Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

Página inicial > Hermenêutica > Sallis (1993:xii-xiii) – Terra

Sallis (1993:xii-xiii) – Terra

sábado 29 de abril de 2017

Mas o que dizer da terra no discurso de Heidegger? O que significa terra? Essa é uma questão possível dentro do discurso de Heidegger, a questão do sentido? Sem dúvida, é possível elaborar certos significados, certos sentidos, da terra como ela funciona em textos como “A origem da obra de arte”. Michel Haar   fez isso com cuidado e precisão, delimitando e discutindo quatro sentidos distintos de terra. Em primeiro lugar, a terra pertence à dimensão da retirada, da ocultação que domina a não ocultação, do lethe que pertence à aletheia. Segundo, ela está ligada ao que foi chamado de natureza e, no início do grego, physis. Em terceiro lugar, ela constitui o material na obra de arte; aqui Haar   extrai o importante corolário de que o material terroso é o que resta da obra de arte quando seu mundo desapareceu, que esse elemento é o que permite que alguém em outra época encontre a força e a beleza de uma obra de arte do passado, que é o que — para citar o belo exemplo de Haar   — permite que o clarão hierático dos mosaicos em Ravena nos toque com uma graça que, a partir de então, escapa de seu mundo. Em quarto lugar, a terra é o solo nativo (heimatlicher Grund), não como o solo de um enraizamento biológico ou vital, não como o local de nascimento de fato, mas como o Heimat que é dado e, ao mesmo tempo, escolhido, a pátria onde se aprendeu a se tornar próprio. Pode-se até mesmo — como Haar   também faz — tentar unificar esses sentidos no pensamento singular de um fundamento não-fundacional. E, no entanto, todo [xiii] discurso desse tipo sobre o sentido da terra permanecerá questionável, permanecerá exposto ao recuo do que é dito sobre o próprio dizer. Pois, dentro do discurso heideggeriano, o sentido é determinado por referência a um horizonte ou, mais precisamente, a um mundo; é a partir do mundo que todas as coisas dentro do mundo recebem seus sentidos. Mas a terra não é algo dentro do mundo; ela não é uma coisa de fato. É, antes, aquilo que, em uma luta originária com o mundo, permanece sempre também retirada do mundo e da medida fornecida pelo mundo. Comprometer-se a dizer o que a terra significa é arriscar-se a submetê-la a essa medida, à regra do mundo, violando, por assim dizer, seu não-senso. A menos, talvez, que também se diga que a terra não significa nada, interrompendo assim toda delimitação de sentido ao abri-la em um abismo. Não é de se admirar que Haar   deixe transparecer a pergunta: Com que base podemos dizer a terra? E é nesse exato momento que ele faz alusão à chora platônica e ao “raciocínio bastardo” que parece ser o único recurso para alguém que, como Timeu, falaria do que se retira do discurso.

[HAAR  , Michel. The song of the earth : Heidegger and the grounds of the history of being. Tr. Reginald Lilly. Bloomington: Indiana University Press, 1993 (Foreword, p. xii-xiii)]


Ver online : John Sallis