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Barbuy: A Nação e o Romantismo

“Revista Brasileira de Filosofia”, vol. XII, fasc. 1, 1962.

sexta-feira 8 de outubro de 2021

BARBUY  , Heraldo. O Problema do ser e outros ensaios. São Paulo: Convívio, 1984, p. 259-291

6. O nacionalismo linguístico de Fichte traduz um sentimento comum aos românticos. Reflete-se, por exemplo, em Arndt, contemporâneo de Fichte, e considerado um dos maiores poetas do sentimento nacional; em Görres, romântico católico; em Wilhelm von Humboldt, filólogo e historiador, que, como já dissemos, considerava a linguagem como a forma externa do espírito dos povos e afirmava que nunca se poderá exprimir com bastante força a identidade da língua e do espírito do povo. A língua corresponde externamente ao que o romântico inglês Shaftesbury denominava a “forma interna” da cultura. A teoria linguística de Fichte amplia singularmente o princípio da originalidade do Volk, cujas raízes estão imersas na floresta primeva. Liga intimamente a identidade nacional com certos caracteres somatológicos do povo: Dentre estes, o mais importante para Fichte era a língua; para outros românticos será, além da língua, a música, que é a língua falada em outra dimensão. [3]

Assim sendo, não há nada menos internacional do que a língua e a música. As obras de arte plástica, a literatura e a música, são obras de indivíduos dotados para assumir a capacidade de exprimir a cultura de que são portadores. Schubert e Beethoven, Brahms e Wagner são compositores universais, mas são compositores especificamente alemães. Sem Wagner não poderia haver a música wagneriana; mas sem a cultura que se corporifica em Wagner, sem os motivos arquetípicos que assumem em Wagner a consciência da sua expressão, essa música não poderia ter existido.

Na perspectiva romântica, só não tem fronteiras a arte que se transformou em técnica e virtuosismo, tendo perdido a alma que a técnica deveria exprimir. A arte nasce de territórios culturais definidos, manifesta conjuntos de sentidos — e de sentidos de sentidos — que não têm validade fora da cultura a que pertencem. O valor universal da arte vem da sua vinculação profunda à própria cultura, nunca do seu internacionalismo. A arte é universal quando toca as raízes mais secretas da sua cultura, numa região onde todas as culturas se encontram, podendo falar assim a todas as sensibilidades. — As artes são manifestações de entes históricos, realizadas por indivíduos portadores da cultura histórica, assim como o são também todas as expressões culturais, tudo quanto cabe no mundo dos valores e das Ciências do Espírito.


[3O nacionalismo linguístico de Fichte, exposto nos Discursos à Nação Alemã, bem como a tese contida em seu ensaio Über die franzözische Revolution, foi dirigido contra a França. A França, fundada como Frankreich pelos Francos e parte do Império de Carlos Magno, era o exemplo da nação que se tinha extraviado de sua língua original. Era um povo em que as elites se separavam da plebe e cuja desunião intrínseca tinha promovido a Revolução de 1789. Mas, à parte essa aplicação ao caso francês, os românticos defenderam o nacionalismo de Fichte como transcendendo as demarcações territoriais e as circunscrições políticas. Há nações que não coincidem com Estados e Estados que não coincidem com nações, com é o caso dos Estados que compreendem várias nações e das nações que compreendem vários Estados. O rigoroso estatismo de Fichte não se dirige a um Estado qualquer, mas ao Estado que coincide com a Nação e que realmente a reflete. O nacionalismo linguístico de base fichteana se reavivou na última guerra, quando fundou a concepção de “mundo anglo-americano”, unido pela comunidade da língua. O simples título da obra de Churchill, História dos Povos de Língua Inglesa, mostra esse nacionalismo fichteano. Apesar de que, os ingleses reconhecem que a língua inglesa, mais do que qualquer outra língua “germânica”, está penetrada de elementos e estruturas estranhas.