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Zubiri (2012:265-267) – Compreensão

quarta-feira 30 de outubro de 2024, por Cardoso de Castro

Compreender não é mero apreender, mas abarcar algo. Aqui compreender tem o sentido etimológico de comprehendere. A compreensão é o que vai constituir o modo de a coisa real estar presente novamente. É uma circunscrição periférica, por assim dizer, da apreensão primordial do real. Nesta compreensão da coisa real, fica incorporado a ela o que realmente é; o fóton fica incorporado à cor verde. E esta incorporação tem um nome preciso: é compreensão: compreendemos e não somente apreendemos o verde real. Aqui a palavra “compreensão” não tem o sentido etimológico, mas o sentido corrente em nosso idioma atual: entender algo. A “com-preensão” da coisa real, desde a intelecção do que realmente é, faz-nos compreender o que a dita coisa real é. O “re” da re-atualização e seu pertencer ao real já atualizado em apreensão primordial são ser “compreensão”. O ato unitário desta intelecção é, pois, compreensão.

Que mais precisamente é esta compreensão? Convém delimitá-lo com algum rigor.

Para isso, convém conceituar a compreensão em face de outros usos do vocábulo. Naturalmente, não é o que a filosofia medieval chamou de ciência compreensora: a intelecção de tudo o que é inteligível numa coisa inteligida. Porque o que usualmente chamamos de compreender não é essa compreensão total. É que não se trata senão de um modo próprio de intelecção segundo o qual algo é realmente.

Tampouco se trata de um momento lógico da chamada compreensão de notas à diferença da extensão dos possíveis sujeitos delas.

Compreender tampouco significa aqui o que na filosofia de Dilthey   foi chamado de Verstehen de uma vivência à diferença da explicação dela e de seu conteúdo. Para Dilthey  , a compreensão recai sobre a vivência e sobre o vivido nela. Para Dilthey  , as vivências, expliquem-se como possível, nem por isso estão compreendidas. Só o estarão quando tivermos interpretado seu sentido. Compreender é, para Dilthey  , interpretar um sentido, e [265] reciprocamente sentido é vivência interpretada. Com a lei da gravidade não compreendemos a queda mortal de um homem, ou seja, se é suicídio, acidente, homicídio, etc. As coisas se explicam; as vivências se compreendem, se interpretam.

Mas isso é insuficiente.

Compreender não é interpretar; interpretar é tão só um modo de compreender. E, ademais, como modo de compreender não abarca todas as coisas reais, mas somente algumas, as vivências de que Dilthey   nos fala. Pois bem, mesmo se se trata de vivências, compreender não é interpretar seu sentido. O termo formal da compreensão de uma vivência não é o sentido. Na ideia de vivência há um possível equívoco. A vivência é realidade. E o que se compreende não é o sentido dessa realidade, mas a realidade desse sentido. O sentido não é senão um momento da realidade da vivência. O que se compreende não é a vivência da realidade, mas a realidade da vivência. O sentido não é senão um momento da realidade da vivência. O que se compreende, repito, não é a vivência, mas a realidade da vivência enquanto realidade; é, se se quiser, a realidade vivencial, ou seja, que esta realidade tenha, e tenha de ter, sentido. Então desaparece a diferença última entre explicação e compreensão. O problema da compreensão enquanto tal permanece intacto com a simples interpretação. Ademais, porém, não se compreendem somente as vivências, isto é, as realidades vivenciais, mas todas as realidades. Toda e qualquer realidade inteligida em apreensão primordial pode e, em princípio, tem de ser re-inteligida em compreensão.

Esta adscrição do compreender, do Verstehen ao sentido pode ter outros caracteres diferentes, como parece suceder em Heidegger. Digo “parece suceder” porque a coisa não está clara nele. Por um lado, Verstehen é para Heidegger interpretar. Com todas as variantes que possa haver, é a mesma ideia que se encontra em Dilthey  , e ao mesmo tempo em Rickert. Mas, por outro lado, Verstehen é empregado outras vezes por Heidegger como simples tradução do intelligere; assim no começo de seu grande livro. Pois bem, isso não é admissível. Intellectus não é compreensão, mas intelecção. E, à parte todo e qualquer problema histórico e tradutório, compreender não é sinônimo de inteligir; compreender é somente um modo de inteligir. Há milhões de coisas que apreendo intelectivamente, ou seja, que apreendo como reais, mas que não compreendo. São intelecção não compreensiva.

Compreensão não é, pois, ciência compreensora, nem compreensão nocional, nem interpretação de sentido. É um modo especial de inteligir. E então temos de nos perguntar o que é compreender.

Já o dissemos: na compreensão volta-se a apreender uma coisa já apreendida como real, à luz do que apreendemos que ela realmente é. Há, pois, três atualizações intelectivas de uma mesma realidade. Em primeiro lugar, a atualização intelectiva da coisa como real: a apreensão primordial de realidade. Em segundo lugar, a atualização intelectiva do que a coisa real é realmente. A intelecção modal em logos e razão. Finalmente, em terceiro lugar, a atualização intelectiva da mesma coisa real (que já se havia apreendido em apreensão primordial), mas incorporando modalmente a ela o que se atualizou na intelecção (logos e razão) do que realmente é. Esta terceira atualização é a compreensão. Compreender é apreender o real desde o que ele realmente é. É inteligir como a estrutura da coisa é determinada desde o que realmente é. É justamente o ato de intelecção unitária e modal.


Ver online : Xavier Zubiri


ZUBIRI, Xavier. Inteligência e Razão. São Paulo: É Realizações Editora, 2012