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Gadamer (VM): aletheia

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

Mas também o limite da teoria da semelhança é claro: não se pode criticar a linguagem por referência às coisas, no sentido de que as palavras não as reproduziram corretamente. A linguagem não está aí como um simples instrumento de que lançamos mão, ou que construímos para nós, com o fim de comunicar e fazer distinções com ele. Ambas as interpretações das palavras partem de sua existência e de sua manualidade e deixam estar as coisas como o que é conhecido de antemão. Justamente por isso, elas já de antemão começam demasiado tarde. Teríamos de nos perguntar se Platão, ao mostrar a insustentabilidade interna dessas duas posições extremas, procura na realidade questionar um pressuposto que lhes seja comum. [411] Na minha opinião  , a intenção de Platão é muito clara, e creio que nunca se poderá acentuar isto suficientemente, face à interminável usurpação de Crátilo a favor dos problemas sistemáticos da filosofia da linguagem: com essa discussão das teorias linguísticas contemporâneas, Platão pretende mostrar que na linguagem, na pretensão da correctura linguística (orthotes   ton onomaton), não se pode alcançar nenhuma verdade pautada na coisa (aletheia   ton onton), e o ente tem de ser conhecido sem as palavras (aneu ton onomaton), puramente a partir dele mesmo (auto ex eauton) (Crátilo, 438a-439b). Com isso se desloca radicalmente o problema para um novo nível. A dialética, a que aponta esse contexto, pretende evidentemente confiar o pensamento a si mesmo e a seus verdadeiros objetos (Gegenstände), abrindoas "ideias", de maneira tal que, com isso, se supere o poder das palavras (dynamis   ton onomaton) e sua tecnificação demoníaca na arte da argumentação sofística. A superação do âmbito das palavras (onomata), pela dialética não quer dizer, obviamente, que exista realmente um conhecimento isento de palavras, mas, unicamente, que o que abre o acesso à verdade não é a palavra, mas pelo contrário: que a "adequação" da palavra só se poderia julgar a partir do conhecimento das coisas. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 2.

Essa resposta é de natureza teológica. A metafísica grega, que pensa o ser do ente, pensa esse ser como um ente que se cumpre ou realiza a si mesmo no pensar. Esse pensar é o pensamento do nous, que se pensa como o ente supremo e mais autêntico, o que reúne em si o ser de tudo o que é. A articulação do logos   traz à fala a estrutura do ente, e esse seu trazer [461] à fala não é para o pensamento grego outra coisa que a presença do próprio ente, sua aletheia. Por referência à infinitude desse presente, o pensamento humano se pensa a si mesmo como que por referência à sua possibilidade plena, à sua divindade. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Por mais estreita que seja a relação entre a ideia do belo e a ideia do bom em Platão, este não deixa de ter presente uma diferença entre ambos, diferença que contém um característico predomínio do belo. Já vimos que o caráter inacessível do bom no belo, isto é, no caráter de medida do ente e na abertura que lhe é própria (aletheia), encontra uma correspondência na medida em que ainda lhe convém uma última exaltação. Mas Platão pode afirmar paralelamente que na tentativa de apreender o bom em si mesmo, este se refugia no belo. Assim, o belo se distingue do bem, que é o completamente inapreensível, porque se apreende mais facilmente. Ele tem por essência a característica de aparecer. Na busca do bem, o que se mostra é o belo. Este representa de imediato uma caracterização daquele para a alma humana. O que se mostra na sua forma mais [485] completa atrai para si o desejo amoroso. O belo atrai imediatamente, enquanto que as imagens diretrizes da virtude humana só podem ser reconhecidas obscuramente, no meio confuso dos fenômenos, porque elas não possuem luz própria e isto faz que sucumbamos, muitas vezes, às imitações impuras e às formas somente aparentes da virtude. Isso não ocorre com o belo. O belo tem sua própria luminosidade, e isso faz que sejamos desviados por cópias desfiguradas. Pois "somente à beleza foi dado ser o mais reluzente (ekphanestaton) e amável". VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

A "reluzir" não é, portanto, somente uma das propriedades do que é belo, mas perfaz a sua verdadeira essência. A característica do belo, de atrair imediatamente o desejo da alma humana, está fundamentada em seu próprio modo de ser. É o caráter de medida do ente, que não o deixa ser somente o que é, mas que o faz aparecer também como um todo medido em si mesmo e harmonioso. Esta é a abertura (aletheia), de que Platão fala no Filebo e que faz parte da essência do belo. A beleza não é somente simetria, mas é a própria aparência que repousa sobre ela. Ela tem o modo do "aparecer". Mas aparecer significa aparecer em algo, e, assim, alcançar o aparecimento, por si mesmo, naquilo que recebe sua aparência. A beleza tem o modo de ser da luz. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Procuramos separar novamente essa frase de sua conexão metafísica com a teoria da forma, apoiando-nos outra vez em Platão. Ele foi o primeiro que mostrou como momento essencial doijelo a aletheia, e é muito claro o que queria dizer com isso: o belo, o modo como aparece o bom, manifesta-se a si mesmo no seu ser, representa-se. O que se representa assim não se torna distinto de si mesmo, na medida em que se representou. Não é uma coisa para si, e outra distinta para os demais. Nem sequer se encontra noutra coisa. Não é o resplendor despejado sobre uma forma, e que chega a ela a partir de fora. Ao contrário, a constituição ontológica, própria dessa forma, é brilhar assim, é representar-se assim. Disso resulta que, em relação com o ser belo, o belo tem de ser compreendido ontologicamente sempre como "imagem". E não há nenhuma diferença entre o fato de que apareça "ele mesmo" ou sua imagem. Já havíamos visto que a característica metafísica do belo era justamente a ruptura do hiato entre ideia e aparência. Com toda segurança, é "ideia", ou seja, pertence a uma ordenação de ser que se destaca sobre a corrente dos fenômenos como algo consistente em si mesmo. Mas igualmente certo é que aparece por si mesmo. Como vimos, isso não significa, de modo algum, uma instância contra a doutrina das ideias, mas uma exemplificação concentrada de sua problemática. Aí onde Platão invoca a evidência do belo, não necessita reter a oposição entre "ele mesmo" e imagem. É o belo o que simultaneamente põe e supera essa oposição. VERDADE E MÉTODO TERCEIRA PARTE 3.

Logo que Heidegger se deu conta disso, assumiu os riscos do pensamento radical de Nietzsche  . Não encontrou outros caminhos a não ser os Holzwege   (Sendas perdidas), que depois da curva do caminho esbarravam no intransitável. Mas terá só a linguagem da metafísica o que sustentou esse feitiço paralisante do idealismo transcendental  ? Heidegger extraiu as últimas consequências de sua crítica ao vazio ontológico da consciência e à autoconsciência abandonando a ideia da fundamentação metafísica. Essa virada e esse abandono, não obstante, continuaram sendo uma luta permanente com a metafísica. Para preparar sua superação era preciso não só pôr em evidência o subjetivismo moderno destruindo seus conceitos indemonstrados, mas resgatar à luz do conceito, como elemento positivo, a experiência primordial grega do ser, por trás do auge   e do domínio da metafísica ocidental. O retorno de Heidegger à experiência do ser nos inícios pré-socráticos, partindo do conceito aristotélico de physis  , foi na realidade um extravio aventureiro. De certo, Heidegger sempre teve presente o objetivo último, embora ainda muito vago: repensar o início, o inicial. Aproximar-se do início significa sempre dar-se conta de outras possibilidades abertas no percurso de retorno do caminho percorrido. Aquele que se situa no começo deve escolher o caminho, e aquele que retorna ao começo percebe que desde o ponto de partida poderia ter escolhido outros caminhos — assim como o pensamento oriental percorreu outros caminhos. Quem sabe se esse último ocorreu à margem da livre escolha, como é o caso da opção ocidental. Deve-se, antes, às circunstâncias que fizeram com que a ausência de uma construção gramatical de sujeito e objeto não levasse o pensamento oriental a desembocar numa metafísica de substância e acidente. Por isso, não surpreende que, em seu regresso ao começo, o próprio Heidegger tenha experimentado certo fascínio pelo pensamento oriental, buscando em vão nele aprofundar-se com a ajuda de visitantes japoneses e chineses. Não é fácil sondar as línguas, sobretudo a base comum de todas as línguas do próprio círculo cultural. Na verdade, mesmo na história das próprias origens é impossível encontrar realmente o começo. O começo retrocede sempre ao incerto, como ocorre ao viajante costeiro na célebre descrição da regressão no tempo, feita por Thomas Mann   no início de sua A montanha mágica: por detrás do último relevo aparece sempre outro novo, num processo interminável. Correspondentemente, Heidegger acreditou encontrar a experiência inicial do ser em Anaximandro  , em Heráclito  , em Parmênides   e por fim de novo em Heráclito, sucessivamente, testemunhos da [364] mútua pertença entre desvelamento (Entborgenheit  ) e velamento (Verbergung  ). Em Anaximandro acredita encontrar a presença mesma e a permanência de seu ser, em Parmênides o coração sem palpitações da aletheia, em Heráclito a physis que ama esconder-se. Mas tudo isso acaba sendo válido como indicação das palavras que assinalam para o intemporal, mas não para o discurso, quer dizer, para a auto-exposição do pensamento que encontramos nos textos primitivos. Heidegger pôde reconhecer sua própria visão do ser sempre apenas no nome, na força nominativa das palavras e em seus labirintos intransitáveis como artérias de ouro: esse "ser" não deveria ser o ser do ente. Os próprios textos mostraram sempre de novo não serem o último relevo no caminho que abria a visão para a clareira do ser. VERDADE E MÉTODO II OUTROS 25.