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Gadamer (VM): hermenêutica filosófica

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

A consciência da história efeitual é em primeiro lugar consciência da situação hermenêutica. No entanto, o tornar-se [307] consciente de uma situação é uma tarefa que em cada caso reveste uma dificuldade própria. O conceito de situação se caracteriza pelo fato de não nos encontrarmos diante dela e, portanto, não podemos ter um saber objetivo dela. Nós estamos nela, já nos encontramos sempre numa situação, cuja iluminação é a nossa tarefa, e esta nunca pode se cumprir por completo. E isso vale também para a situação hermenêutica, isto é, para a situação em que nos encontramos face à tradição que queremos compreender. Também a iluminação dessa situação, isto é, a reflexão da história efeitual, não pode ser plenamente realizada, mas essa impossibilidade não é defeito da reflexão, mas encontra-se na essência mesma do ser histórico que somos. Ser histórico quer dizer não se esgotar nunca no saber-se. Todo saber-se procede de um dado histórico prévio, que chamamos, com Hegel  , "substância", porque suporta toda opinião   e comportamento subjetivo e, com isso, prefigura e delimita toda possibilidade de compreender uma tradição em sua alteridade histórica. A partir disso a tarefa da hermenêutica filosófica pode ser caracterizada como segue: tem de refazer o caminho da fenomenologia do espírito hegeliana, até o ponto em que, em toda subjetividade, se mostra a substancialidade que a determina. 1667 VERDADE E MÉTODO I SEGUNDA PARTE 2.

Minha resposta é a seguinte: O ponto de partida de minha teoria hermenêutica foi justamente que a obra de arte é uma provocação para nossa compreensão porque se subtrai sempre de novo às nossas interpretações e se opõe com uma resistência insuperável a ser transposta para a identidade do conceito. Isso já pode ser visto, segundo me parece, na "Crítica do juízo", de Kant  . E justamente por isso que o exemplo da arte exerce a função orientadora, que a primeira parte de Verdade e método I possui para o conjunto de meu projeto de uma hermenêutica filosófica. Isso torna-se de todo claro, se considerarmos "a verdade da arte" na multiplicidade e multivariedade infinita de seus "enunciados". VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Meu período de aprendizagem junto a Heidegger encerrou-se com o seu retorno de Marburgo para Friburgo e com o começo de minha própria atividade acadêmica em Marburgo. Foi quando surgiram as três conferências de Frankfurt, hoje conhecidas como "Origem da obra de arte". Escutei-as em 1936. Ali encontrava-se o conceito de "terra", com o qual Heidegger supera de modo dramático o vocabulário da filosofia moderna, vocabulário que ele renovara a partir do espírito da língua alemã e revitalizado em suas preleções. Como isso veio de encontro às minhas próprias perguntas e à minha própria experiência da proximidade entre arte e filosofia, despertou em mim uma ressonância imediata. Minha hermenêutica filosófica procura manter-se na direção de questionamento do Heidegger tardio e torná-la acessível de uma nova maneira. Considerei que para esse fim deveria manter o conceito de consciência, [11] contra cuja função fundamentadora havia se voltado a crítica ontológica de Heidegger. Procurei, no entanto, delimitar esse conceito nele próprio. Heidegger viu aqui, sem dúvida, uma recaída na dimensão de pensamento que ele havia superado — mesmo que tenha percebido que minha intenção voltava-se na direção de seu próprio pensamento. Creio que não compete a mim decidir se o caminho que segui pode pretender alcançar de certo modo os desafios de pensamento de Heidegger. Uma coisa, porém, precisa ser dita hoje. Trata-se de um trecho de caminho, a partir do qual podem-se demonstrar alguns dos intentos do Heidegger tardio, e dizer alguma coisa àquele que não consegue acompanhar a orientação de pensamento do próprio Heidegger. De qualquer modo, deve-se ler corretamente o meu capítulo sobre a consciência histórico-efeitual em Verdade e método. Ali, não se deve ver uma modificação da autoconsciência, algo como uma consciência da história efeitual ou um método hermenêutico nele fundamentado. Antes, precisamos reconhecer aqui a delimitação da consciência pela história efeitual, na qual todos nos encontramos. Trata-se de algo que não conseguimos penetrar completamente. A consciência histórico-efeitual, como foi dito naquele ponto, "é mais ser do que consciência". VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Talvez aqui seja o lugar para se fazer algumas observações às ampliações e apresentações autônomas do problema hermenêutico, do modo como foram apresentadas de um lado por Hans-Robert Jauss e Manfred Frank e, por outro, por Jacques Derrida  . É sem dúvida incontestável que a estética da recepção, desenvolvida por Jauss, enfocou sob uma nova luz toda uma dimensão da pesquisa literária. No entanto, será justo seu posicionamento contra o que tenho em mente com minha hermenêutica filosófica? Parece-me que a ilustração da historicidade da compreensão, que apresentei no exemplo do conceito do clássico, é mal-entendida, toda vez que atribuímos a palavra aqui ao classicismo e ao conceito vulgar de platonismo. Dá-se exatamente o contrário. O exemplo do clássico, em Verdade e método I, quer ilustrar o quanto a mobilidade histórica está incluída na atemporalidade daquilo que se chama de clássico (e que contém, todavia, um componente normativo, mas nenhuma caracterização de estilo), de tal forma que a compreensão se transforma e se renova constantemente. O exemplo do clássico, portanto, nada tem a ver com o ideal   de estilo clássico e nem com o conceito vulgar de platonismo, que [14] considero uma deformação das reais intenções de Platão  . Neste ponto, Oskar Becker viu melhor do que Jauss, quando me acusou, em sua crítica, de estar sendo tomado pela história, e arrolou contra mim o pitagorismo do número, do som e do sonho. Não me senti atingido, neste particular. Mas não vamos tratar disso aqui. A estética da recepção de Jauss seria, ela própria, truncada, segundo me parece, se quisesse dissolver a obra que subjaz em cada configuração receptiva em meras facetas. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Também Manfred Frank foi um promotor essencial da hermenêutica filosófica, através de seus trabalhos baseados num profundo conhecimento do idealismo alemão e do romantismo. Mas aqui também nem tudo me parece claro. Em diversas publicações ele criticou o diálogo e debate críticos que tive com a interpretação psicológica de Schleiermacher  . Para isso ele apoiou-se nas ideias do estruturalismo e do neo-estruturalismo, dedicando um cuidado fundamental à interpretação gramatical em Schleiermacher, partindo da semiótica moderna. Procura valorizar a interpretação gramatical, frente à psicológica. Segundo me parece, porém, não é o caso de se desvalorizar a interpretação psicológica, que é o contributo realmente novo de Schleiermacher. Igualmente não se pode querer reduzir o conceito de adivinhação, como se ele tivesse a ver apenas com o "estilo". Como se o estilo não fosse a própria concreção do discurso. Além do maisSchleiermacher manteve o conceito [15] de adivinhação até o fim, como demonstra o discurso acadêmico paradigmático de 1829. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Finalmente, a mesma problemática obrigou-me a elaborar de modo mais agudo o teor teórico-científico de uma hermenêutica filosófica, na qual a compreensão, a interpretação e o procedimento das ciências hermenêuticas devem encontrar sua legitimação. Isto levou-me a tratar de um problema, com que eu me havia ocupado intensamente desde meus primeiros trabalhos: O que é a filosofia prática? Como podem a teoria e a reflexão dirigir-se para o âmbito da praxis  , visto que esta não tolera nenhum distanciamento, mas, pelo contrário, exige o engajamento. Essa questão tocou-me desde cedo através do pathos   existencial de Kierkegaard  . Ademais, orientei-me pelo modelo da filosofia prática de Aristóteles  . Procurei evitar o modelo distorcido de teoria e sua aplicação, que, partindo do conceito moderno de ciência, determinou de modo unilateral também o conceito de práxis. Foi nesse ponto que Kant introduziu a autocrítica da modernidade. Na Fundamentação da metafísica dos costumes, de Kant acreditei e acredito encontrar uma verdade, quiçá parcial, reduzida ao imperativo, que é no entanto inabalável dentro de seus limites: Os impulsos do Iluminismo não podem prender-se a um utilitarismo social, se é que devem sobreviver à crítica de Rousseau, que segundo o próprio Kant, foi decisiva para ele. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Ora, a filosofia prática não é certamente, ela própria, esta racionalidade. Ela é filosofia, isto é, uma reflexão, e uma reflexão sobre aquilo que deve ser a configuração da vida humana. No mesmo sentido, a hermenêutica filosófica não é ela própria a arte do compreender, mas a sua teoria. Contudo, tanto uma quanto a outra forma de conscientização surge da praxis, e sem esta não é nada mais do que um mero processo vazio. Este é o sentido específico de saber e ciência, que se há de legitimar novamente a partir da problemática hermenêutica. Este foi o objetivo a que tenho dedicado meu trabalho, mesmo depois da conclusão de Verdade e método I. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Hermenêutica clássica e hermenêutica filosófica (1968) [92] VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

A estrutura aplicativa do compreender, revelada na análise filosófica, não significa, de modo algum, uma diminuição da disposição "neutra" de compreender o que o próprio texto diz e nem permite que se aliene o texto de sua "própria" intenção semântica [109] para utilizá-lo com intenções preconcebidas. O que a reflexão faz é apenas descobrir os condicionamentos que já estão atuando, a cada vez, sobre o compreender, condicionamentos que sempre já estão sendo aplicados quando nos empenhamos em esclarecer um texto, visto que são constitutivos de nossa "compreensão prévia". Isso não significa, em absoluto, que deixemos as "ciências do espírito" vegetando como ciências "inexatas" em toda sua lamentável insuficiência, enquanto não se elevarem ao nível de science e não puderem se integrar à unity of science. Ao contrário, uma hermenêutica filosófica haverá de concluir que o compreender só é possível quando aquele que compreende coloca em jogo seus próprios preconceitos. A contribuição produtiva do intérprete é parte inalienável do próprio sentido do compreender. Isso não legitima o caráter privado e arbitrário das pressuposições subjetivas, visto que a coisa que está em questão a cada vez — o texto que se quer compreender — é o único critério dotado de validade. A distância insuperável e necessária entre os tempos, as culturas, as classes, as raças — ou mesmo entre as pessoas — é um momento supra-subjetivo, que confere tensão e vida a todo compreender. Pode-se descrever esse fenômeno também do seguinte modo: O intérprete e o texto possuem cada qual seu próprio "horizonte" e todo compreender representa uma fusão desses horizontes. Assim, não só na ciência neo-testamentária (sobretudo em E. Fuchs   e G. Ebeling), como por exemplo no literary criticism, mas também no desenvolvimento filosófico do enfoque heideggeriano, a questão da hermenêutica deslocou-se radicalmente da base subjetivo-psicológica para um sentido objetivo, mediado pela história dos efeitos. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

A universalidade da hermenêutica depende, em última instância, da medida em que seu caráter teórico, transcendental  , limita sua validez ao âmbito da ciência ou se também inclui os princípios do "sensus communis  " e, com isso, o modo como o uso científico é integrado na consciência prática. Compreendida assim de modo universal, a hermenêutica adquire uma forte afinidade com a "filosofia prática", revitalizada dentro da tradição transcendental-filosófica alemã pelos trabalhos de J. Ritter e sua escola. A hermenêutica filosófica é consciente dessa consequência. Uma teoria da praxis da compreensão é certamente teoria e não prática. Mas nem por isso uma teoria da praxis é uma "técnica" ou uma pretensa cientifização da práxis social. É, ao contrário, uma reflexão filosófica dos limites a que está submetido todo domínio científico-técnico da natureza e da sociedade. São verdades cuja defesa diante do conceito moderno de ciência constitui uma das mais importantes tarefas de uma hermenêutica filosófica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

O fato de a hermenêutica filosófica ter como tarefa abrir a dimensão hermenêutica em toda sua amplitude e alcance e de aplicar seu significado fundamental a todo o conjunto de nossa compreensão de mundo, em todas as suas formas, desde a comunicação entre os seres humanos até a manipulação social, desde a experiência do indivíduo na sociedade até a experiência que ele faz nessa sociedade, desde a tradição construída pela religião e o direito, a arte e a filosofia até a energia da reflexão emancipatória da consciência revolucionária, não é o bastante para excluir a limitação das experiências e dos campos de experiência que o pesquisador individual toma como ponto de partida. Meu próprio trabalho não passa de uma contribuição a mais, acrescentada à filosófica da herança do romantismo alemão, levada a efeito por Dilthey  . Este adotou o tema da teoria das ciências do espírito, munindo-as de uma base nova e mais ampla: na contraposição entre a experiência da arte e a alienação histórica das ciências do espírito, aquela pretende sair-se vitoriosa em virtude da simultaneidade que lhe é própria. Com isso visava-se a uma verdade que, pelo questionamento, ultrapassa toda ciência e que por outro lado antecipa-a. Isso deveria mostrar-se na estrutura essencial da linguagem característica de toda experiência humana de mundo, cujo modo de realização é o da simultaneidade em constante renovação. Nesse sentido, era inevitável que os fenômenos iniciais, mesmo na análise da estrutura da linguagem universal do comportamento humano no mundo, se colocassem em primeiro plano. Isso correspondia ao surgimento histórico-científico do problema hermenêutico que ganhou alento na tradição escrita, na tradição que se havia tornado estranha pela fixação, pela duração e pela distância no tempo. Assim tornara-se óbvio apresentar o complexo problema da tradução como modelo de linguagem do comportamento humano no mundo e desenvolver nas estruturas da tradução a problemática comum do modo de apropriar-se do estranho. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Também a retórica testemunha verdadeiramente a estrutura universal da linguagem universal. Em outro sentido, essa estrutura constitui a base essencial para o elemento hermenêutico, representando [234] para a arte da interpretação da linguagem algo assim como o positivo para o negativo. Os nexos relacionais entre retórica e hermenêutica, que mencionei em meu livro, podem ser ampliados em muitos aspectos como mostram as excelentes contribuições e correções feitas por Klaus Dockhorn no Gottingischen Gelehrten-Anzeigen  . Mas a estrutura de linguagem está tão profundamente inserida na sociabilidade do ser humano que mesmo o teórico das ciências sociais deve ocupar-se com o direito e os limites da problemática hermenêutica. Assim o próprio Habermas confrontou recentemente a hermenêutica filosófica com a lógica das ciências sociais, avaliando-a a partir dos interesses cognitivos desta. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Exatamente essa parece ser a situação da hermenêutica filosófica. Enquanto se definir a hermenêutica como a arte da compreensão e se compreender o exercício dessa arte como um comportamento competente, do mesmo modo que a arte de discursar e de escrever, esse saber disciplinar pode fazer uso consciente das regras e pode ser chamado de teoria da arte. Assim Schleiermacher e seus seguidores concebiam a hermenêutica como "teoria da arte". Mas a hermenêutica "filosófica" não é isso. Ela não está à procura de elevar uma competência à consciência de regras. Essa "elevação continua sendo um processo peculiarmente ambivalente, uma vez que por outro lado a consciência das regras "eleva-se" sempre de novo a uma competência "automática". A hermenêutica filosófica, ao contrário, reflete sobre essa competência e sobre o saber onde essa repousa. Não se presta mais, portanto, à superação de determinadas dificuldades de compreensão como ocorre frente a textos ou no diálogo com outras pessoas, mas o que busca é, como diz Habermas, um "saber reflexivo crítico". Mas o que significa isso? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Vamos explicitar concretamente esse pensamento. A reflexão efetuada pela hermenêutica filosófica seria crítica no sentido de que descobriria o objetivismo ingênuo onde se encontra enredada a autocompreensão das ciências históricas, orientada nas ciências da natureza. Aqui a crítica da ideologia lança mão da reflexão hermenêutica interpretando o caráter de preconceito de toda compreensão como uma crítica da sociedade. Ou a reflexão hermenêutica descobre falsos embasamentos (Hypostasierungeri) de palavras no estilo que fazia Wittgenstein   ao criticar os conceitos da psicologia remontando à situação hermenêutica originária onde a fala está referida à práxis. Também essa crítica ao enfeitiçamento da linguagem retifica nossa autocompreensão, de tal modo que essa pode ajustar-se melhor às nossas experiências. Mas a hermenêutica produz reflexão crítica, por exemplo, quando defende a linguagem compreensível contra falsas pretensões da lógica, que busca importar determinados critérios de cálculo enunciativo a textos filosóficos, demonstrando (Carnap ou Tugendhat) que, quando Heidegger ou Hegel falam sobre o nada, essa fala seria absurda por não cumprir certas precondições lógicas. Nesse caso, a hermenêutica filosófica pode demonstrar que essas objeções não correspondem à experiência hermenêutica ficando aquém do que se deve compreender. O "nada nadificante", p. ex., não expressa como pensa Carnap um sentimento, mas um movimento do pensamento que deve ser compreendido. A reflexão hermenêutica parece-me ser produtiva onde alguém por exemplo examina o modo de argumentação socrático nos diálogos platônicos a partir da perspectiva de seu rigor lógico. Nesse caso, a reflexão hermenêutica pode descobrir que o processo comunicativo que se dá no desenrolar dos diálogos socráticos é um processo da compreensão e do entendimento, que não é atingido pela busca de conhecimento do analista lógico. Em todos esses casos, a crítica reflexiva reporta-se a uma instância representada pela experiência hermenêutica e sua realização na linguagem. Eleva à consciência crítica o scopus dos enunciados presentes e qual o esforço hermenêutico exigido para sua pretensão da verdade. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Mas a hermenêutica filosófica estende sua pretensão mais além. Reivindica universalidade. Fundamenta-a dizendo que a compreensão e o entendimento não significam primária e originalmente um procedimento ensinado metodologicamente, mas uma forma de realização da vida social humana, que em última formalização representa uma comunidade de diálogo. Nada pode ser excluído dessa comunidade de diálogo, nenhuma experiência de mundo. Nem a especialização das ciências modernas e seu crescente esoterismo empreendedor, nem o trabalho material e suas formas de organização, nem as instituições de poder e administração política, que mantêm a constituição da sociedade, encontram-se fora desse médium universal da razão (e da desrazão) prática. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Mas no que lhe interessa, ele acrescenta: Assim como o paciente aprende a superar as coerções ocultas, a dissolver as repressões, tomando consciência delas, também no âmbito social há que se descobrir e dissolver as coerções ocultas das relações sociais de dominação pela crítica da ideologia. Segundo Habermas, o otimismo confiado do diálogo da hermenêutica filosófica não poder oferecer isso, uma vez que perpetua apenas um pseudo  -acordo sobre a base de preconceitos sociais vigentes. Faltar-lhe-ia a reflexão crítica. Precisaria, assim, de uma profunda interpretação hermenêutica de uma "comunicação sistematicamente deformada". Porque "temos que assumir a provocação de que o consenso de fundo das tradições e dos jogos de linguagem vividos pode ser uma consciência integrada coercitivamente, o resultado de uma pseudocomunicação, não apenas no caso patológico específico de sistemas familiares perturbados, mas também no sistema da sociedade como um todo". Habermas recusa-se a restringir a comunicação ao "espaço de jogo tradicional das convicções vigentes", vendo nisso uma privatização impossível da pretensão iluminista postulada pela hermenêutica profunda. Foi nesse sentido que ele compreendeu a menção que fiz do papel social do médico e das condições restritivas da psicoterapia. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Ora, a significação paradigmática que corresponde à psicanálise para a crítica à hermenêutica e para a crítica dentro da comunicação social encontra-se no papel da reflexão emancipatória, que tem sua função terapêutica nela. A reflexão liberta alguém na medida em que torna visível o que o domina imperceptivelmente. De certo, trata-se de reflexão crítica num sentido diferente do que o sentido que se dá na reflexão hermenêutica, que como eu dizia destrói a autocompreensão inadequada descobrindo a falta de retidão metodológica. Não que a crítica que se orienta no paradigma da psicanálise estivesse em contradição com a crítica hermenêutica (mesmo que, como gostaria de demonstrar, a crítica hermenêutica deva negar-se a assumir esse paradigma). Isso não lhe é suficiente. Por meio da reflexão hermenêutica, as ciências hermenêuticas defendem-se contra a tese de que seu procedimento seria acientífico, visto negarem a "objetividade" da science. Nesse ponto, a crítica da ideologia concorda com a hermenêutica filosófica. Acusa, porém, a hermenêutica de perpetuar de modo indevido uma persistência tradicionalista de preconceitos herdados. Desde a irrupção da revolução industrial e da ciência na vida social, o momento da tradição desempenharia um papel meramente secundário. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

K.O. Apel, em todo caso, faz essa crítica porque não compreendeu direito o que tem em mente a hermenêutica filosófica quando fala de aplicação. A análise que faço da experiência hermenêutica tem como objeto a praxis exitosa das ciências hermenêuticas, na qual certamente não está atuando nenhuma "aplicação consciente" que pudesse favorecer uma corrupção ideológica do conhecimento. Essa análise deveria ser levada realmente a sério. Esse mal-entendido já fora objeto de preocupação de Betti. Aqui está em jogo sem dúvida uma obscuridade no conceito de consciência de aplicação. É absolutamente verdadeiro, como constata Apel, que frente à auto-evidência objetivista das ciências compreensivas e face à práxis vital da compreensão, a consciência de aplicação [261] apresenta-se como uma exigência hermenêutica. Assim, uma hermenêutica filosófica, no estilo que procurei desenvolver, torna-se "normativa", no sentido de que busca substituir uma má filosofia por outra melhor. Mas não propaga uma nova práxis e não há indícios que afirmem que a práxis hermenêutica se guie concretamente por uma consciência e tendência de aplicação, e isso inclusive no sentido de uma legitimação consciente de uma tradição vigente. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

A experiência hermenêutica carrega uma tensão não só desde o surgimento da ciência moderna, mas desde que se pleiteou um questionamento hermenêutico: uma tensão que jamais se resolve. Desse modo, ela não se deixa enquadrar sob o esquema de um autoconhecimento na alteridade, no qual o sentido seria sempre apreendido e transmitido plenamente. Esse conceito idealista do sentido do compreender não me parece desorientar apenas Apel, mas a maioria de meus críticos. Eu próprio admito que uma hermenêutica filosófica reduzida a idealismo necessita de complemento crítico. Procurei demonstrar isso na crítica aos seguidores hegelianos do século XIX, Droysen e Dilthey. Mas o impulso da hermenêutica não foi sempre "compreender" pela interpretação o estranho, a vontade inescrutável dos deuses, a mensagem de salvação ou as obras dos clássicos. Tampouco isso significa sempre uma inferioridade constitutiva daquele que compreende frente àquele que fala ou que dá a entender? VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Parece que lhe causa certa satisfação que a hermenêutica careça de tradição. Em todo caso, só pode referir-se em sentido diverso a Dilthey e à problemática de uma hermenêutica filosófica desenvolvida a partir de Heidegger. Dilthey buscou mostrar a tradição da hermenêutica teológica, onde se encontram Schleiermacher e, com ele, o método histórico da era pós-romântica. A pré-história pré-romântica, com efeito, é mais pré-história do que história. A "hermenêutica recente" no sentido de Jaeger só pode nascer pela ampliação da teoria da interpretação teológica e filológica à ideia de uma metodologia histórica geral. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Não podemos analisar aqui como foi que, partindo de sua intenção fundamental, Heidegger manteve e subsumiu em seu pensamento tardio a obra de destruição de seus inícios. O estilo sibilino de seus últimos escritos atesta isso muito claramente. Ele estava plenamente consciente de sua carência de linguagem assim como da nossa. Ao lado de suas próprias tentativas de abandonar "a linguagem da metafísica" com a ajuda da linguagem poética de Hölderlin  , parece-me que só houve dois caminhos transitáveis para indicar esse caminho que leva ao aberto, frente à autodomesticação ontológica própria da dialética. Esses dois caminhos foram [368] efetivamente transitados. Um deles é o regresso da dialética ao diálogo e desse à conversação. Eu mesmo procurei seguir esse caminho em minha hermenêutica filosófica. O outro caminho é o da desconstrução, estudado por Derrida. Não se trata aqui de resgatar o sentido que desaparecera da vivacidade da conversação. No pano de fundo da trama das relações de sentido que sustentam todo falar, num conceito ontológico de écriture, portanto — em lugar do falatório ou da conversação — deve-se dissolver a unicidade de sentido, levando a cabo, assim, a verdadeira ruptura da metafísica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Eu disse certa vez que "o sentido é sentido de direção". E muitas vezes Heidegger utilizou-se de um arcaísmo ortográfico escrevendo a palavra Sein   (ser) como Seyn para sublinhar seu caráter verbal. De modo parecido, deve-se ver minha tentativa de eliminar a herança da ontologia da substância, partindo da conversação e da linguagem comum, linguagem buscada e formada na conversação. Nessa linguagem o elemento determinante é a lógica de [370] pergunta e resposta. Ela abre uma dimensão de entendimento que transcende as expressões fixadas pela linguagem e, portanto, a síntese global no sentido da autocompreensão monológica da dialética. De certo, a dialética idealista não nega sua origem da estrutura fundamental especulativa da linguagem, como demonstrei na terceira parte de Verdade e método I. Mas, quando subordina a dialética a um conceito de ciência e de método, Hegel encobre na verdade sua procedência, sua origem na linguagem. A hermenêutica filosófica tem em mente assim a referência à unidade-dual especulativa que se desenrola entre o dito e o não dito, que na verdade precede a tensão dialética da contradição e sua superação num novo enunciado. Creio que a tentativa de converter em supersujeito o papel que eu reconheci na tradição, a saber, formular perguntas e projetar respostas, buscando reduzir, com isso, a experiência hermenêutica a uma parole vide, como fazem Manfred Frank e Forget, não passa de um erro grosseiro. Isso não encontra base alguma em Verdade e método. Em Verdade e método, tradição e diálogo não representam nenhum sujeito coletivo. Trata-se simplesmente de um coletivo para designar cada vez um texto concreto (no sentido mais amplo de texto, incluindo uma obra de pintura, um edifício e até mesmo um acontecimento natural). O diálogo socrático de cunho platônico é sem dúvida um gênero muito especial de conversação, conduzida por um interlocutor e seguida pelo outro, queira ou não. Mas ele serve de modelo para qualquer diálogo, porque nele não se refutam as palavras mas a alma do outro. O diálogo socrático não é nenhum jogo esotérico de disfarces para ocultar um saber mais fundamental. É a verdadeira realização da anamnesis  , da recordação pensante, a única recordação possível para a alma decaída na finitude do corpóreo e que se realiza como conversação. O sentido da unidade especulativa que se realiza na virtualidade da palavra é justamente o fato de essa não ser uma palavra única nem um enunciado construído, mas ultrapassar tudo que é passível de ser enunciado. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Parece que a imagem do historicista, caracterizada e combatida por Strauss aqui, corresponde àquele ideal do Iluminismo perfeito que em minhas próprias investigações sobre a hermenêutica filosófica caracterizei como a ideia norteadora do irracionalismo histórico de Dilthey e do século XIX. Não se trata de um ideal utópico do presente, em cuja luz por assim dizer o passado desve-lar-se-ia por completo? Creio que aplicar a perspectiva do presente sobre todo o passado, considerando-a como superior a este, não representa a verdadeira essência do pensamento histórico, mas caracteriza a positividade obstinada de um historicismo "ingênuo". O pensamento histórico tem sua dignidade e seu valor de verdade no reconhecimento de que "o presente" não existe, o que existe é um horizonte de futuro e passado, em constante mudança. Ainda não se concretizou (e creio que jamais poderá se concretizar) que alguma perspectiva, na qual se mostram ideias herdadas da tradição, possa ser a correta. A compreensão "histórica" não goza de nenhum privilégio sobre essa questão, nem a de hoje e nem a de amanhã. Ela mesma será abarcada pelos horizontes cambiantes e terá de mover-se com eles. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

O testemunho mais evidente em favor da aspiração a reconhecer a verdade, também à margem da ciência, é a experiência da arte. É mais fácil recusar as exigências da vita   practica, uma vez que em nossa época de fé na ciência e sob a égide da especialização generalizada parece que se renunciou ao próprio direito em favor de levar uma vida "científica". No que diz respeito à experiência da arte, tampouco faltaram tendências a reclamar sua cientificização (cf. Gehlen e Bense). Graças aos recursos da teoria moderna da informação, é possível de princípio e em boa medida substituir o arsenal da invenção artística com produtos de uma combinação técnica, denunciando a capacidade de juízo dos consumidores contemporâneos da arte (uma capacidade que nunca foi muito elevada). A experiência da arte, cujo calcanhar de Aquiles sempre foi sua convivência com o contemporâneo e que demonstra sua autêntica soberania na simultaneidade (Gleichzeitigkeit) que guarda com a arte sobrevivente de épocas passadas, guarda uma pretensão de verdade que limita a pretensão de validez exclusiva da ciência. Essa pretensão impõe à reflexão filosófica um tema que não se esgota na teoria da ciência. M. Dufrenne, na França, e L. Pareyson, na Itália, renovaram a problemática da estética a partir dessa perspectiva. Em Verdade e método Ius, eu próprio tentei legitimar a reivindicação filosófica da verdade, partindo da experiência da arte, frente à auto-interpretação ingênua da ciência moderna. A ciência da poesia ou a ciência da arte em geral não são as primeiras nem as únicas a integrar a poesia em nossa autocompreensão humana. A poesia, sobretudo, mas também qualquer outra arte que tenha algo a nos dizer, já está incorporada desde sempre em nossa autocompreensão e contribui em sua formação. Esse fato legitima a pretensão da hermenêutica filosófica de abordar essa autocompreensão em suas condições formais e de conteúdo e a elevá-la a conceito. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

A hermenêutica filosófica permite ver que o sujeito conhecente está indissoluvelmente unido ao que se lhe abre e se mostra como dotado de sentido. Além de fazer a crítica ao objetivismo da história e ao ideal do conhecimento positivista do fisicalismo, que a unity of science pretende fundamentar com o método unitário da física, a hermenêutica critica também a tradição da metafísica. Uma das teses básicas da metafísica, a saber, o ser e o verdadeiro, em princípio, são o mesmo, torna-se insustentável. Ser e verdadeiro são o mesmo para o intelecto infinito da divindade, cuja omnipresença a metafísica concebe como a atualidade de tudo o que é. Esse sujeito absoluto não é nem sequer um ideal aproximativo para o modo de ser finito e histórico do ser humano e de suas possibilidades de conhecimento. Isso porque não identificar-se com o presente é uma das características ontológicas do sujeito conhecente. Ele tampouco se identifica com o futuro e com o passado que o determina. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Desse modo, a hermenêutica filosófica insere-se num movimento filosófico de nosso século que superou a orientação unilateral do factum da ciência, que era evidente e natural tanto para o neokantismo quanto para o positivismo da época. Mas a hermenêutica tem sua relevância para a teoria da ciência, na medida em que com sua reflexão no âmbito das ciências descobre condicionamentos de verdade que não pertencem à lógica da investigação, mas que a precedem. Em certa medida, esse é o caso, embora não exclusivamente, das assim chamadas ciências do espírito, cujo termo inglês equivalente (moral   sciences) mostra que essas ciências tomam por objeto algo que pertence necessariamente ao próprio conhecente. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Esse retorno à tradição da filosofia prática pode ajudar-nos na proteção frente à obviedade e naturalidade técnica do conceito moderno de ciência. Mas isso não esgota a minha intenção filosófica. [456] No diálogo hermenêutico em que nos encontramos, sinto que essa intenção filosófica não foi suficientemente levada em consideração. O conceito de jogo, que já há décadas eu deslocara da esfera subjetiva do "instinto de jogo" (Schiller  ), utilizando-o na crítica da "distinção estética", implica um problema ontológico. Isso porque nesse conceito conjugam-se tanto o jogo recíproco de acontecer e compreender quanto os jogos de linguagem de nossa experiência de mundo em geral, tal como foram tematizados por Wittgenstein na intenção de criticar a metafísica. Mas o questionamento que eu faço só poderá apresentar-se como uma "ontologização" da linguagem aos olhos de quem deixar de questionar os pressupostos da instrumentalização da linguagem em geral. O que a experiência hermenêutica nos propõe é, na verdade, um problema filosófico, a saber, descobrir as implicações ontológicas inerentes ao conceito "técnico" de ciência e fomentar o reconhecimento teórico da experiência hermenêutica. Nesse sentido, o diálogo filosófico deve vir primeiro, não para renovar um platonismo, mas para renovar um diálogo com Platão, cujo questionamento ultrapasse os conceitos fixos da metafísica e sua inadvertida sobrevivência. Como reconhece muito bem Wiehl, as Fussnoten zu Plato (notas de pé de página a Platão) de Whitehead poderiam ser importantes para essa tarefa (cf. sua introdução à edição alemã do Adventures ofldeas, de Whitehead). Em todo caso, era minha intenção conjugar a dimensão da hermenêutica filosófica com a dialética platônica, e não com a hegeliana. O III volume de meus Kleine Schriften mostra, já no título, qual o tema do livro: Idee   und Sprache   (Ideia e linguagem). Toda honra seja dada à investigação moderna da linguagem. No entanto, a auto-evidência técnica da ciência moderna está privando-a da dimensão hermenêutica e da tarefa filosófica nela implicada. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

O volume Hermeneutik   und Dialektik (Hermenêutica e dialética, 1970), escrito em minha homenagem, através do amplo espectro de suas contribuições, dá uma boa ideia do alcance dos problemas filosóficos abordados pelo questionamento hermenêutico. Nesse entremeio, a hermenêutica filosófica tornou-se um constante companheiro de diálogo também no âmbito específico da metodologia hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Na teoria da literatura, no seguimento de Betti, há que se citar sobretudo o livro de Hirsch, Validity in Interpretation   (1967), e uma série completa de outros ensaios que destacam de modo decisivo o aspecto metodológico da teoria da interpretação. Cf., por exemplo, S.W. Schmied-Kowarzik "Geschichtswissenschaft und Geschichtlichkeit  " (Ciência da história e cientificidade), in: Wiener Zeitschrift fur Philosophie  , Psychologie  , Pädagogik, 8 (1966), p. 133s; D. Benner "Zur Fragestellung   einer Wissenschaftstheorie der Historie" (Para a colocação da pergunta por uma teoria científica da história), in: Wiener Jahrbuch fur Philosophie, 2 (1969), p. 52s. Acabo de encontrar uma excelente análise do que significa método no procedimento da interpretação em Thomas Seebohm, Zur Kritik   der hermeneutischen Vernunft   (Sobre a crítica da razão hermenêutica, 1962); mas esse escrito não tem a pretensão de ser uma hermenêutica filosófica, substituindo-a por um conceito especulativo de uma totalidade dada. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Isso leva-me a falar da história da hermenêutica. A sua tematização em meu próprio ensaio representou no fundo uma tarefa preparatória, formando um pano de fundo para o meu trabalho. A consequência disso é que todas as minhas exposições demonstraram uma certa unilateralidade. Isso vale sobretudo para Schleiermacher. Nem as lições sobre hermenêutica — encontradas tanto na edição de Lucke quanto no material original que H. Kimmerle editou nas "Abhandlungen der heidelberger Akademie der Wissenschaften" (e entrementes completadas com um minucioso epílogo [463] crítico) — nem tampouco as conferências acadêmicas de Schleiermacher — que comportam a casual referência polêmica a Wolf e Ast — podem ser comparadas com o conteúdo do seu curso de dialética, no que diz respeito ao peso teórico para uma hermenêutica filosófica, sobretudo o nexo entre pensar e falar elaborado ali. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Nesse ponto, o conceito de sentido defendido pela filosofia idealista da identidade foi funesto. Ele reduziu a competência da reflexão hermenêutica à chamada "tradição cultural", seguindo a linha de Vico que só considerava compreensível para os homens o que era feito por estes. A reflexão hermenêutica, que representa o ponto central de toda minha investigação, tenta mostrar justamente que esse conceito da compreensão de sentido é errôneo, e nessa perspectiva tive de restringir também a famosa determinação de Vico. Parece-me que tanto Apel quanto Habermas fincam pé nesse sentido idealístico do compreender o sentido, que nada tem a [471] ver com o ductus de minha análise. Não foi por acaso que orientei a minha investigação pela experiência da arte, cujo "sentido" não pode ser esgotado pela compreensão conceitual. O fato de eu ter desenvolvido o questionamento de uma hermenêutica filosófica universal, tomando como ponto de partida a crítica à consciência estética e refletindo sobre a arte — e não partindo imediatamente do âmbito das chamadas ciências do espírito — não significa, de modo algum, um arrefecimento diante da exigência de método na ciência. Significa antes uma primeira medição do alcance que possui a questão hermenêutica e que não busca primeiramente designar certas ciências como hermenêuticas, mas trazer à luz uma dimensão que precede a todo uso do método na ciência. E por isso que a experiência da arte tornou-se importante em muitos aspectos. O que significa essa superioridade temporal   que a arte reivindica como conteúdo de nossa consciência estética formativa? Surge então uma dúvida: Será que essa consciência estética que a "arte" tem em mente — como ocorre com o próprio conceito de "arte", elevado ao caráter pseudo-religioso — não representa uma diminuição de nossa experiência da obra de arte, tal como a consciência histórica e o historicismo são uma diminuição da experiência histórica? E igualmente intempestiva? VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

Isso eu não o sabia desde o princípio. Pouco a pouco cheguei à convicção de que aquele Aristóteles tão próximo, cuja precisão conceitual estava insuspeitavelmente unida à intuição, à experiência e ao contato com a realidade, simplesmente não fora o pioneiro a expressar o novo pensamento. Heidegger seguiu, antes, o princípio do Sofista platônico de fortalecer o adversário, e parecia ser quase um Aristóteles redivivas que o atraía globalmente com toda a força da intuição e a audácia de seus conceitos originais. Mas essa identificação a que nos induziam as interpretações de Heidegger era para mim um enorme desafio. Dei  -me conta de que meus estudos anteriores, que me levaram por muitos terrenos, sobretudo a ciência da literatura e a história da arte, no campo da filosofia antiga não serviam para nada, campo que servira de base para minha dissertação. Comecei assim um novo estudo planificado da filologia clássica (sob a condução de Paul Friedländer), dando preferência, além dos filósofos gregos, sobretudo a Píndaro  , iluminado pelo pensamento de Hölderlin, à época já acessível… Estudei também retórica, cuja função complementar da filosofia pressenti então, e que me acompanhou até a elaboração de minha hermenêutica filosófica. Devo a esses estudos, definitivamente, minha resistência ao forte apelo de identificar-me com o pensamento de Heidegger. Permanecer próximo dos gregos, embora sabendo de sua heterogeneidade, descobrir em sua diferença verdades que estavam esquecidas e talvez continuassem exercendo sua influência de maneira inadvertida, foi para mim o Leitmotiv mais ou menos expresso de todos os meus estudos. Isso porque a interpretação dos gregos por Heidegger implicava um problema que jamais me abandonou, sobretudo depois de Ser e tempo  . Por aquela época, para o objetivo a que Heidegger se propunha, era possível, sem dúvida, opor ao conceito existencial da "pre-sença" o puro "ser simplesmente dado" como conceito contrário e derivado extremo, sem distinguir entre a ideia grega do ser e o "objeto dos conceitos das ciências naturais". Mas isso continha uma provocação, e eu me deixei [487] levar por ela e, sob o estímulo de Heidegger, acabei aprofundando-me na física aristotélica e na gênesis da ciência moderna, sobretudo em Galileu  . É possível que publique ainda fragmentos de um comentário incompleto sobre a Física. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

A questão a respeito do título do livro tornou-se árdua. Meus colegas compatriotas e estrangeiros esperavam a obra como uma hermenêutica filosófica. Mas, quando propus esse título o editor me perguntou: E isso o que é? Na realidade, foi melhor relegar a expressão ainda estranha para o subtítulo. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

O que era essa hermenêutica filosófica? Em que difere da hermenêutica romântica, que nasceu quando Schleiermacher aprofundou uma antiga disciplina teológica, culminou na hermenêutica das ciências do espírito de Dilthey e acabou sendo considerada como uma metodologia das ciências do espírito? Com que direito meu próprio ensaio podia chamar-se de hermenêutica filosófica? VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.

Quando comecei a elaborar uma hermenêutica filosófica, sua própria pré-história exigia que se tomasse as ciências "da compreensão" como ponto de partida. Mas acrescia-se a elas um complemento que até o momento não foi levado em conta. Refiro-me à experiência da arte. Isso porque ambas, a arte e as ciências históricas, são modos de experiência que implicam diretamente nossa própria compreensão da existência. A ajuda conceitual para a problemática da "compreensão", formulada em sua amplitude correta, foi tomada da elaboração heideggeriana   da estrutura existencial da compreensão, que ele chamou primeiramente de "hermenêutica da facticidade", a auto-interpretação do fáctico, quer dizer, da existência humana real. Meu ponto de partida foi, então, a crítica ao idealismo e a suas tradições românticas. Vi claramente que as formas de consciência que havíamos herdado e adquirido, a consciência estética e a consciência histórica, eram figuras alienadas de nosso verdadeiro ser histórico e que as experiências originárias transmitidas pela arte e pela história não podiam ser compreendidas partindo-se daí. A distância tranquila que a consciência burguesa gozava de sua cultura ignorava o fato de que todos estamos implicados na situação e nela estamos em jogo. Por isso, a partir do conceito de jogo, busquei superar as ilusões da autoconsciência e os preconceitos do idealismo da consciência. O jogo nunca é um mero objeto, mas existe para aquele que participa dele, mesmo que seja ao modo de espectador. A inadequação dos conceitos de sujeito e objeto, já assinalada por Heidegger na exposição da pergunta pelo ser, formulada em Ser e tempo, poderia ser mostrada aqui de maneira concreta. O que mais tarde levou à "guinada" do pensamento em Heidegger, eu próprio procurei descrever como uma experiência-limite de nossa autocompreensão, como a consciência da história dos efeitos, que é mais ser do que consciência. O que assim formulei não era uma tarefa para a práxis [496] metodológica da arte e da ciência histórica nem tampouco se referia em primeira mão à consciência de método dessas ciências. Referia-se exclusivamente e em primeiro lugar à ideia filosófica da prestação de contas, da explicação. Até que ponto o método é uma garantia de verdade? A filosofia deve exigir da ciência e do método que reconheçam sua parcialidade no conjunto da existência humana e de sua racionalidade. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 30.