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Sloterdijk (2012:479,481) – normatização - cristalização do método
quarta-feira 4 de março de 2020
A questão da normatização na Ética Prática, e mais ainda na Bioética, se situa naquela encruzilhada inevitável, onde é da maior importância a clareza:
se o eu-pesquisador se contrapõe ao “objeto” sob a postura da generalização, do distanciamento e da dominação ou sob a postura da individualização, da proximidade e da entrega. Segundo essa visão, a distinção entre as “duas culturas” [1] reconquista aqui um sentido. Na “primeira cultura” (que possui a hegemonia), observamos um primado do método, do procedimento, do procedimento de pesquisa sobre os objetos; só pode ser considerado objeto aqui aquilo que incide sob o âmbito apreendido pelos métodos e modelos. Se atribuirmos tudo aquilo que é metodológico ao sujeito, então poderemos falar de um tipo de ciência, que provém da elevação daqueles que conhecem a uma posição superior em relação àquilo que é conhecido: primado do sujeito o fato de isso ser curiosamente válido para as disciplinas exatas e “objetivas”, ou melhor, objetivistas, é esclarecido pela conexão entre constatação do objeto e representação do sujeito). Esse exagero é o preço da “objetividade”; esta é comprada ao mesmo tempo com um apaziguamento ou com uma normatização metodológica daquilo que o sujeito pode ou não pode junto ao “conhecimento”. A representação de que todas as ciências efetivamente reais só terão por fim uma única teoria em relação a um determinado problema pressupõe ao mesmo tempo a expectativa de que a assim chamada comunidade de pesquisadores cresça conjuntamente e se transforme in the long run em um exército homogêneo de sujeitos que serão todos marcados pela mesma dissimulação metodológica em face das “coisas”. Somente se os sujeitos forem uniformizados epistemologicamente (com o mesmo “interesse”, mesmos conceitos, mesmos métodos), as proposições sobre os objetos também alcançarão a sua forma derradeira, e, em verdade (no sentido dessas suposições), correta. Uma coisa não poderá ser alcançada sem a outra. Onde muitas hipóteses se encontram justapostas uma ao lado das outras, revela-se uma fraqueza da parte dos sujeitos — e essa fraqueza subjetiva dá às coisas uma chance de se mostrarem em sua plurissignificância. Dito de maneira acentuada, isso significa: quanto mais fracos são os nossos métodos, tanto melhor para as “coisas”. Enquanto houver uma pluralidade de “interpretações”, as coisas estarão em segurança diante da loucura dos seres cognoscentes de supor que teriam fixado de uma vez por todas os objetos — como conhecidos, enquanto se continua “interpretando”, mantém-se viva a lembrança do fato de que as coisas também são algo “em si”, que não tem nada em comum com o ser conhecido por nós.
[SLOTERDIJK , Peter. Crítica da Razão Cínica. Rio de Janeiro: Estação Liberdade, 2012, p. 479, 481]
Ver online : Peter Sloterdijk
[1] Há uma longa tradição de tentativas de confrontar a cada vez dois tipos dc ciências e de formas de saber: ciências compreensivas ou explicativas; exatas ou inexatas; ciências do universal ou do particular; ciências dos objetos do espírito ou dos objetos da natureza; scientiae ou artes. Essas oposições possuem, em verdade, algo “plausível”, mas a história da ciência mostra que elas acabam se apagando; a moda conduz à ciência da unidade (do tipo de uma objetivação polêmica).