa se imponha imediatamente e ocupe seu lugar. Esta é, antes, a ingenuidade do objetivismo histórico que adota essa exclusão de si mesmo. Na verdade, o preconceito próprio só entra realmente em jogo quando ele está em jogo, ou seja, quando está em questão. É só na medida em que esse preconceito se exerce que ele entrará em jogo com o outro, e isto de tal forma que também este pode se exercer. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 5.

O problema hermenêutico adquiriu uma nova ênfase na esfera da lógica das ciências sociais. Certamente, dever-se-á reconhecer que a dimensão hermenêutica encontra-se à base de toda experiência de mundo, desempenhando por isso uma função também no trabalho das ciências naturais, como ficou demonstrado sobretudo por Thomas Kuhn. E isso vale ainda com mais decisão para as ciências sociais, pois, à medida que a sociedade possui sempre uma existência compreendida no âmbito da linguagem, o próprio campo de objetos das ciências sociais (e não apenas sua formação teórica) é presidido pela dimensão hermenêutica. Em certo sentido, a crítica hermenêutica ao objetivismo ingênuo das ciências do espírito tem sua contrapartida na crítica da ideologia, inspirada em Marx   (Habermas; cf. também a forte polêmica de Hans Albert contra essa corrente). Também a cura pelo diálogo representa um fenómeno hermenêutico eminente, cujas bases teóricas foram rediscutidas por J. Lacan   e P. Ricoeur  . O alcance da analogia   entre doenças mentais e doenças sociais parece-me profundamente questionável. A situação do cientista social frente à sociedade não é a mesma que a do psicanalista frente a seu paciente. Uma crítica da ideologia que pensa estar isenta de toda preocupação ideológica não é menos dogmática que uma ciência social "positivista" que se compreende como técnica social. Frente a essas tentativas de mediação, parece-me compreensível a oposição defendida por Derrida   entre a teoria da desconstrução e a hermenêutica. A experiência hermenêutica, no entanto, defende seu próprio direito contra uma tal teoria da desconstrução do "sentido". Apesar de Nietzsche  , buscar "sentido" na écriture nada tem a ver com metafísica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Sem dúvida não é fácil para a autoconsciência metodológica da investigação histórica firmar e manter esse aspecto do tema em questão, pois as ciências humanas já estão marcadas pela idéia moderna de ciência. Não obstante a crítica romântica ao racionalismo inerente ao Iluminismo tenha rompido com o predomínio do direito natural, os caminhos da investigação histórica concebem-se como passos rumo a um esclarecimento histórico total do homem a respeito de si próprio, tendo como conseqüência a dissolução dos últimos restos dogmáticos da tradição greco-cristã. O objetivismo histórico que corresponde a esse ideal tira sua força de uma idéia de ciência sustentada no subjetivismo filosófico da modernidade. A preocupação de Droysen foi defender-se contra esse subjetivismo. Todavia, foi somente com a crítica radical ao subjetivismo filosófico iniciada com o Ser e tempo, de Heidegger, que se pôde fundamentar filosoficamente a posição histórico-teológica de Droysen e apresentar no lugar de Dilthey, que se acha bem mais dependente do conceito moderno de ciência, o Conde York von Wartenburg como o verdadeiro interlocutor na herança do luteranismo. A partir do momento em que Heidegger deixa de considerar a historicidade da pre-sença como uma limitação de suas possibilidades de conhecimento e como uma ameaça ao ideal da objetividade científica para enquadrá-la de modo positivo na problemática ontológica, o conceito de compreensão, que a escola histórica havia elevado como método, transformou-se em conceito filosófico universal. Segundo Ser e tempo, a compreensão é o modo de realização da historicidade da própria pre-sença. O seu caráter de porvir, o caráter fundamental de projeto, conveniente à temporalidade da pre-sença, delimita-se pela outra determinação do estar-lançado, pela qual [125] não se designam apenas os limites de uma posse soberana de si mesmo mas abrem-se e determinam-se também as possibilidades positivas que são as nossas. O conceito de autocompreensão, legado em certo sentido pelo idealismo transcendental e ampliado em nossa época por Husserl, em Heidegger adquire pela primeira vez sua verdadeira historicidade, contribuindo assim também para os interesses teológicos na formulação da autocompreensão da fé. Pois o que pode liberar a autocompreensão da fé da falsa pretensão de uma certeza gnóstica de si mesma não é o soberano ser mediado por si mesmo da autoconsciência mas sim a experiência de si mesmo que acontece com cada um, e, do ponto de vista teológico, acontece particularmente no anúncio da pregação. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 9.

A segunda forma de experiência de alienação é o que chamamos de consciência histórica, essa esplêndida arte, que vai se formando lentamente, da autocrítica na recepção dos testemunhos da vida passada. A famosa formulação de Ranke sobre a anulação da individualidade expressa numa fórmula popular o que representa o ethos   do pensamento histórico: A consciência histórica propõe-se a tarefa de compreender todos os testemunhos de uma época a partir do espírito dessa época, desvinculando-os das realidades atuais que nos prendem à vida presente. Busca ainda conhecer o passado sem preciosismo e superioridade moral  , como um passado humano igual ao nosso. O célebre escrito de Nietzsche "Sobre as vantagens e desvantagens da história para a vida" deu forma à contradição existente entre um tal distanciamento histórico e uma vontade de formação imediata, sempre presente na atualidade. Mostrou também algumas conseqüências dessa debilitada vontade formativa da vida, que ele chamou de alexandrina, que se apresenta como a ciência histórica moderna. Lembro que Nietzsche acusa o espírito moderno de ter sido tomado por uma debilidade axiológica, porque se acostumou de tal modo a trilhar cada vez novas perspectivas que acabou cego, incapaz de avaliar por si e de tomar posição frente ao que se lhe apresenta; a cegueira axiológica do objetivismo histórico remete aqui para o conflito entre o mundo histórico alienado e as forças vitais da atualidade. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

No entanto, quando Habermas se guia pela análise da [240] compreensão prévia e dos condicionamentos essenciais dos preconceitos próprios a toda compreensão e ação humanas, a reivindicação que ele faz à hermenêutica é de caráter fundamentalmente diferente. E verdade que a consciência da história dos efeitos, que busca refletir sobre os próprios preconceitos e controlar sua própria compreensão prévia, desbanca o objetivismo ingênuo que falseia tanto a teoria positivista da ciência quanto a fundamentação fenomenológica e de análise da linguagem próprias das ciências sociais. Mas em que contribui essa reflexão? Aí está o problema da história universal, isto é, a idéia de uma meta da história que a ação social se representa como meta. Quando se contenta com considerações gerais que jamais ultrapassam os limites do próprio ponto de vista, a reflexão hermenêutica acaba se tornando estéril e infrutífera. É verdade que com essa consideração nega-se a pretensão de uma filosofía da historia baseada em conteúdos. Mas, apesar disso, a consciência histórica projetará sempre uma história universal pré-compreendida a partir de sua própria orientação ao futuro. De que serve conhecer seu caráter provisório e sua superabilidade essencial? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Mas o que faz a reflexão hermenêutica quando é efetiva? Qual a relação da reflexão histórico-efeitual com a tradição da qual ela se torna consciente? Minha tese é de que — e penso que ela seja a conseqüência necessária do reconhecimento de nosso condicionamento histórico-efeitual e de nossa finitude — a hermenêutica nos ensina a perceber o dogmatismo presente na contradição entre a tradição viva e "natural" e a apropriação reflexiva da mesma. Ai esconde-se um objetivismo dogmático que deforma também o conceito de reflexão. O sujeito que reflete, mesmo nas ciências da compreensão, não consegue evadir-se do contexto histórico-efeitual de sua situação hermenêutica, visto que sua compreensão sempre está implicada nesse acontecer. O historiador, mesmo aquele da chamada ciência crítica, está tão longe de desfazer-se das tradições vivas, por exemplo das tradições nacionais, que, enquanto historiador nacional, acaba ao contrário formando-as e conformando-as pela sua atuação. E o mais importante: quanto mais conscientemente reflete sobre seu condicionamento hermenêutico tanto mais atua. Droysen, que desmascarou a "objetividade eunuca" dos historiadores em sua ingenuidade hermenêutica, atuou decisivamente em favor de uma consciência nacional da cultura burguesa do século XIX — em todo caso, teve muito mais influência do que a consciência épica de Ranke, que buscava educar para uma apolitéia estatal. A compreensão é, ela mesma, um acontecimento. Só um historicismo ingênuo e irrefletido poderia considerar as ciências histórico-hermenêuticas como algo absolutamente novo, [241] capaz de eliminar o poder da tradição. Através do aspecto da estruturação da linguagem, como um fenômeno capaz de sustentar toda compreensão, procurei demonstrar inequivocamente a mediação constante pela qual sobrevive a tradição social. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Com isso, Habermas retoma o motivo central do interesse   cognitivo da sociologia. Como a retórica (enquanto teoria) buscava o encantamento da consciência pelo poder do discurso, obrigando a distinguir a coisa em si, o verdadeiro do verossímil que o discurso ensina a produzir, como a hermenêutica busca, por meio da reflexão intercomunicativa, restaurar um entendimento intersubjetivo destruído, buscando sobretudo recolocar em suas bases hermenêuticas um conhecimento que se alienou num falso objetivismo, assim também a reflexão das ciências sociais é movida por um interesse emancipatório buscando dissolver as coerções sociais externas e internas por meio da conscientização. Enquanto essas buscam legitimar-se por meio da interpretação feita pela linguagem, a crítica da ideologia, e talvez também uma ação da reflexão que se interpreta pela linguagem, transforma-se num desmascaramento da "ilusão criada pela linguagem". VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Vamos explicitar concretamente esse pensamento. A reflexão efetuada pela hermenêutica filosófica seria crítica no sentido de que descobriria o objetivismo ingênuo onde se encontra enredada a autocompreensão das ciências históricas, orientada nas ciências da natureza. Aqui a crítica da ideologia lança mão da reflexão hermenêutica interpretando o caráter de preconceito de toda compreensão como uma crítica da sociedade. Ou a reflexão hermenêutica descobre falsos embasamentos (Hypostasierungeri) de palavras no estilo que fazia Wittgenstein   ao criticar os conceitos da psicologia remontando à situação hermenêutica originária onde a fala está referida à práxis. Também essa crítica ao enfeitiçamento da linguagem retifica nossa autocompreensão, de tal modo que essa pode ajustar-se melhor às nossas experiências. Mas a hermenêutica produz reflexão crítica, por exemplo, quando defende a linguagem compreensível contra falsas pretensões da lógica, que busca importar determinados critérios de cálculo enunciativo a textos filosóficos, demonstrando (Carnap ou Tugendhat) que, quando Heidegger ou Hegel   falam sobre o nada, essa fala seria absurda por não cumprir certas precondições lógicas. Nesse caso, a hermenêutica filosófica pode demonstrar que essas objeções não correspondem à experiência hermenêutica ficando aquém do que se deve compreender. O "nada nadificante", p. ex., não expressa como pensa Carnap um sentimento, mas um movimento do pensamento que deve ser compreendido. A reflexão hermenêutica parece-me ser produtiva onde alguém por exemplo examina o modo de argumentação socrático nos diálogos platônicos a partir da perspectiva de seu rigor lógico. Nesse caso, a reflexão hermenêutica pode descobrir que o processo comunicativo que se dá no desenrolar dos diálogos socráticos é um processo da compreensão e do entendimento, que não é atingido pela busca de conhecimento do analista lógico. Em todos esses casos, a crítica reflexiva reporta-se a uma instância representada pela experiência hermenêutica e sua realização na linguagem. Eleva à consciência crítica o scopus dos enunciados presentes e qual o esforço hermenêutico exigido para sua pretensão da verdade. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Em seu esforço para construir uma fundamentação hermenêutica das ciências do espírito, Dilthey encontrou uma forte oposição da escola epistemológica, que naquele momento também buscava fundamentar as mesmas ciências, partindo do ponto de vista neokantiano, ou seja, da filosofia dos valores desenvolvida por Windelband und Rickert O sujeito epistemológico pareceu-lhe ser uma abstração anêmica. Por mais que ele próprio estivesse entusiasmado pela busca de objetividade nas ciências do espírito, não poderia abstrair do fato de o sujeito conhecente, o historiador que compreende, não estar simplesmente postado frente ao seu objeto, a vida histórica, mas ser sustentado, ele próprio, pelo mesmo movimento da vida histórica. Sobretudo em seus últimos anos, Dilthey buscou cada vez mais fazer justiça à filosofia idealista da identidade, uma vez que no conceito idealístico do espírito estava pensada a mesma generalidade substancial entre sujeito e objeto, entre eu e tu, como ocorria em seu próprio conceito de vida. Aquilo que Georg Misch defendeu de modo tão agudo como ponto de vista da filosofia da vida contra Husserl e Heidegger partilhou com a fenomenologia tanto a crítica a um objetivismo histórico ingênuo quanto a sua justificação epistemológica através da filosofia dos valores vinda do sudoeste da Alemanha. Por mais evidente que tenha sido, a constituição do fato histórico, através da referência aos valores, não fez justiça às implicações do conhecimento histórico no acontecer histórico. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

A ligação e o apoio que Dilthey encontra na hermenêutica romântica, que nesse século XX se apoia no renascimento da filosofia especulativa de Hegel, suscitou uma ampla crítica ao objetivismo histórico (Conde Yorck, Heidegger, Rothacker, Betti etc). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

O exemplo da mitologia é apenas um, dentre muitos. No trabalho concreto das ciências do espírito, poderíamos indicar em muitos pontos a mesma repulsa a um metodologismo ingênuo. No âmbito da reflexão filosófica essa crítica se dá expressamente ao objetivismo e ao positivismo históricos. Essa guinada ganhou importância singular onde a ciência se vincula com pontos de vista originariamente normativos. É o caso da teologia e da jurisprudência. A discussão teológica dos anos de 1950 colocou o problema da hermenêutica em primeiro plano, justamente por ter que conciliar a herança da teologia histórica com a irrupção de novos impulsos de teologia dogmática. A primeira dessas irrupções revolucionárias foi provocada pela exposição da Epístola aos Romanos por Karl Barth. Representou uma "crítica" da teologia liberal, que não tinha em mente a historiografia crítica como tal, mas antes a suficiência teológica, que considerava os resultados da teologia suficientes para se compreender a Sagrada Escritura. Nesse sentido, a lektik, 1971, p. 71-81). Apresenta Corres como precursor disto, cuja volta para a pré-história alemã tornou-se um dos fatores que preparou o levante nacionalista de 1813. Nisto, o trabalho de Baeumler é muito mais correto e, enquanto tal, merece atenção ainda hoje. Como Bachofen, também o seu intérprete move-se naturalmente em um âmbito de experiências psíquicas, que se refere a um espaço científico falso (como fala, com razão, Franz Wiaecker com relação a Bachofen na resenha que faz sobre este, in: Gnomon, vol. 28 1956, p. 161-173). VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Aquele que, como leigo, quiser tomar posição frente ao desenvolvimento do problema hermenêutico no âmbito da discussão jurídica não poderá aprofundar-se unicamente no trabalho jurídico. Na visão de conjunto, ele irá observar que a jurisprudência se afasta amplamente do chamado positivismo legal. Irá considerar também que uma das questões centrais será saber até que ponto a concretização do direito representa um problema jurídico independente. Kurt Engisch (1953) desenvolveu uma panorâmica desse problema. O fato de esse problema ser colocado em primeiro plano, contrapondo-se ao extremismo do direito positivista, é compreensível também do ponto de vista histórico, por exemplo, na Privatrechtsgeschichte der Neuzeit   de Franz Wieacker ou no Methodenlehre der Rechtswissenschaft de Karl Larenz. Nos três âmbitos em que a hermenêutica de há muito desempenha algum papel, na ciência histórico-filológica, na teologia e na jurisprudência, pode-se constatar que a crítica ao objetivismo histórico e conseqüentemente ao "positivismo" deu uma nova significação ao aspecto hermenêutico. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Um ponto positivo dessa situação é o fato de o problema hermenêutico ter sido sistematicamente dimensionado e ordenado em toda sua amplitude pelo importante trabalho de um pesquisador italiano. O historiador de direito Emilio Betti, na sua grande obra Teoria genérale delia interpretazione — cujas idéias foram transpostas também para a língua alemã em um hermeneutisches Manifest (manifesto hermenêutico), sob o título Zur Grundlegung   einer allgemeinen Auslegungslehre — , apresentou uma panorâmica do estado da questão, que seduz tanto pela amplitude de seu horizonte, pelo imponente conhecimento de detalhes, quanto por seu desenvolvimento sistemático. Encontra-se muito bem suprido e invulnerável contra os perigos de um objetivismo histórico ingênuo, sendo ao mesmo tempo historiador de direito, professor de direito e concidadão de Croce e Gentile e até muito familiarizado com a grande filosofia alemã, de tal modo que fala e escreve um alemão perfeito. Ele sabe colher e recolher os frutos da reflexão hermenêutica [393] que vêm amadurecendo num esforço incessante desde Wilhelm von Humboldt   e Schleiermacher  . VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Nesse contexto de uma crítica ao objetivismo histórico podemos incluir sobretudo os trabalhos de Erich Rothacker. É sobretudo nos últimos trabalhos, Die dogmatische Denkform in den Geisteswissenschaften   und das Problem des Historismus, que Rothacker desenvolve seus pensamentos iniciais, onde sustenta o interesse hermenêutico de Dilthey (semelhante a Hans Freyer na Theorie   des objektiven Geistes) contra todo psicologismo. O conceito da forma dogmática de pensamento é concebido inteiramente como um conceito hermenêutico. A dogmática deve ser defendida como um método produtivo do conhecimento das ciências do espírito, na medida em que elabora o contexto imanente de um tema, contexto que determina unitariamente uma região de sentido. Rothacker pode muito bem apelar para o fato de o conceito de "dogmática" não ter um sentido exclusivamente crítico-pejorativo, tanto na teologia quanto na jurisprudência. Mas aqui, diferente do que ocorre nessas disciplinas sistemáticas, o conceito de dogmática não deve ser um mero sinônimo de conhecimento sistemático e, portanto, de filosofia. Deve ser, antes, uma "postura distinta" que se deve justificar frente ao questionamento histórico que procura conhecer desenvolvimentos. Assim, para ele, o conceito de "dogmática" tem seu lugar no conjunto da atitude histórica, a partir donde recebe o seu direito relativo. No fundo, trata-se da mesma formulação geral formulada por Dilthey sobre o conceito de contexto estrutural, só que aplicada de modo especial à doutrina histórica do método. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Todas as atuais críticas ao objetivismo e positivismo histórico têm um ponto em comum, a saber, a idéia de que o chamado sujeito do conhecimento tem o mesmo modo de ser do objeto, de modo que objeto e sujeito pertencem à mesma mobilidade histórica. A oposição entre sujeito e objeto talvez seja adequada onde o objeto, frente à res cogitans  , é o absolutamente outro, a res extensa. O conhecimento histórico, porém, não pode ser descrito adequadamente por meio desse conceito de objeto e objetividade. Segundo as palavras do Conde York, trata-se de compreender a diferença "genérica" entre "ôntico" e "histórico", ou seja, trata-se de reconhecer o chamado sujeito no modo de ser da historicidade que lhe é conveniente. Vimos anteriormente como Dilthey não se aprofundou o bastante para poder tirar todas as conseqüências dessa idéia, mesmo que posteriormente tenham sido tiradas. Faltavam os pressupostos conceituais necessários para superar o problema do historicismo, como explicitou, por exemplo, Ernst   Troeltsch. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

[411] Foi nesse ponto que o trabalho da escola fenomenológica mostrou-se fecundo. Hoje, uma vez tendo ganho uma visão de conjunto das diversas fases de desenvolvimento da fenomenologia de Husserl, parece-me claro que foi ele quem deu o primeiro passo radical nessa direção, ao demonstrar o modo de ser da subjetividade como historicidade absoluta, ou seja, como temporalidade. A obra a que se costuma referir nesse contexto e que marcou época, Ser e tempo de Heidegger, tinha uma intenção bem diferente e muito mais radical: colocar a descoberto a inadequação da concepção ontológica prévia que domina a compreensão moderna da subjetividade e da "consciência", incluindo ainda sua formulação extrema como fenomenologia da temporalidade e da historicidade. Essa crítica serviu à tarefa positiva de recolocar a questão do "ser", à qual os gregos deram uma primeira resposta com a metafísica. Mas Ser e tempo não foi compreendido nessa sua intenção autêntica, mas no que Heidegger tinha em comum com Husserl, uma vez que se viu nessa obra a defesa radical da absoluta historicidade da "pre-sença", tal como essa procedia já da análise husserliana da fenomenalidade originária da temporalidade ("fluir" = Strömen). Argumentava-se assim, por exemplo: O modo de ser da pre-sença ganha agora uma determinação ontologicamente positiva. Não é um ser simplesmente dado, mas tem o caráter do porvir. Não há verdades eternas. Verdade é a abertura do ser que se dá juntamente com a historicidade da pre-sença. Aqui poder-se-ia encontrar o fundamento para justificar a crítica ao objetivismo histórico que se dava nas próprias ciências. É, por assim dizer, um historicismo de segunda ordem, que não apenas contrapõe a relatividade histórica de todo conhecimento à reivindicação absoluta de verdade, mas também pensa seu fundamento, a historicidade do sujeito conhecente [412], e por isso não pode mais considerar a relatividade histórica como uma restrição da verdade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

Pois bem, mesmo que seja verdade, isso não nos permite concluir que na esteira da filosofia diltheyana das concepções de mundo todo conhecimento filosófico já não tenha outro sentido e valor a não ser o de representar uma expressão histórica. Nesse sentido, ele encontra-se no mesmo nível da arte, na qual está em questão a autenticidade e não a verdade. A questão própria de Heidegger está longe de querer suspender a metafísica em favor da história, ou a pergunta pela verdade em função da autenticidade da expressão. Sua intenção é, antes, questionar através do pensamento o pano de fundo que move o questionamento metafísico. O fato de a história da filosofia aparecer agora em um novo sentido, como o interior da história universal, propriamente como história do ser, isto é, história do esquecimento do ser, não significa que esteja em questão aqui uma metafísica da história, nos moldes como a indica Löwith  , como uma forma de secularização da concepção histórico-salvífica do cristianismo, e cuja concretização mais conseqüente no terreno do Iluminismo moderno é representada pela filosofia hegeliana da história. Tampouco a crítica histórica de Husserl ao "objetivismo" da filosofia moderna, reportado em seu tratado sobre a "Krisis", representa uma metafísica da história. A "historicidade" é um conceito transcendental. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

A ciência pode fazer muitas objeções a isso. Desde há muito a hermenêutica é uma parte constitutiva da teologia. Sobretudo com a crítica feita pela teologia dialética à linguagem sobre Deus, e desde que a teologia histórica do liberalismo assumiu a tarefa de harmonizar sua própria pretensão científica com o sentido querigmático da Sagrada Escritura e com sua interpretação, surgiu de novo a problemática hermenêutica. Assim, Rudolf Bultmann  ", adversário ferrenho de toda teoria da inspiração e de toda exegese pneumática, e mestre do método histórico, reconheceu a relação ontológica prévia que o sujeito tem com o texto que procura compreender. Fez isso, na medida em que, na relação do crente com a Sagrada Escritura descobriu uma "pré-compreensão" inerente à [430] existência humana que se manifesta na pergunta por Deus. Quando adotou o lema da desmitologização, procurando liberar o núcleo querigmático do Novo Testamento e salvar assim a Sagrada Escritura do estranhamento histórico, Bultmann estava seguindo na verdade um velho princípio hermenêutico. Isso porque é evidente que o verdadeiro objetivo dos escritos do Novo Testamento é sua mensagem de salvação e que esses escritos devem ser lidos à luz dessa mensagem. Foram sobretudo alguns discípulos que radicalizaram o tema da hermenêutica redescoberto por Bultmann. Ernst Fuchs  , com um livro que reuniu de forma genial a reflexão e a exegese, e Gerhard Ebeling, partindo sobretudo da hermenêutica luterana. Ambos falam de um "acontecimento de linguagem" próprio da fé, buscando afastar do sentido salvífico da tradição bíblica qualquer objetivismo indiferente, na linha do mito ou do fato histórico. Mesmo que não faltem contra-reações na teologia moderna, esses estímulos obrigam a consciência hermenêutica a progredir não só na teologia protestante, mas também na católica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Mas a interpretação não se limita aos textos e à compreensão histórica que neles se deve alcançar. Todas as estruturas de sentido concebidas como textos, desde a natureza (interpretatio naturae, [435] Bacon), passando pela arte (cuja carência de conceitos [Kant] converte-se em exemplo preferencial de interpretação [Dilthey]), até as motivações conscientes ou inconscientes da ação humana, são suscetíveis de interpretação. Essa pretende mostrar não o que é óbvio mas as verdadeiras e latentes concreções de sentido da ação humana, mesmo que o faça revelando o ser real de cada um como o ser de sua própria história (P. Ricoeur), mostrando assim que os condicionamentos sociais e históricos determinam imperceptivelmente nosso pensamento. A psicanálise e a crítica da ideologia, como inimigos a se enfrentar ou aliados em uma síntese cética ou utópica (Adorno, Marcuse), devem submeter-se ainda a uma reflexão hermenêutica. Isso porque o que eles assim descobrem e compreendem não é independente da situação do intérprete. Nenhum campo interpretativo se dá aleatoriamente e muito menos "objetivamente". A reflexão hermenêutica mostra ao objetivismo do historicismo e da teoria positivista das ciências que eles agem a partir de pressupostos ocultos determinantes. Sobretudo a sociologia do saber e a crítica marxista da ideologia demonstraram aqui sua fecundidade hermenêutica. O valor cognitivo dessas interpretações só pode ser garantido mediante uma consciência crítica e uma reflexão da história dos efeitos. O fato de não possuírem a objetividade da science não desmerece seu valor cognitivo. Mas é só uma reflexão hermenêutica crítica, atuante nelas consciente ou inconscientemente, que faz aflorar sua verdade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

A hermenêutica filosófica permite ver que o sujeito conhecente está indissoluvelmente unido ao que se lhe abre e se mostra como dotado de sentido. Além de fazer a crítica ao objetivismo da história e ao ideal do conhecimento positivista do fisicalismo, que a unity of science pretende fundamentar com o método unitário da física, a hermenêutica critica também a tradição da metafísica. Uma das teses básicas da metafísica, a saber, o ser e o verdadeiro, em princípio, são o mesmo, torna-se insustentável. Ser e verdadeiro são o mesmo para o intelecto infinito da divindade, cuja omnipresença a metafísica concebe como a atualidade de tudo o que é. Esse sujeito absoluto não é nem sequer um ideal aproximativo para o modo de ser finito e histórico do ser humano e de suas possibilidades de conhecimento. Isso porque não identificar-se com o presente é uma das características ontológicas do sujeito conhecente. Ele tampouco se identifica com o futuro e com o passado que o determina. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

O problema fica bem caracterizado no conceito kierkegaardiano da "simultaneidade". Seu significado não é exatamente a onipresença, no sentido de uma atualização histórica, mas coloca uma tarefa que posteriormente eu mesmo chamei de tarefa da aplicação. Frente à objeção de Bormann, gostaria de argumentar que a diferenciação que propus entre simultaneidade e concomitância estética segue a mesma linha de Kierkegaard  , embora formulada com uma aplicação de conceitos distinta. É possível que Bormann se refira à seguinte nota do diário: "A situação da simultaneidade é levada a bom termo". Nesse caso, eu digo a mesma coisa com a expressão "totalmente mediado", e isso significa, até a imediata coexistência (Zugleichsein). Para quem tem presente o uso de linguagem de Kierkegaard em sua polêmica contra a "mediação", isso soa como uma clara recaída em Hegel. Deparamo-nos aqui com dificuldades típicas que a hermeticidade da sistemática hegeliana provoca a toda tentativa de manter distância de sua coerção conceitual. Elas atingem tanto Kierkegaard quanto minha própria tentativa de ganhar distância frente a Hegel, à mão de um conceito kierkegaardiano [472]. Assim, comecei a estudar Hegel a fim de aguçar a dimensão hermenêutica da mediação, tanto de antanho quanto do hoje, frente à ingênua falta de conceitos da concepção histórica. Foi nesse sentido que confrontei Hegel com Schleiermacher. Mas, na verdade, na concepção da historicidade do espírito, dou um passo a mais que Hegel. O conceito de Hegel sobre "religião da arte" designa exatamente aquilo que move a minha dúvida hermenêutica sobre a consciência estética: A arte tem sua possibilidade suprema não como arte, mas como religião, como presença do divino. Mas quando Hegel declara que toda arte é algo já passado, essa arte acaba sendo absorvida também pela consciência que recorda historicamente, e como passada ganha sincronicidade estética. Foi a visão desse contexto que me impôs a tarefa hermenêutica de afastar a verdadeira experiência da arte — que não experimenta a arte como arte — da consciência estética, lançando mão do conceito da não diferenciação estética. Creio tratar-se aqui de um problema legítimo, que não procede da devoção à história, mas que nossa experiência da arte não pode perder de vista. Trata-se de uma alternativa falsa querer considerar "arte" como originariamente contemporânea, como a-histórica ou como vivência da formação histórica. Hegel tem razão. Por isso, continuo sem poder concordar com a crítica de Oskar Becker, assim como com qualquer objetivismo histórico, que dentro de certos limites poderia ser válido: a tarefa da integração hermenêutica continua de pé. Pode-se dizer que isso corresponde mais ao estágio ético de Kierkegaard do que ao religioso. E nisso Bormann poderia ter razão. Mas o estágio ético não contém um certo predomínio conceitual também no próprio Kierkegaard? E é assim que alcança transcendência religiosa, mas apenas na medida em que "chama a atenção", e não de outro modo. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

A partir de então pude entrever o que queria. Não era um novo pensamento sistemático e global. Não tinha esquecido a crítica de Kierkegaard a Hegel. A nova redução da filosofia às experiências básicas da existência humana que era preciso explicitar além de qualquer historicismo, encontrou um primeiro principado em meu artigo, homenagem ao aniversário de 70 anos de Paul Natorp  , Zur Systemidee in der Philosophie   (Sobre a idéia de sistema na filosofia, 1924). Tornou-se um documento de minha imaturidade e foi também testemunho de meu novo compromisso e de minha inspiração em Heidegger. Interpretou-se muitas vezes esse artigo como uma antecipação do distanciamento heideggeriano do idealismo transcendental, sem razão alguma do ponto de vista de uma perspectiva histórica. Um traço de verdade nisso tudo poderia ser, acima de tudo, o fato de ter passado uns meses com Heidegger em Friburgo durante o verão de 1923. Mas tão pouco tempo dificilmente poderia ter provocado essa "inspiração" se não estivesse já no terreno preparado. Em todo caso foi o apoio em Heidegger que me permitiu ganhar distância frente aos professores de Marburgo, frente às construções sistemáticas da Natorp e frente ao objetivismo ingênuo da investigação categorial de Hartmann. Mas o artigo foi um testemunho muito pretensioso. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Se Heidegger interpreta a adoção das idéias como o início do esquecimento do ser que culmina na mera representação e no objetivismo onde desemboca a era tecnológica da vontade de poder já universalizada, e quando é conseqüente o bastante para entender o mais antigo pensamento grego sobre o ser como a preparação desse esquecimento do ser produzido na metafísica, diante disso a autêntica dimensão da dialética platônica das idéias significa no fundo algo diferente. O passo latente que Heidegger dá até além de todo ente é um passo além da adoção "unívoca" das idéias e constitui em última instância uma reação contra a interpretação metafísica do ser como ser do ente. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.