Como foi visto, Heidegger pretende que seja admissível um sentido do conceito de possibilidade relacionado ao ser-aí humano. Como o ser-aí é entendido como sendo o ente para o qual o próprio ser está em questão, segue-se que o significado desse conceito de possibilidade não está referido a sentenças, proposições ou enunciados. Isso significa prima facie que o conceito existencial de possibilidade e os termos correspondentes não seriam usados em relação a dieta. No tocante à possibilidade existencial não se trataria, portanto, de uma modalidade de dicto [1]. Segue-se por exclusão que o conceito existencial de possibilidade seria empregado em relação coisas que não são dieta. Assim, parece natural admitir que, estando em relação ao um domínio de entes, os existentes humanos, os termos referentes [38] à possibilidade existencial teriam um uso de re. De fato, como será visto no próximo capítulo, Heidegger usa o termo “possibilidade” com significado existencial em duas maneiras nominais: as possibilidades são os caracteres que determinam os seres humanos como existentes e a possibilidade é a determinidade positiva última dos entes que são ser-aí. À primeira vista, portanto, o conceito de possibilidade existencial deveria ser entendido como uma modalidade de re.
Até onde é de meu conhecimento, Heidegger não empregou a distinção modalidades de dicto e de re para qualificar a diferença introduzida com a noção existencial de possibilidade. Além da questão filológica, há também o problema de se essa distinção pode ser relevante para a reconstrução do conceito, até mesmo em razão desse conceito ter sido apresentado em uma abordagem que visava apenas a abrir o campo da possibilidade existencial e prepará-la como problema. A respeito do problema conceituai, a minha convicção é que a distinção de dicto/de re aplicada a modalidades não é pertinente para um entendimento formal do tratamento inaugurado por Heidegger do conceito de possibilidade. Para justificar essa alegação é preciso considerar a própria distinção “de dicto/de re”.
É visível nesse ponto que se entende por modalidades de re o modo como uma propriedade está presente ou ausente em um indivíduo, a maneira como tal indivíduo tem ou não uma propriedade. Mesmo que esse modo possa variar relativamente à descrição sob a qual está considerado o indivíduo, se está assumindo o esquema indivíduo-propriedade. Precisamente isso mostra porque o conceito de possibilidade existencial não pode ser tomado como um caso de modalidade de re, e que é, além disso, neutro em relação à admissibilidade ou não de modalidades de re. Como será [42] visto em detalhe no próximo capítulo, Heidegger usa a noção de possibilidade existencial em dois sentidos nominais, mas não em acepção adverbial. Ou seja, as possibilidades existenciais serão os caracteres determinantes do ser humano como ser-aí, e não podem ser entendidas como propriedades em sentido usual. Além disso, a possibilidade existencial designará a condição mais fundamental que determina um ente como sendo apenas possibilidades existenciais. Pode-se dizer, portanto, que, ao relacionar o conceito de possibilidade com o domínio do ser-aí, se está considerando um contexto ontológico que não pode ser concebido a partir do esquema indivíduo-propriedade. Seria uma transgressão categorial, portanto, empregar a noção de modalidade de re para qualificar o conceito existencial de possibilidade. Além disso, a abertura e a conceitualização desse campo temático são independentes em relação ao debate em torno da distinção modalidades de dicto e de re.
Em suma, do que foi considerado até agora resulta que a possibilidade existencial não é uma modalidade alética, pois não está em relação com a verdade ou justificação de enunciados, mas tampouco pode ser qualificada como uma modalidade de re, na medida em que a noção de existência não pode ser corretamente entendida a partir do esquema indivíduo-propriedade. [2] Dado isso, se o conceito de possibilidade existencial não é aquele relacionado com as modalidades em sentido lógico ou epistêmico, mas também não é aquela noção relacionada com uma ontologia da subsistência (contingência, o não efetivo não necessário), qual seria então o marco formal no qual se insere o tratamento dessa noção? [RRR2014]