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Gadamer (VM): dimensão hermenêutica

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Em um empreendimento como este é questão de ordem levar-se em conta a ressonância que o projeto pessoal encontrou junto à crítica. Também nesse caso, não podemos negligenciar que o fato de a história efeitual pertencer à coisa ela mesma é uma verdade hermenêutica. Nesse sentido há que se remeter para o prefácio à 2a edição e o posfácio à 3a e 4a edições. Olhando retrospectivamente, hoje, parece-me que não se alcançou plenamente a consistência de caráter teorético desejada, pelo menos num ponto. Não fica suficientemente claro como se harmonizam os dois projetos fundamentais que contrapõem o conceito de jogo ao princípio subjetivista que determina o pensamento da modernidade. Por um lado, encontra-se a orientação no jogo da arte, e ademais, a fundamentação da linguagem no diálogo, que trata do jogo da linguagem. Com isso coloca-se a questão mais ampla e decisiva: até que ponto consegui tornar visível a dimensão hermenêutica como um além da autoconsciência, e isto quer dizer, não suspender mas conservar a alteridade do outro na compreensão? Tive, assim, que recuperar o conceito de jogo em minha perspectiva ontológica, ampliada ao caráter universal da linguagem. Tratava-se de vincular estreitamente o jogo da linguagem com o jogo da arte, no qual havia vislumbrado como o caso hermenêutico por excelência. Era natural agora pensar a nossa experiência de mundo em seu aspecto da linguagem, que é universal, sob o modelo do jogo. Já no prefácio à 2 — edição de meu livro assim como nas páginas conclusivas de minha contribuição "Die phänomenologische Bewegung  " (O movimento fenomenológico) mostrei a convergência das minhas ideias concebidas nos anos trinta com o conceito de jogo do Wittgenstein   tardio. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

A questão então é: como o jogo da linguagem, que é o jogo mundano de cada um, se conjuga com o jogo da arte. Como um se relaciona com o outro? É claro que em ambos os casos o caráter próprio da linguagem está incluído na dimensão hermenêutica. Creio ter mostrado de maneira convincente que a compreensão do falado deve ser pensada a partir da situação de diálogo, e isto significa em última instância, a partir da dialética de pergunta e resposta, na qual nos entendemos e pela qual articulamos o mundo comum. Ultrapassei a lógica de pergunta e resposta, como já havia sido esboçada por Collingwood, isso porque a orientação de mundo não se dá apenas no fato de desenvolver-se, entre os dialogantes, pergunta e resposta, mas por proceder das próprias coisas de que se fala. A coisa (Sache  ) "suscita perguntas". Por isso, o processo de pergunta e resposta desenrola-se também entre o texto e seu intérprete. A escritura como tal não modifica em nada a situação do problema. Em questão está a coisa de que se fala, seu ser-assim-ou-assado. Meios de comunicação, como a carta, por exemplo, são a continuação de um diálogo, através de outros meios. Desta forma, também um livro, que aguarda pela resposta do leitor, é a abertura de um diálogo dessa natureza. Ali, algo vem à fala. VERDADE E MÉTODO II Introdução 1.

Encontramos ali, porém, uma dimensão ainda mais abrangente do problema hermenêutico, estreitamente ligada à posição central que a linguagem ocupa no âmbito hermenêutico. A linguagem não é apenas um médium, entre outros, dentro do mundo das "formas simbólicas" (Cassirer  ), mas tem uma relação especial com o potencial caráter comunitário da razão. É a razão que se atualiza comunicativamente na linguagem, como já dizia R. Hõnigswald: A linguagem não é apenas "fato", mas "princípio". É nisso que repousa a universalidade da dimensão hermenêutica. Esta universalidade já se encontra na teoria do significado de Agostinho   e Tomás de Aquino  , à medida que eles consideravam que o significado dos signos (das palavras) era superado peló das coisas, justificando assim a tarefa de transcender o sensus litteralis. A hermenêutica, hoje, não pode simplesmente seguir essa teoria, isto é, não pode entronizar uma nova alegorese. Para isso precisaríamos pressupor uma linguagem da criação, pela qual Deus fala conosco. Não podemos, contudo, evitar a consideração de que não só no discurso e na escrita mas em todas as criações humanas encontra-se um "sentido", e que a tarefa da hermenêutica é descobrir esse sentido. Hegel   [112] expressou-o na sua teoria do "espírito objetivo". Essa parte de sua filosofia do espírito permaneceu viva independentemente da totalidade do sistema dialético (cf., por exemplo, a teoria do espírito objetivo de Nicolai Hartmann e o idealismo de Croce e Gentile). Não só a linguagem da arte reivindica legitimamente um entendimento, mas toda forma de criação cultural humana em geral. Sim, a questão se amplia. Existirá algo que não faça parte de nossa orientação no mundo fundamentalmente como linguagem? Todo conhecimento humano do mundo é mediado pela linguagem. Quando se aprende a falar já se cumpre uma primeira orientação no mundo. Mas não só isso. A estrutura da linguagem de nosso estar-no-mundo acaba articulando todo o âmbito da experiência. A lógica da indução, descrita por Aristóteles   e desenvolvida por F. Bacon como fundamento das novas ciências empíricas, parece insatisfatória enquanto teoria lógica da experiência científica e carente de correção. Nela transparece, porém, claramente sua proximidade com a articulação de mundo feita na linguagem. Já Temístio, em seu comentário a Aristóteles, ilustrou este capítulo correspondente de Aristóteles (An. Post B 19) com o exemplo do aprendizado da fala. A linguística moderna (Chomsky) e a psicologia (Piaget) deram novos passos nesse terreno. Isso vale, porém, para um sentido ainda mais amplo. Toda experiência realiza-se numa constante ampliação comunicativa de nosso conhecimento do mundo. Ela mesma é conhecimento do conhecido num sentido muito mais profundo e generalizado do que expressava a fórmula cunhada por A. Boeckh para designar o ofício do filólogo. É que a tradição na qual vivemos não é o que se chama de tradição cultural, que consistiria apenas de textos e monumentos, e que transmitiria um sentido estruturado na linguagem ou documentado historicamente, deixando "do lado de fora" os reais determinantes de nossa vida, as condições de produção etc. Bem longe disso, o próprio mundo experimentado pela comunicação se nos transmite constantemente como uma totalidade aberta, traditur. Isso não é nada mais que experiência. Ela se dá sempre que se experimenta mundo, sempre que se supera o estranhamento, onde se produz iluminação, intuição, apropriação. A tarefa primordial da hermenêutica como teoria filosófica consiste em mostrar, por fim, como bem indicou Polanyi, que só pode ser chamada de "experiência" a integração de todo conhecimento da ciência ao saber pessoal do indivíduo. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Assim, a dimensão hermenêutica afeta especialmente o trabalho milenar do conceito filosófico. Como tradição de uma experiência pensante, deve ser compreendida como um único grande diálogo, no qual todo presente participa sem poder controlar [113] superiormente ou dominar criticamente. O ponto fraco da história dos problemas foi ler a história da filosofia somente como confirmação da própria visão do problema e não como um parceiro crítico que revela a limitação de nossas próprias ideias. Para isso há que submeter-se à reflexão hermenêutica. Ela nos ensina que a linguagem da filosofia sempre comporta algo de inadequado e que, na sua intenção, persegue sempre mais do que pode ser encontrado em seus enunciados e do que pode ser trazido à palavra. As palavras que servem de conceitos, cunhadas e transmitidas nela pela filosofia, não são marcas e sinais fixos que designam algo unívoco como acontece no sistema de símbolos da matemática, da lógica e em suas aplicações. As palavras brotam do movimento comunicativo da interpretação que o homem faz do mundo, e que se dá na linguagem. Movidas e transformadas por esta interpretação, as palavras se enriquecem, alcançam novos contextos que recobrem os antigos, resguardam-se num quase esquecimento para tornar à vida em ideias novas e questionadoras. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Em todo trabalho filosófico do conceito encontra-se, portanto, uma dimensão hermenêutica, hoje em dia caracterizada de modo um tanto impreciso, com o termo "história do conceito". Esse não representa um esforço secundário e nem significa que, em vez de falarmos das coisas, falemos dos meios de entendimento que usamos para isso, mas constitui o elemento crítico no uso de nossos próprios conceitos. Tanto o afã do leigo em exigir definições inequívocas, quanto o fascínio pela univocidade de uma epistemologia unilateral e semântica desconhecem não só o que seja linguagem, mas também o fato de que a linguagem do conceito não pode ser inventada, mudada ao bel-prazer, usada e abandonada. A linguagem do conceito brota, muito ao contrario, do elemento no qual nos movemos como seres pensantes. O que encontramos na forma artificial da terminologia são apenas as cascas endurecidas dessa corrente viva do pensamento e da fala. Também essa se introduz e sustenta pelo acontecimento comunicativo que realizamos ao falar e onde se constrói compreensão e entendimento. Esse parece-me ser o ponto de convergência entre o desenvolvimento da filosofía analítica na Inglaterra e a hermenêutica. Essa correspondência é, porém, limitada. Assim como, no século XIX, Dilthey   acusou o empirismo inglês de carência de formação histórica, o postulado crítico da hermenêutica que se baseia na reflexão histórica não consiste tanto em dominar a estrutura lógica dos modos de falar, como é [114] o caso por exemplo do ideal   da filosofia "analítica", mas em apropriar-se dos conteúdos mediados pela linguagem, com todo o sedimento da experiência histórica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

O problema hermenêutico adquiriu uma nova ênfase na esfera da lógica das ciências sociais. Certamente, dever-se-á reconhecer que a dimensão hermenêutica encontra-se à base de toda experiência de mundo, desempenhando por isso uma função também no trabalho das ciências naturais, como ficou demonstrado sobretudo por Thomas Kuhn. E isso vale ainda com mais decisão para as ciências sociais, pois, à medida que a sociedade possui sempre uma existência compreendida no âmbito da linguagem, o próprio campo de objetos das ciências sociais (e não apenas sua formação teórica) é presidido pela dimensão hermenêutica. Em certo sentido, a crítica hermenêutica ao objetivismo ingênuo das ciências do espírito tem sua contrapartida na crítica da ideologia, inspirada em Marx   (Habermas; cf. também a forte polêmica de Hans Albert contra essa corrente). Também a cura pelo diálogo representa um fenómeno hermenêutico eminente, cujas bases teóricas foram rediscutidas por J. Lacan   e P. Ricoeur  . O alcance da analogia   entre doenças mentais e doenças sociais parece-me profundamente questionável. A situação do cientista social frente à sociedade não é a mesma que a do psicanalista frente a seu paciente. Uma crítica da ideologia que pensa estar isenta de toda preocupação ideológica não é menos dogmática que uma ciência social "positivista" que se compreende como técnica social. Frente a essas tentativas de mediação, parece-me compreensível a oposição defendida por Derrida   entre a teoria da desconstrução e a hermenêutica. A experiência hermenêutica, no entanto, defende seu próprio direito contra uma tal teoria da desconstrução do "sentido". Apesar de Nietzsche  , buscar "sentido" na écriture nada tem a ver com metafísica. VERDADE E MÉTODO II PRELIMINARES 8.

Assim, por detrás do campo de investigação que analisa a constituição de linguagem de um texto como um todo e que destaca sua estrutura semântica surge uma outra direção de questionamento e investigação: a hermenêutica. A hermenêutica toma por fundamento o fato de que a linguagem nos remete tanto para além dela mesma como para além da expressividade que ela apresenta. Não se esgota no que diz, ou seja, no que nela vem à fala. A dimensão hermenêutica aqui entreaberta significa certamente uma limitação do caráter objetivador do que pensamos e comunicamos. A expressão de linguagem não é simplesmente imprecisa, algo que precisa ser melhorado, mas justamente o que, realizando suas possibilidades, permanece sempre e necessariamente aquém do que evoca e comunica. Isso porque o dizer implica sempre um sentido implícito que só exerce sua função de sentido permanecendo como pano de fundo. Trata-se de um sentido que quando expresso perde sua função. Para esclarecer isso, quero distinguir duas formas em que o dizer movimenta-se para trás de si mesmo: o que no dizer permanece não-dito, tornando-se, porém, presente como não-dito no dizer, e além disso o que no dizer se encobre. VERDADE E MÉTODO II COMPLEMENTOS 13.

O problema é realmente universal. Como eu a caracterizei, a questão hermenêutica não se restringe aos âmbitos de investigação que serviram de ponto de partida. Importava para mim assentar uma base teórica que pudesse sustentar também o fato fundamental de nossa cultura atual, a ciência e sua utilização técnica industrial. Um exemplo útil para vermos como a dimensão hermenêutica abrange a totalidade dos procedimentos da ciência é a estatística. Como um exemplo extremo, a estatística ensina que a ciência encontra-se constantemente sob determinadas condições metodológicas abstratas e que os resultados positivos das ciências modernas consistem em bloquear outras possibilidades interrogativas pela abstração. Na estatística isso se mostra de maneira muito clara, porque, ao conceber previamente as perguntas a serem respondidas, lança mão de objetivos propagandísticos. O que se destina a ter um efeito propagandístico deve influenciar sempre e de antemão o julgamento dos que são consultados, buscando restringir sua capacidade de julgamento. O que se verifica, então, parece ser a linguagem dos fatos. Mas a questão hermenêutica busca saber quais são as perguntas a que respondem esses fatos e quais são os fatos que começariam a mostrar-se se fossem feitas outras perguntas. A hermenêutica deveria legitimar primeiro a significação desses fatos e com isso as consequências que se derivam da persistência dos mesmos. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

E assim que se deve compreender a pretensão de universalidade própria da dimensão hermenêutica. Compreensão sempre vem ligada com linguagem. Isso não implica de modo algum um certo relativismo da linguagem. É bem verdade que vivemos numa linguagem. A linguagem não é um sistema de signos que agenciamos com o auxílio de um teclado, ao entrarmos no escritório ou na estação emissora. Isso não é linguagem, pois não possuiu infinitude do fazer que cria linguagem e experimenta mundo. Mas, embora vivamos inteiramente imersos numa língua, isso não representa nenhum relativismo, porque não existe esse exílio numa língua, nem sequer na própria língua materna. Todos experimentamos isso quando aprendemos uma língua estrangeira, e sobretudo quando viajamos, supondo que sabemos algo da língua estrangeira. Significa que quando falamos essa língua estrangeira não nos movemos como se estivéssemos constantemente consultando internamente nosso mundo e nosso vocabulário. Quanto mais dominamos a língua, tanto menos se dá esse olhar paralelo dirigido à própria língua. E, uma vez que jamais conseguimos dominar totalmente uma língua estrangeira, sempre experimentaremos algo desse olhar paralelo. Mesmo assim, trata-se já de é uma linguagem, rnesmo que balbuciante, que como todo autêntico balbucio representa o estancar de uma vontade de dizer, estando aberta assim para uma possibilidade de expressão infinita. De princípio, toda língua, onde vivemos é infinita e querer afirmar que a razão estaria cindida porque existe uma infinidade de línguas é uma conclusão totalmente equivocada. O contrário é o verdadeiro. É exatamente no caminho que passa pela finitude, pela particularidade de nosso ser, visível também na diversidade das línguas, que se abre o diálogo infinito em direção à verdade que somos todos nós. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 17.

O fato de a hermenêutica filosófica ter como tarefa abrir a dimensão hermenêutica em toda sua amplitude e alcance e de aplicar seu significado fundamental a todo o conjunto de nossa compreensão de mundo, em todas as suas formas, desde a comunicação entre os seres humanos até a manipulação social, desde a experiência do indivíduo na sociedade até a experiência que ele faz nessa sociedade, desde a tradição construída pela religião e o direito, a arte e a filosofia até a energia da reflexão emancipatória da consciência revolucionária, não é o bastante para excluir a limitação das experiências e dos campos de experiência que o pesquisador individual toma como ponto de partida. Meu próprio trabalho não passa de uma contribuição a mais, acrescentada à filosófica da herança do romantismo alemão, levada a efeito por Dilthey. Este adotou o tema da teoria das ciências do espírito, munindo-as de uma base nova e mais ampla: na contraposição entre a experiência da arte e a alienação histórica das ciências do espírito, aquela pretende sair-se vitoriosa em virtude da simultaneidade que lhe é própria. Com isso visava-se a uma verdade que, pelo questionamento, ultrapassa toda ciência e que por outro lado antecipa-a. Isso deveria mostrar-se na estrutura essencial da linguagem característica de toda experiência humana de mundo, cujo modo de realização é o da simultaneidade em constante renovação. Nesse sentido, era inevitável que os fenômenos iniciais, mesmo na análise da estrutura da linguagem universal do comportamento humano no mundo, se colocassem em primeiro plano. Isso correspondia ao surgimento histórico-científico do problema hermenêutico que ganhou alento na tradição escrita, na tradição que se havia tornado estranha pela fixação, pela duração e pela distância no tempo. Assim tornara-se óbvio apresentar o complexo problema da tradução como modelo de linguagem do comportamento humano no mundo e desenvolver nas estruturas da tradução a problemática comum do modo de apropriar-se do estranho. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Não podemos negar que essa concepção da teoria sociológica tem certa coerência. Contudo, parece duvidoso que a contribuição [242] da hermenêutica seja aproveitada corretamente se for estabelecida a partir do conceito-limite de uma coincidência de todas as motivações da ação com um sentido compreendido. O problema hermenêutico possui um alcance tão universal e fundamental para toda experiência inter-humana da história e da atualidade, porque se pode experimentar um sentido também onde este não se dá intencionalmente. Diminui-se a universalidade da dimensão hermenêutica quando um âmbito do sentido compreensível ("transmissão cultural") é destacado frente a outros determinantes da realidade sociológica, perceptíveis simplesmente como fatores reais. Como se toda ideologia, enquanto uma falsa consciência baseada na linguagem, não só se apresentasse como um sentido compreensível, mas pudesse ser compreendida também em seu sentido "verdadeiro", por exemplo naquele do interesse   de dominar. O mesmo vale também para os motivos inconscientes que o psicanalista faz vir à consciência. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

O ponto de partida do desenvolvimento da dimensão hermenêutica tomado por Verdade e método I na experiência da arte e nas ciências do espírito parece dificultar aqui a avaliação de seu verdadeiro alcance. De certo, também o chamado aspecto universal, desenvolvido na III parte do livro, é por demais esquemático e unilateral. Mas do ponto de vista da colocação do problema hermenêutico, parece-me objetivamente absurdo que os reais fatores de trabalho e domínio devam permanecer fora de suas fronteiras. O que seriam então os preconceitos de que deve se ocupar a reflexão do esforço hermenêutico? De onde procedem? Da transmissão cultural? Também dela, certamente. Mas donde forma-se essa? O idealismo da linguagem seria na verdade um absurdo grotesco se não se limitasse a uma função meramente metodológica. Habermas afirmou certa vez: "A hermenêutica choca-se a partir de dentro com os muros dos nexos da tradição" (177). Essa afirmação não deixa de conter alguma verdade, se essa ideia se refere ao contraste que estabelece com um "a partir de fora", que não entra em nosso mundo compreensível ou incompreensível, e que deve ser compreendido, mas que fica preso na observação que constata modificações (em vez de ações). Creio que seja um erro, no entanto, querer absolutizar a tradição cultural. Há que se buscar compreender tudo que pode ser compreendido. Nesse sentido, vale o princípio de que "o ser que pode ser compreendido é a linguagem". VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

A crítica de Habermas culmina no questionamento do imanentismo transcendental  -filosófico dos condicionamentos históricos, condicionamentos de que ele próprio lança mão. É de fato um problema central. Quem leva a sério a finitude da existência humana e não constrói "nenhuma consciência" geral, um intellectus   archetypus ou um ego   transcendental que esteja obrigado a estabelecer todo o âmbito do que é válido, não pode deixar de se perguntar como seu próprio pensamento, enquanto transcendental, pode ainda ser empírico. Mas não vejo ali nenhuma dificuldade real para a dimensão hermenêutica que desenvolvi. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Nas áreas iniciais de meus estudos hermenêuticos, as ciências da arte e as ciências da história da filologia, é fácil demonstrar como a reflexão hermenêutica torna-se efetiva. Basta lembrar o abalo que a reflexão hermenêutica sobre o conceito de arte — ou sobre o conceito das épocas singulares ou de estilo — impingiu à autonomia que gozava a história dos estilos na consideração das ciências da arte; como a iconografia passou de uma posição marginal para uma posição de destaque, como a reflexão hermenêutica sobre os conceitos de vivência e expressão teve consequências na ciência da literatura — mesmo que apenas no sentido de dar um impulso mais consciente às tendências de investigação presentes de há muito (A ação recíproca também é ação). É óbvio e [248] natural que o abalo de preconceitos bem estabelecidos prometa progresso científico. Possibilita novas perguntas, e nós experimentamos constantemente o que pode alcançar a investigação histórica através da consciência da história dos conceitos. Nessas áreas, creio ter demonstrado como se intermedeia o estranhamento histórico pela figura da "fusão de horizontes". Devo ao lúcido trabalho de Habermas ter-me feito ver a contribuição hermenêutica no campo das ciências sociais, sobretudo pela confrontação da compreensão prévia da teoria positivista da ciência, mas também a de uma fenomenologia apriorística e de uma linguística geral, com a dimensão hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 18.

Por outro lado, quando Habermas fala de "hermenêutica profunda", devo acrescentar minhas próprias teses quando vejo que a redução da hermenêutica à "tradição cultural" e o ideal da transparência de sentido, que se faz valer nesse âmbito, são diluídos pela ideologia. O meu ponto mais característico é que a compreensão de sentido não pode ser reduzida à mens   auctoris nem à mens   actoris. Em todo caso, isso não significa que a compreensão culmine no esclarecimento de motivos inconscientes. A compreensão deve, antes, extrair suas linhas de sentido sempre ultrapassando o horizonte limitado do indivíduo, para que a tradição histórica se torne eloquente. Como acentuou corretamente Apel, a dimensão hermenêutica de sentido está referida ao diálogo infinito de uma comunidade ideal de interpretação. Em Verdade e métodou procurei demonstrar que a teoria do re-enactement de Collingwood é [273] irrealizável, e correspondentemente sou obrigado a considerar as interpretações de obras literárias de autores ou a interpretação da ação histórica de autores a partir da psicologia profunda como uma confusão de jogos de linguagem que beira ao ridículo. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 19.

Há uma pergunta que me inquieta desde vários decênios: O que pode significar hoje a opção a favor dos anciens? Essa opção está comprometida em todo caso com a hipoteca de que seu defensor não vê e pensa simplesmente com os olhos dos anciens, mas que como historiador atual vê essa visão e pensa esse pensamento. Assim o próprio Jaeger vê-se imerso numa problemática hermenêutica que o diferencia dos anciens pelo menos pelo fato de repudiar com feroz sarcasmo a hermenêutica contemporânea. Não se pode negar seriamente que uma investigação, como a que ele apresenta, [300] lança mão dos pressupostos da era pós-romântica, quer dizer, da consciência histórica. Isso significa que ele, como qualquer outro, pertence aos "modernos". Isso não significa de modo nenhum que com esse reconhecimento se projetem no passado as teorias específicas da "hermenêutica recente". Tampouco cabe negar aqui que a distância histórica que separa o cristianismo do tempo de Agostinho da cultura nômade da era dos patriarcas tenha constituído um verdadeiro problema hermenêutico para o próprio Agostinho. A assimilação religiosa dos escritos veterotestamentários pelo cristianismo não esteve livre de problemas. Nesse sentido, o De doctrina Christiana possui uma dimensão hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 21.

Há que se perguntar se isso não é válido pelo menos para um âmbito concreto das chamadas ciências do espírito, sem prejuízo da pergunta sobre se, em todo afã de saber, inclusive o que anima   a ciência natural moderna, não está presente uma dimensão hermenêutica. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 22.

De minha parte, procurei não esquecer o limite implícito em toda experiência hermenêutica do sentido. Ao escrever que "o ser que pode ser compreendido é linguagem", essa frase dava a entender que o que é nunca pode ser inteiramente compreendido. Isso porque o que serve de orientação a uma linguagem sempre ultrapassa aquilo que nela se enuncia. O que vem à linguagem permanece como aquilo que deve ser compreendido, mas sem dúvida é sempre tomado e percebido como algo. Essa é a dimensão hermenêutica na qual o ser "se mostra". A "hermenêutica da facticidade" [335] significa uma transformação do sentido da hermenêutica. Na tentativa que empreendi buscando descrever os problemas, deixei-me guiar pela experiência de sentido que podemos fazer com a linguagem para demonstrar o limite que lhe é imposto. O "ser para o texto", que me serviu de orientação, não pode competir em radicalidade de experiência de limite com o "ser para a morte", e a pergunta inesgotável pelo sentido da obra de arte ou pelo sentido da história que nos acontece, tampouco significa um fenômeno tão originário como a questão da finitude imposta à pre-sença humana. Nesse sentido, posso compreender por que o Heidegger tardio (e sobre isso talvez Derrida estivesse de acordo com ele) disse que eu não havia abandonado realmente a esfera da imanência fenomenológica presente em Husserl   e em minha primeira formação neokantiana. Também consigo compreender que alguém creia ver esta "imanência" metodológica na insistência no círculo hermenêutico. De fato, querer romper este círculo parece-me uma exigência irrealizável, e até verdadeiramente contraditória. Como ocorre em Schleiermacher   e em seu sucessor Dilthey, essa imanência nada mais é que a descrição do que é a compreensão. Desde Herder, entendemos por "compreender" algo mais que um procedimento metodológico para descobrir um sentido determinado. Ante a amplitude da compreensão, a circularidade que medeia entre o sujeito que compreende e aquilo que ele compreende deve reclamar para si uma verdadeira universalidade, e justamente aqui está o ponto no qual eu creio haver seguido a crítica de Heidegger ao conceito fenomenológico de imanência implícito na última fundamentação transcendental de Husserl. O caráter dialogai da linguagem, que eu busquei elaborar, ultrapassa o ponto de partida da subjetividade do sujeito, inclusive o do falante em sua referência ao sentido. O que se manifesta na linguagem não é a mera fixação de um sentido pretendido, mas um intento em constante mudança ou, mais precisamente, uma tentativa reiterada de deixar-se tomar por algo e com alguém. Mas isto significa expor-se. A linguagem está longe de ser uma mera explicitação e credenciamento de nossos preconceitos. Ela os coloca, antes, em jogo, os expõe à própria dúvida e à contraposição do outro. Quem já não fez a experiência — sobretudo frente ao outro, a quem queremos convencer — da facilidade com que alguém expressa suas razões, sobretudo as razões contrárias ao outro? A mera presença do outro, mesmo que ele nada diga, ajuda a revelar e desfazer a própria clausura e estreitamento. A [336] experiência dialogai produzida aqui não se limita à esfera das razões de uma e outra parte, cujo intercâmbio e coincidência podem definir o sentido de todo debate. Há algo mais, como mostram as experiências descritas; um potencial de alteridade, por assim dizer, que está além de todo consenso comum. Esse é o limite que Hegel não ultrapassou. É verdade que ele se deu conta do princípio especulativo que rege o logos  , demonstrando-o até com certa figura de dramaticidade. Hegel desenvolveu a estrutura da autoconsciência e do "conhecimento de si mesmo na alteridade" como a dialética do reconhecimento, elevando essa dialética ao extremo da luta pela sobrevivência. Também Nietzsche, com sua aguda visão psicológica, revelou o substrato de "vontade de poder" presente até na submissão e no sacrifício: "também no escravo há vontade de poder". Mas o fato de esta tensão entre a auto-renúncia e a auto-relação invadir a esfera das razões de uma e outra parte, a esfera portanto do debate temático, e de certo modo instalar-se nela, constitui o ponto onde Heidegger permanece para mim decisivo, justamente porque detecta aí o "logocentrismo" da ontologia grega. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 24.

Quando Heidegger elevou o tema da compreensão de uma metodologia das ciências do espírito à condição de um existencial e fundamento de uma ontologia da "pre-sença", a dimensão hermenêutica já não representou um estrato superior na investigação da intencionalidade fenomenológica, baseada na percepção física, mas fez aflorar sobre uma base europeia e dentro da orientação da fenomenologia o que na lógica anglo-saxônica aparecia quase simultaneamente como a linguistic turn. No desenvolvimento originário da investigação fenomenológica levada a efeito por Husserl e Scheler  , a linguagem permaneceu na penumbra, apesar da guinada que se deu rumo à Lebenswelt   ("mundo da vida"). VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.

Tampouco a fundamentação do conceito de consciência em uma rigorosa fenomenologia da temporalidade, como a que persegue Husserl no esforço de toda sua vida, transcende esse conceito grego de presença. Daí, o problema da linguagem não alcançar no pensamento da tradição o lugar central que hoje lhe outorgamos. Nem Hegel nem Husserl abordaram expressamente esse problema, e mesmo as fundamentações modernas do conhecimento com os recursos da semântica e de uma semiótica universal não conferem o lugar central que deve ser atribuído ao acontecimento da linguagem como tal. O debate hermenêutico moderno colocou o fenômeno do diálogo no centro das discussões, porque a linguagem só se dá, se forma, se amplia e atua no diálogo. Em todo caso, o fenômeno da compreensão sustenta-se no caráter de linguagem desse processo, sem implicar por isso a unilateralidade da teoria psicológica da interpretação de Schleiermacher. A dimensão hermenêutica permanece caracterizada, antes, justamente pelo caráter escrito de todo fenômeno de linguagem. Se há um modelo que pode ilustrar realmente as tensões presentes na compreensão, esse é o modelo da tradução. Na tradução apropria-se o estranho enquanto tal, o que não significa deixá-lo estar como estranho nem incorporá-lo na própria língua pela mera reprodução de seu caráter estranho. Nela fundem-se, antes, os horizontes do passado e do presente num constante movimento, como o que constitui a essência da compreensão. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 28.

Esse retorno à tradição da filosofia prática pode ajudar-nos na proteção frente à obviedade e naturalidade técnica do conceito moderno de ciência. Mas isso não esgota a minha intenção filosófica. [456] No diálogo hermenêutico em que nos encontramos, sinto que essa intenção filosófica não foi suficientemente levada em consideração. O conceito de jogo, que já há décadas eu deslocara da esfera subjetiva do "instinto de jogo" (Schiller  ), utilizando-o na crítica da "distinção estética", implica um problema ontológico. Isso porque nesse conceito conjugam-se tanto o jogo recíproco de acontecer e compreender quanto os jogos de linguagem de nossa experiência de mundo em geral, tal como foram tematizados por Wittgenstein na intenção de criticar a metafísica. Mas o questionamento que eu faço só poderá apresentar-se como uma "ontologização" da linguagem aos olhos de quem deixar de questionar os pressupostos da instrumentalização da linguagem em geral. O que a experiência hermenêutica nos propõe é, na verdade, um problema filosófico, a saber, descobrir as implicações ontológicas inerentes ao conceito "técnico" de ciência e fomentar o reconhecimento teórico da experiência hermenêutica. Nesse sentido, o diálogo filosófico deve vir primeiro, não para renovar um platonismo, mas para renovar um diálogo com Platão  , cujo questionamento ultrapasse os conceitos fixos da metafísica e sua inadvertida sobrevivência. Como reconhece muito bem Wiehl, as Fussnoten zu Plato (notas de pé de página a Platão) de Whitehead poderiam ser importantes para essa tarefa (cf. sua introdução à edição alemã do Adventures ofldeas, de Whitehead). Em todo caso, era minha intenção conjugar a dimensão da hermenêutica filosófica com a dialética platônica, e não com a hegeliana. O III volume de meus Kleine Schriften mostra, já no título, qual o tema do livro: Idee   und Sprache   (Ideia e linguagem). Toda honra seja dada à investigação moderna da linguagem. No entanto, a auto-evidência técnica da ciência moderna está privando-a da dimensão hermenêutica e da tarefa filosófica nela implicada. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.

O problema fica bem caracterizado no conceito kierkegaardiano da "simultaneidade". Seu significado não é exatamente a onipresença, no sentido de uma atualização histórica, mas coloca uma tarefa que posteriormente eu mesmo chamei de tarefa da aplicação. Frente à objeção de Bormann, gostaria de argumentar que a diferenciação que propus entre simultaneidade e concomitância estética segue a mesma linha de Kierkegaard  , embora formulada com uma aplicação de conceitos distinta. É possível que Bormann se refira à seguinte nota do diário: "A situação da simultaneidade é levada a bom termo". Nesse caso, eu digo a mesma coisa com a expressão "totalmente mediado", e isso significa, até a imediata coexistência (Zugleichsein). Para quem tem presente o uso de linguagem de Kierkegaard em sua polêmica contra a "mediação", isso soa como uma clara recaída em Hegel. Deparamo-nos aqui com dificuldades típicas que a hermeticidade da sistemática hegeliana provoca a toda tentativa de manter distância de sua coerção conceitual. Elas atingem tanto Kierkegaard quanto minha própria tentativa de ganhar distância frente a Hegel, à mão de um conceito kierkegaardiano [472]. Assim, comecei a estudar Hegel a fim de aguçar a dimensão hermenêutica da mediação, tanto de antanho quanto do hoje, frente à ingênua falta de conceitos da concepção histórica. Foi nesse sentido que confrontei Hegel com Schleiermacher. Mas, na verdade, na concepção da historicidade do espírito, dou um passo a mais que Hegel. O conceito de Hegel sobre "religião da arte" designa exatamente aquilo que move a minha dúvida hermenêutica sobre a consciência estética: A arte tem sua possibilidade suprema não como arte, mas como religião, como presença do divino. Mas quando Hegel declara que toda arte é algo já passado, essa arte acaba sendo absorvida também pela consciência que recorda historicamente, e como passada ganha sincronicidade estética. Foi a visão desse contexto que me impôs a tarefa hermenêutica de afastar a verdadeira experiência da arte — que não experimenta a arte como arte — da consciência estética, lançando mão do conceito da não diferenciação estética. Creio tratar-se aqui de um problema legítimo, que não procede da devoção à história, mas que nossa experiência da arte não pode perder de vista. Trata-se de uma alternativa falsa querer considerar "arte" como originariamente contemporânea, como a-histórica ou como vivência da formação histórica. Hegel tem razão. Por isso, continuo sem poder concordar com a crítica de Oskar Becker, assim como com qualquer objetivismo histórico, que dentro de certos limites poderia ser válido: a tarefa da integração hermenêutica continua de pé. Pode-se dizer que isso corresponde mais ao estágio ético de Kierkegaard do que ao religioso. E nisso Bormann poderia ter razão. Mas o estágio ético não contém um certo predomínio conceitual também no próprio Kierkegaard? E é assim que alcança transcendência religiosa, mas apenas na medida em que "chama a atenção", e não de outro modo. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 29.