Página inicial > Fenomenologia > Barbuy: A Nação e o Romantismo

Barbuy: A Nação e o Romantismo

“Revista Brasileira de Filosofia”, vol. XII, fasc. 1, 1962.

sexta-feira 8 de outubro de 2021

BARBUY  , Heraldo. O Problema do ser e outros ensaios. São Paulo: Convívio, 1984, p. 259-291

5. A Nação é uma totalidade fechada. Mas segundo os românticos, como Herder por exemplo, a preservação da cultura nacional não excluía o contacto com o estrangeiro. O essencial era que os elementos estranhos não fossem excessivos e pudessem ser totalmente assimilados, assim como em todas as línguas se assimilaram milhares de palavras exóticas. O essencial na doutrina romântica é que a cultura se compara a um organismo vivo, e que não possa — como qualquer organismo vivo — assimilar elementos estranhos. A teoria da cultura como organismo — ou como organização — é, já por si, anti-cosmopolita. Exclui toda hipótese de considerar a cultura como soma de resultados adquiridos acumulativamente e arbitrariamente. — A língua, por exemplo, não é uma soma de palavras; é um todo psíquico, um nexo, uma visão do mundo de que as palavras são os símbolos. A riqueza das línguas não está na quantidade do seu vocabulário (senão qualquer língua poderia enriquecer-se indefinidamente, agregando ao seu dicionário tantas palavras quantas quisesse). A riqueza das línguas está na sua estrutura interna, na sua plasticidade, na sua capacidade de síntese, no seu sistema nervoso. O que é preciso preservar da contaminação, segundo os românticos, é essa estrutura interna que se exprime no vocabulário autêntico.

A língua nacional, como expressão da cultura original, é um dos temas desenvolvidos por Fichte em seus Discursos à Nação Alemã. Fichte teve, sobre o romantismo, uma influência ainda maior que a de Schelling   e Hegel  , com os quais compõe a trilogia de Filósofos do Idealismo Absoluto. Sua obra Reden an die deutsche Nation é de capital importância para a história do conceito de Volk, de Estado, de educação nacional e para a filosofia do nacionalismo. São 14 Discursos exclusivamente dirigidos a alemães e sem a menor intenção de valer para outros povos. Escritos e pronunciados entre 1807 e 1808, na Alemanha dividida, na Prússia destruída e reduzida a menos da metade do seu território e da sua população, estes Discursos, que foram lidos em Berlim, como um desafio às baionetas francesas, vêm revestidos de forte tonalidade mística; constituem por isso mesmo um dos mais importantes monumentos do nacionalismo romântico, na sua forma absoluta. — A tese do nacionalismo linguístico já vinha de Hamann e Herder; mas Fichte erige essa tese num princípio que adquire toda a sua amplitude com os conceitos de Urvolk e Ursprache. É nestes Discursos que o conceito de Nação emerge claramente pela primeira vez. Como logo depois em Hegel, a Nação aparece em Fichte como ser dotado de valor absoluto, como unidade substantiva, realidade originária transpessoal, identificando-se com o Estado.

O romântico inglês Blackwell havia já sustentado que a língua e o destino do povo estão intimamente ligados. Hamann havia observado que os autores do Renascimento, que escreveram em italiano, não conseguiram atingir a perfeição porque trabalharam com uma língua que não lhes era congênita [2]. Fichte defendeu a tese de que o povo alemão não é um povo como os demais povos germânicos, e muito menos um povo parecido com os românicos, e sim um Volk originário, um Urvolk, que se exprime na língua materna originária, a sua Ursprache. É de suma importância esta unidade do Urvolk com a sua Ursprache, isto é, essa unidade do povo com sua língua histórica originária, porque esta é a condição da autenticidade da Nação. O povo alemão, ao contrário dos outros povos germânicos, se conservou num território de habitação primitiva e se conservou a si mesmo como um povo primitivo. Isto, segundo Fichte, não implicava necessariamente a pureza   racial, desde que reconhecia na Prússia uma certa mistura eslava. Mas implicava, isto sim, uma unidade subjetiva, que se inscreve na noção fichteana de Totalidade, Allheit. Uma nação é um conjunto fechado, uma Totalidade. Esta totalidade nacional é coerente consigo mesma, é autêntica, na medida em que, na sua qualidade de Urvolk fala a sua língua original, única na qual pode exprimir com intimidade e vida a sua própria visão original do mundo. A língua original de um povo não é o resultado histórico arbitrário; ela é o que é necessariamente. Não é o povo que se exprime na língua, e sim a língua é que se exprime no povo. Quer dizer, “não é o povo quem expressa seus conhecimentos (por meio da língua), senão que são os próprios conhecimentos que se expressam mediante sua palavra exterior”. A língua é o que é necessariamente, porque se desenvolve segundo uma lei interna e fixa, como um organismo. É a língua que conserva o caráter primitivo de um Volk e não a sua própria pureza racial, já que nenhuma nação germânica pode vangloriar-se dessa pureza.

Tudo o que se pensa é vivo na língua original, porque entre as imagens sensíveis e as supra-sensíveis há uma perfeita correlação. Se disséssemos por exemplo a um alemão as palavras de procedência estranha Humanität, Popularität, Liberalität, estas palavras nada lhe diriam, sem o conhecimento racional completo do seu significado; ao contrário, quando a um alemão dizemos a palavra Menschlikeit ele a compreenderá imediatamente, sem nenhuma explicação histórica; porque a palavra Humanidade, Menschheit, permaneceu em alemão no estado de cousa puramente sensível, que precedeu a noção sintética de Humanidade.

Um grupo nacional se degrada quando adota uma língua estranha, cujas raízes estão mortas e cujas palavras exprimem entidades puramente supra-sensíveis, sem nexo com as imagens sensíveis da língua materna. Assim os grupos germânicos, que vieram fundar outras nações, adotaram línguas estranhas como foi o caso do latim; e do latim já degenerado pelo Cristianismo, formado de elementos estranhos a essa língua e que destruíram os princípios constitutivos do latim, como foi vivido, enquanto língua conatural, pelos antigos romanos; esses grupos que adotaram línguas estranhas se dividiram de sua própria alma original; falam uma língua e sentem obscuramente em outra; suas criações poderão ser laboriosíssimas, mas nunca poderão ser autênticas, em virtude desse corte que separa a alma e a sua expressão. O Urvolk, ao contrário, não está dividido de si pela sua língua, que, ao contrário, é a manifestação visível da sua essência; esse povo, ao contrário dos outros, pode ter Gemüt, intimidade, caráter e seriedade. Seu poder criador vem dos seus arcanos mais profundos e por isso suas criações são autênticas, originais. No Urvolk, as palavras são realmente vida e estímulo de vida; as palavras são espírito e podem formar a vida. Só a língua original pode produzir imagens que, em vez de refletir simplesmente a realidade, podem ser modelos da realidade: Esse povo pode criar novas realidades. Mas tal poder não existe nos povos que adotaram línguas estranhas; usam línguas cujos sons não lhes dizem nada, cujas imagens não sentem e que são aliás artificiais. Neste caso, a formação espiritual segue uma trilha e a vida outra; as classes instruídas se separam do povo e fazem deste último o instrumento cego de seus planos egoístas. A instrução não atinge mais do que a razão e não exerce a menor influência sobre as condições da vida real. Fabricam constituições políticas perfeitíssimas, engrenagens que devem funcionar com precisão; e quando, no curso dos acontecimentos sociais se produz algum choque, vão procurar saber qual foi a engrenagem que falhou e a substituem; mas não têm a menor noção da força misteriosa que dirige a máquina toda. E garantem com isso uma liberdade que não é vida original, mas vacilação indecisa entre muitas cousas igualmente possíveis. Os homens primitivos, ao contrário, amam a verdadeira liberdade, e quando formam uma coletividade, formam um povo primitivo, um Urvolk.

Na tese de Fichte, a natural evolução das línguas não se opõe a que as mesmas se conservem primitivas, ao contrário. O essencial é que a evolução proceda geneticamente, na linha da raiz primitiva. A língua original evolui segundo as leis do seu processo interno, não tolerando palavras estranhas que não possam entrar no círculo das suas noções matrizes; evolui assim como um corpo cresce, explicitando as virtualidades naturais da fonte materna. Exprime com autenticidade a sua cosmo-visão matinal. É uma língua que se fala a si mesma, formando o seu povo e evoluindo através dele. Se do povo original se aproximam, por exemplo, outros descendentes do mesmo tronco, que falem já línguas estranhas e não sejam mais capazes de penetrar o círculo das ideias da língua original, esses recém-chegados não terão influência alguma sobre o povo original, até o dia em que possam por fim achar-se a si mesmos e compreender-se a si mesmos a partir das suas nações matrizes; e nesse dia estarão novamente formados pela língua original, longe de a terem formado. O caráter da Nação deriva em suma do caráter de sua língua. Tal é a tese de Fichte, que fundamenta todos os nacionalismos linguísticos.


[2Meinecke, op. cit., pág. 215.