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Barbuy: A Nação e o Romantismo

“Revista Brasileira de Filosofia”, vol. XII, fasc. 1, 1962.

sexta-feira 8 de outubro de 2021

BARBUY  , Heraldo. O Problema do ser e outros ensaios. São Paulo: Convívio, 1984, p. 259-291

2. Por oposição a todo racionalismo e a toda Aufklärung, com suas tendências a ver o homem como ser abstrato, e com suas noções puramente jurídicas e políticas do Estado, os românticos erigiram a Nação num princípio metafísico, numa realidade profunda, na qual se incarna — e só nela — o processo do desenvolvimento histórico. Compreenderam que não existe uma História da Humanidade, porque a “Humanidade” em si não tem história, sendo por toda parte a mesma: o conceito de “Humanidade” é abstrato, estático e a-histórico. Inversamente, a ideia de desenvolvimento (Entwicklung), a ideia do dinâmico, do processo, do fluxo, do devir, é uma ideia romântica, congênita à ideia de Nação. A Nação se tornou a matriz original, a Urquelle, de um desenvolvimento peculiar e característico. Tornou-se uma realidade histórica que transcende o indivíduo, o qual só adquire sentido e valor quando inserido no corpo da sua Nação e quando portador da sua cultura autêntica. Os românticos identificaram a Nação com o Volk   — não com o “povo” no sentido liberal e contratualista do termo — e sim com o Volk, no sentido de uma totalidade anterior aos indivíduos. O Volk é o princípio que dá sentido e forma aos indivíduos nos quais se exprime. Não é uma associação voluntária, como a que Rousseau concebeu na base de um contrato hipotético; a hipótese do contrato social é uma dessas ideias burguesas que fazem do Estado uma sociedade por ações, na defesa dos interesses individuais. O Volk não é um concours de votantes, mas um princípio metafísico, que se corporifica numa série de caracteres nacionais, ou seja, numa etnia, num grupo coeso, numa unidade que desempenha seu papel histórico como totalidade dinâmica.

Na obra de Herder, Ideen zur Philosophie   der Geschichte   der Menschheit  , aparece pela primeira vez claramente esta ideia de Nação—Volk, que foi a base do nacionalismo romântico. Herder introduziu a ideia de Volk concebido como produto de um desenvolvimento histórico orgânico; orgânico quer dizer, como realidade anterior às partes de que se compõe, e que se desenvolve ao modo dum organismo, cujo crescimento é a explicação das possibilidades já contidas no germe originário, na Urquelle. Herder fundou a doutrina do espírito do povo, Volksgeist. Uma das aplicações de sua tese do germe original de que cada nação é portadora — e cujas múltiplas manifestações formam um todo orgânico — consistiu na sua repulsa à teoria racionalista da emigração das artes e das ciências e da fonte única e universal da cultura. Ao contrário, segundo Herder, as manifestações culturais de cada nação são o desenvolvimento do que essa nação já contém em si, de modo germinal, desde a sua origem. A história é o desenvolvimento das totalidades psíquicas originais. Em consequência, o método de Herder é genético e não estático. A faculdade que intui a História não é mais a razão abstrata dos cientistas e sim a compenetração simpática dos poetas; Herder lançou o termo Einfühlung   para designar essa faculdade. Com seu método genético fundou uma nova noção do sentido da História; não do sentido da História, como o entenderam Santo Agostinho   e Bossuet, como peregrinação da cidade terrestre em demanda da cidade de Deus, é sim do sentido da História como cumprimento da tábua dos valores característicos de cada totalidade cultural.

Herder recolhe de Santo Agostinho a ideia da grande harmonia universal do plano divino, na qual todas as nações poderão fundir-se; mas à ideia da História concebida linearmente, opõe a tese de que a História é processo e o processo histórico em si é o desdobramento de características culturais inconfundíveis. A Nação é um todo orgânico e pessoal e se assimila à imagem de uma planta; cada Nação tem portanto o seu destino pessoal, a sua própria noção de seus fins e de sua felicidade, animada como é pelo espírito nacional, pela alma nacional, que é a alma do Volk. Quando Herder, em sua qualidade de germanista profundo, identifica o teuto com o gótico, estabelece uma relação entre um Volk e uma expressão de sua alma, ambos coerentes com as emanações de uma só fonte, que é a Nação. Esta fonte é um selo invisível que se estampa em todas as produções originais do Volk. O Volk e o seu ambiente natural compõem uma simbiose vital; conjugam-se; mas o ambiente só age negativamente, não podendo alterar o germe das possibilidades do Volk.

Sem procurar outros antecedentes, a obra de Herder exerceu poderosa influência sobre o movimento romântico. De Herder deriva imediatamente a compreensão da História como processo de grandes unidades, como desenvolvimento de culturas determinadas. Este princípio foi aplicado ao campo de todas as exteriorizações espirituais, uma vez que são aspectos da mesma unidade original da cultura. Friedrich Schlegel, em suas profundas meditações sobre a história da literatura, aplicou este método evolutivo, concebendo, por exemplo, a cultura grega como inteiramente original e nacional, como conjunto perfeito que se exteriorizou a partir de sua evolução interna e cujas manifestações conservaram até o fim o caráter nacional. — A história da Grécia é o modelo de uma explicitação orgânica, interna, que revela em todos os seus aspectos o mesmo princípio unitário. Posteriormente, foi na mesma linha que se realizou a obra de Jacob Burckardt, com suas ideias sobre as épocas históricas e os estilos vitais homogêneos; suas obras sobre a Renascença e a Antiguidade, sua História da Cultura Grega, foram afinal orientadas pela visão romântica da História como expressão de totalidades psíquicas; Burckardt acreditava nas Imagens Primordiais que regem as culturas e as épocas históricas. A história não é cronologia, nem narrativa, nem enumeração de fatos monumentais; é o desdobramento de formas vitais definidas, cuja expressão mais forte é a cultura nacional.

A mesma orientação se afirma nas obras de filologia, propulsionadas pelo romantismo. Wilhelm von Humboldt   (irmão do viajante e naturalista), em seu estudo sobre a diversidade das estruturas linguísticas, observou a identidade de cada grupo humano com sua língua, formando todas as manifestações culturais uma totalidade: Endossou a teoria da uniformidade nacional, em que se resolvem as características individuais; as características pessoais e inconfundíveis, não só não separam o indivíduo de sua nação, como ainda o vinculam a ela, pois as mesmas características se distinguem de suas equivalentes em outras nações. Um povo não é uma soma anárquica de indivíduos, ligados por atos contratuais de vontade, ou por interesses políticos e econômicos, e sim uma totalidade anterior às partes que, segundo Humboldt, encerra em si e a priori   todas possibilidades do seu desenvolvimento.