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Luiz Bicca (1999:8-13) – ipseidade

segunda-feira 11 de março de 2024, por Cardoso de Castro

Nas filosofias da existência, o interesse pela questão da ipseidade sofre um deslocamento, no que diz respeito ao âmbito de localização do pensamento, da epistemologia ou teoria do conhecimento para a ontologia. Elas abdicam daquela pretensão autofundante e absolutizante das modernas filosofias centradas na categoria do sujeito ou do “Eu”. Na mais consistente e sistemática dessas reflexões ditas existenciais, em Heidegger, manifesta-se uma diferença entre a identidade que supõe permanência (ou substancialização) e a ipseidade, diferença esta que é uma diferença de modos de ser. Ao contrário do Eu absolutamente certo acerca de si mesmo, o Dasein mantém consigo mesmo uma relação marcada principalmente por incerteza. Antes de ter em primeiro lugar a certeza do saber absoluto de si, o Dasein só toma ciência de si a partir de um jogo que nele se joga e é por ele sempre tacitamente admitido: o jogo de seu ser, jogo que se joga singularmente, em cada um e por cada um, e que só se decide a cada passo, a cada momento. Este aspecto de ser a todo momento meu (a estrutural Jemeinigkeit, de “Ser e Tempo  ”) significa que ninguém pode desempenhar o Dasein por algum outro ou em lugar de outro. É um jogo que se joga na primeira pessoa, sem que isso demande a construção de qualquer solipismo filosófico. A ipseidade [8] depende direta e imediatamente do Dasein que a cada momento somos, uma dependência entre uma modalidade de auto-apreensão e uma maneira de ser no mundo. Neste ponto, um paralelismo poderia ser sugerido: entre ipseidade e Dasein, e entre a identidade fixante, permanente, e o ser-simplesmente-dado (a Vorhandenheit). Esta última categoria indica formalmente um modo-de-ser aludindo à mão (Hand) como aquilo que, neste modo, propriamente nada tem a fazer. Na Vorhandenheit a mão não maneja, não interfere, deixando os entes apenas ou simplesmente subsistir, literalmente diante (vor) da mão. Nas condições em que impera este modo, à suposição da subsistência ou permanência (identidade) do ente corresponde uma inclinação do pensar para a fixidez, a qual se impõe na base do comportamento judicativo, predicativo. Em “Ser e Tempo  ” a junção do Selbst e do Dasein expõe-se em sua tematização direta por uma sequência de parágrafos, sobretudo nos §§ 5, 9, 25 e 41, atingindo uma culminância de mediação na estrutura existencial-ontológica do cuidado (Sorge), no § 64. Gradualmente, ao longo desses passos, é mostrado que o ser da ipseidade supõe a totalidade de um mundo, que é o horizonte de todo o seu fazer, sentir e pensar. O Selbst é essencialmente abertura para o mundo. Pensando nestes termos, o homem, como veremos mais à frente, é considerado sempre também segundo alguma disposição de humor (Stimmung), que o abre, isto é, leva-o para fora de si preenchendo-o de transcendência. Esta perspectiva existencial promove um descentramento da posição do homem. Este passa a ser um ente entre ou em meio a outros entes, que possuem e que não possuem o seu modo de ser, compondo todos com ele seu mundo.

Esses pensamentos básicos da obra maior de Heidegger encontram-se reforçados, ainda que com modificações de formulação nada desprezíveis, em sua preleção sobre os “Problemas fundamentais da Fenomenologia” (GA24  ). Aqui os reencontramos, no § 15 da Primeira Parte, quando da tentativa de demonstrar que todo ato intencional envolve ou encerra uma co-abertura da ipseidade. Aí está dito que “A ipseidade (Selbst) que o Dasein é, está de algum modo co-presente em todos os comportamentos intencionais. À intencionalidade pertence não só um voltar-se-para e não só [a] compreensão-de-ser do ente, para o qual ele [o Dasein, L.B.] se volta, mas também o ser co-desvelado do Selbst, que se relaciona.” (GA24  :225). A mesma exposição já manifesta o que pode ser visto como um afastamento ou distanciamento crítico em relação ao elemento suposto decisivo e primordial para efeito de uma auto-apreensão do indivíduo humano na perspectiva dos diversos idealismos racionalistas do sujeito, qual seja, o da auto-referência reflexiva: “A ipseidade faz-se presente ao próprio Dasein, sem reflexão e sem percepção interior, antes de toda reflexão. Reflexão, no sentido de um movimento de retorno (Rückwendung), é só um modo de auto-apreensão, mas não [é] a maneira primária de auto-abertura [ou: do abrir-se primário a si mesmo, L.B.]” (226). Para se encontrar o indivíduo humano não necessita de nenhuma introspecção ou “retorno a si”. Em que consistiria então essa primariedade ou essa instância ontologica-mente primeira de encontro de uma ipseidade dos homens?

Na medida em que “reflexão” significa a clássica posição de um acesso, mediado pelo pensamento, a si mesmo do sujeito enquanto ente pensante, a resposta da ontologia existencial é diametralmente oposta. O indivíduo humano encontra sua ipseidade ou a si mesmo antes de tudo naquelas coisas que lhe são mais corriqueiras e habituais, e não por abstração delas, isolando-se nalgum estado de pureza intelectual: “Cada um é aquilo que ele empreende e de que se ocupa. Quotidianamente a gente se compreende e compreende sua existência a partir daquilo que a gente empreende e daquilo com que a gente se ocupa”. As ocupações e as coisas costumeiras são como que espelhos do Dasein do homem, de um mesmo ou uma certa ipseidade. Há assim, para o pensamento existencial, toda uma imbricação entre auto-apreensão e familiaridade, entre compreensão de si (Selbstverständnis) e compreensão do óbvio (Selbst-verständlich): “O sapateiro, decerto, não é o sapato, e no entanto ele se compreende a partir de suas coisas, se, sua ipseidade”. E mais à frente, de uma forma mais completa: “O sapateiro não é o sapato, mas, existindo, ele é seu mundo, o qual é o que primeiramente possibilita descobrir uma rede instrumental como intramundana e que nos mantenhamos [11] junto a ela. Primeiramente não são as coisas enquanto tais, tomadas isoladamente, e sim como intramundanas, a partir das quais nós nos encontramos” (224). A aproximação entre o ‘si’ (Selbst) da ipseidade e o ‘se’ (man), a gente, da impessoalidade, transparece em passagens como essas. Seu caráter instigante sugere uma exploração do aspecto genérico do “se”. A impessoalidade denuncia também uma dimensão de multiplicidade, permitindo um trânsito do individual ao universal: o ‘se’ vale muitas vezes como um “nós”, onde aquele singular que o emprega converte-se de pronto em um coletivo anônimo, no qual aliás se respalda para algo que ele quer, diz ou pensa.

A ipseidade que primeira e implicitamente se estabelece traz portanto a marca do impessoal, é o Man-selbst (conforme SuZ  , §§ 39, pag. 181). Isto não quer dizer que nós não temos, a rigor, nenhuma compreensão, mas faz com que tenhamos uma compreensão imprópria de nós — aquela determinada e proporcionada pelas coisas e pelos homens aos quais estamos entregues em nossa vida quotidiana. Essa compreensão-de-si primária, porém imprópria, é efetivamente uma pré-compreensão condicio-nante, possibilitadora de atitudes em face de algo. É uma componente central daquela rede de crenças prévias, valores e hábitos recebidos e portados por cada um, de opiniões já formadas que atuam quase irrefletidamente prefigurando comportamentos e maneiras de relacionar-se com as coisas integrantes do mundo de cada um. Nesse sentido, um juízo simétrico àquele acerca de ipseidade primária [12] é perfeitamente cabível: “…nós nunca pensamos, numa relação natural com as coisas, uma coisa, e quando quer que a tomemos por si, nós a tomamos retirando-a de um contexto (Zusammenhang)”, observa Heidegger; por outro lado, ao abordarmos, assim artificialmente, algo em separado, isolando-o de suas conexões elementares e usuais, “fazemo-nos cegos diante daquilo que antes de tudo e para toda apreensão expressamente pensante já está previamente dado” (231). E o que é isso que é sempre dado de antemão, antes de todo e qualquer pensar abstraidor de alguma coisa, embora em sua doação prévia, por assim dizer, não o seja de modo explícito e estritamente consciente (como o admite Heidegger mesmo)? O que se faz sempre presente, de saída, são “contextos de coisas” (Dingzusammenhänge), “totalidades instrumentais” (Zeugganze), que são captadas de um modo irrefletido, desatento, no que se refere a cada coisa considerada por si, e onde o irrefletido, isto é, “impensado (unbedacht) quer dizer: apreendido não-tematicamente” (232).


Ver online : Luiz Bicca


[BICCA, Luiz. O Mesmo e os Outros. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1999]