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Barbuy: A Nação e o Romantismo

“Revista Brasileira de Filosofia”, vol. XII, fasc. 1, 1962.

sexta-feira 8 de outubro de 2021

BARBUY  , Heraldo. O Problema do ser e outros ensaios. São Paulo: Convívio, 1984, p. 259-291

4. Mas a veneração pelo Estado, manifestada de modo quase uniforme pelos nacionalistas românticos, requer uma compreensão especial. Os românticos lutavam ontem pela unificação da Alemanha, assim como outros homens lutam hoje pela reunificação. O Estado unitário poderia ter sido venerado como um ideal distante. Porém, unificada a Alemanha, e constituído o II Império, o culto do Estado não diminuiu, antes se aprofundou nos escritores alemães: Para compreender esta atitude, devemos conjugá-la com o fato de que o espírito da cultura alemã é estranho ao capitalismo, ao individualismo e ao coletivismo.

O culto do Estado nos românticos não vinha de que atribuíssem ao Estado poderes arbitrários e sim de que viam no Estado a imagem do Volk, que exprime da maneira mais completa os mesmos princípios que regem as vidas individuais isoladas. O culto do Estado foi próprio inclusive dos liberais românticos. Leopold von Ranke, Henrich von Treitschke e Wilhelm von Humboldt, vivamente preocupados com a liberdade individual e com o papel da personalidade na História, consignaram no entanto ao Estado os mais plenos poderes. Os economistas, poetas e filósofos românticos acreditaram no Estado. Mas na concepção romântica, os poderes não eram conferidos ao Estado enquanto fonte de opressão, e sim enquanto símbolo de Volk, e imagem da totalidade e da unidade. O Estado era então considerado como incarnando o mesmo princípio que dá realidade e sentido às liberdades individuais. O Estado tem então poder absoluto, não como antítese do indivíduo, e sim como expressão do mesmo princípio que forma o indivíduo. Nesta linha é que Treitschke respondeu ao ensaio de Stuart Mill, On Liberty, com outro ensaio Die Freiheit  , onde sublinha o papel do Estado nacional contra o cosmopolitismo. Treitschke, grande historiador e historicista, lutou pelo Estado nacional, não enquanto instituição jurídica, e sim enquanto comunidade moral  ; foi, neste sentido, um dos mais vigorosos nacionalistas que se conheçam. Para Treitschke, o poder do Estado nacional era a medida da liberdade.

É o cosmopolitismo, o internacionalismo, e não o Estado nacional o sinônimo da opressão e da miséria moral verdadeira. O Estado nacional, que protege e explicita os valores nacionais, que nasce desses valores na medida em que é realmente nacional, é sinônimo de liberdade, justamente porque o cosmopolitismo e toda tutela internacional representam a negação da liberdade. O cosmopolitismo é próprio só de povos desfibrabrados, que perderam a unidade de si mesmos, que não têm cultura própria, e que por isso mesmo não existem historicamente.

A noção romântica de Estado, em suma, só pode ser compreendida a partir da noção romântica de Volk. O Volk não pode nem deve ser considerado uma entidade coletiva, no sentido de uma coleção avulsa de indivíduos; o indivíduo é uma realidade concreta, cuja existência aliás os românticos sublinharam. Porém, não são os indivíduos que formam o Volk, e sim o Volk é que forma os indivíduos. E este Volk, que forma os indivíduos, não se parece absolutamente com aquele “grupo social” de que falavam os sociólogos positivistas e que era um objeto superior e exterior ao indivíduo; o Volk não tem nenhuma das características atribuídas pelos positivistas ao grupo social. Ao contrário, enquanto matriz a priori, enquanto categoria cultural e metafísica, é um princípio intrínseco, originário, interior e não exterior ao indivíduo.

Os positivistas imaginaram que certos elementos sociais “objetivos” — como a linguagem, a moeda, as leis, os costumes — constituem um todo, feito e pronto, que o indivíduo recebe de fora para dentro ao nascer; estes elementos são vistos pelos positivistas como superiores e exteriores ao indivíduo. Os românticos pensaram, ao contrário, que a moeda, as leis, os costumes, a linguagem são intrínsecos ao indivíduo que nasce numa cultura; não constituem um todo feito, mas um conjunto de símbolos, e o que tem importância não é a moeda — em si uma cousa morta — e sim a particular maneira de usar a moeda, de falar a língua, de cumprir os ritos legais. São elementos interiores e intrínsecos ao indivíduo, que os traz desde antes do nascimento, juntamente com a cultura ancestral de que é portador. Esta tese romântica foi depois justificada, de maneira sugestiva, pela teoria dos arquétipos do inconsciente ancestral de Carl Gustav Jung. Já no começo do século XIX, Adam Müller, cofundador da Escola Histórica, em suas meditações sobre a natureza do Estado, da lei, da comunidade e da economia, introduziu a categoria do capital espiritual, considerado como patrimônio hereditário e cultural, portanto interior e não exterior ao indivíduo. — Müller mostrou a identidade do indivíduo, da Nação e do Estado, ligados ao passado, ao presente, e ao futuro, na sua continuidade histórica e no caráter intrínseco das suas tradições.

Se a língua é um patrimônio hereditário, ela já está inserida na constituição psíquica e somática do seu portador, exprime a sua própria visão ancestral do mundo. O indivíduo que nasce num Volk é portador da Nação na sua interioridade; ele é a Nação corporificada agora e aqui; o Estado não lhe é estranho, — como nas teorias que opõem o indivíduo e o Estado —; o Estado é ele mesmo, enquanto objetivação do Volk. A Nação portanto não é objeto superior, nem exterior ao indivíduo; é uma categoria cultural imanente, que vive na sua intimidade vital; sua relação com a autêntica língua nacional não é a relação dum sujeito com um objeto; a língua nacional é ele mesmo, como forma do seu pensamento e da sua Gemüt  , revivendo na sua particular maneira de falar, no seu modo individual de ser; ele é a língua nacional enquanto essa língua é a tradução dos seus estados mais íntimos e das noções e conceitos que emanam da sua visão do mundo, uma visão do mundo que emana por sua vez da matriz originária da cultura nacional. — Se reconhecemos que a Nação é movimento e vida, devemos reconhecer que nada do que é individual está fora da órbita do Estado. Só a especulação estéril, — dizia Adam Müller — pode imaginar o indivíduo sem relações com o Estado. Mas as teorias arquitetadas sobre a hipótese do indivíduo abstrato, nunca passaram dum acervo de conceitos inúteis e mortos.