Na opinião de Descartes , temos só uma ideia da matéria que obedece ao critério da “clareza” e “distinção”, a saber, o conceito da “extensão”, aplicando-se tanto ao corpo humano como às coisas do mundo. Tudo o que for material será, pois, para Descartes , essencialmente extenso, quantitativo e nada mais. São, porém, só as ciências naturais que operam com a ideia de “quantidade”. Portanto, a concepção cartesiana a respeito da realidade do corpo e das coisas mundanas é cientista. O que as ciências naturais não conseguem exprimir pode talvez ter significação para a prática da vida cotidiana, mas não para a “ciência admirável”, onde se trata de uma indubitável certeza acerca do verdadeiro e do real.
Essa concepção acarreta graves consequências para a ideia cartesiana do homem. De um lado, o homem é uma res cogitam, uma substância que se pensa a si mesma; de outra parte, é também uma res extensa, uma substância extensa. Desde que a realidade material, para Descartes , não é mais que o quantitativo, qualquer transformação ou movimento não passa, por si e necessariamente, de um fenômeno espacial. O corpo “humano”, portanto, é só “quantidade que se move espacialmente”, uma máquina, objeto da mecânica. O homem consta então de duas substâncias, distintas é independentes por princípio e essencialmente. O filósofo não deixou de verificar, porém, que a alma e o corpo constituem certa unidade. Provam-no os sentimentos de fome, sede e dor. Quando uma ferida me causa dor, a res cogitans não o percebe como um piloto que nota ter quebrado alguma coisa em seu navio. [1] Esses sentimentos mostram que há uma “mistura do espírito com o corpo”, muito mais íntima que a unidade de um piloto com seu navio. Vê-se assim forçado a admitir certa influência mútua entre a alma e o corpo. “Propriamente” tal coisa não deveria ser possível, mas o fato é inegável. O filósofo tentou resolver a dificuldade dando à alma um lugar na glândula pineal. A alma torna-se capaz de influir nos movimentos do corpo mediante os “espíritos animais”. Estes, por sua vez, fazem a alma perceber os movimentos do corpo. O próprio Descartes , contudo, não se sentiu satisfeito com essa solução do problema. Não é de estranhar, porque procurava responder à seguinte questão: como podem perfazer uma unidade essencial duas substâncias que não são essencialmente uma unidade ?
No parágrafo anterior mostramos que pode existir um modo de pensar materialista que não diga expressamente ser o homem uma coisa. O cientismo é uma forma camuflada de materialismo: no cientismo o sujeito nada significa, simplesmente. O materialismo, entretanto, evoca o espiritualismo; este vive do insucesso do materialismo, e parte da primazia do sujeito. Quem (com razão, aliás) afirma a prioridade do sujeito, corre, de resto, o risco de deixar degenerar seu parecer, fazendo as coisas perderem sua densidade na fantasmagoria dos conteúdos subjetivos. Não resta então, afinal, nada mais do inegável fato de que o homem só é o que ele é em virtude da materialidade.
Nossa precedente exposição da doutrina de Descartes pretendia, entre outras coisas, fazer ver que essa degenerescência ocorreu de fato no seu pensamento. Apenas por inconsequência evitou esse resultado, enchendo o sujeito-como-cogito com as ideias “claras” e “distintas” do corpo humano e das coisas. Um injustificado recurso à veracidade divina, que nos deve garantir a verdade das mesmas ideias, dá-nos de novo, conforme Descartes , uma apreensão da realidade do corpo e das coisas mundanas. A doutrina de Descartes , assim, há de ser denominada espiritualismo mitigado. Mas o espiritualismo absoluto de Espinosa , Fichte e Hegel é uma forma mais coerente do cartesianismo que a do próprio Descartes .
Ninguém se admire, pois, de que a negação do Eu Absoluto ou do Espírito Absoluto pela fenomenologia existencial atinja também a doutrina de Descartes . Este aparece em muitas negações da fenomenologia existencial. Por isso, vamos ilustrar mais um importante aspecto do cartesianismo.
Já dissemos que a dúvida metódica radical sobre a realidade do mundo não redundou na perda do mesmo para o pensamento; as coisas apenas ficam afetadas com a qualificação de pensamento de.
É claro que Descartes nunca duvidou verdadeiramente da realidade das coisas mundanas. A dúvida era para ele o método de adquirir a verdade e certeza; por ela queria afirmar criticamente a realidade das coisas. O resultado do primeiro passo crítico foi a determinação das coisas com a qualificação pensamento de. Mas Descartes sabe evidentemente muito bem que assim não faz chegar as coisas do mundo a serem de modo total. A pena com que escrevo, o papel que uso, a cadeira em que sento e o quarto em que moro são mais do que a ideia de pena, de papel, de cadeira e de quarto. Que pode, porém, ser esse “mais”? Que o ser de todas as coisas mundanas se manifesta como um ser-para-o-sujeito, já Descartes percebera na concepção do cogito repleto de ideias. A figura humana das coisas reduziu-se, pois, para ele, em serem um conteúdo do sujeito. Mas se o ser das coisas é mais do que ser-ideia-no-sujeito, também não pode, de novo, esse “mais” ser uma figura humana das coisas, porque essa já fora conceituada como ideia-no-sujeito. O mais não pode consistir num ser-para-o-sujeito, precisando, por isso, ser realidade bruta, o lado “inumano” da realidade, a realidade “solta”, separada do sujeito. Logo, a realidade das coisas é, por assim dizer, dividida por Descartes em lado humano (être-pour-nous) e lado não-humano (être-en-soi). O lado humano localiza-se “dentro” do cogito, e o não-humano “fora”. A pergunta que logo se formula aqui é: em que medida coincide o “mundo interior” com o “mundo exterior”, ou seja, em que medida corresponde certa “objetividade” às ideias “dentro” do cogito. Nessa pergunta, “objetividade” significa realidade bruta. Nem podia ser de outro modo. De fato, se o sujeito é apartado do mundo, este não se pode mais conceber senão separado do sujeito, como uma coleção de coisas-em-si, um mundo-em-si.
Pelo rodeio da veracidade de Deus na infusão das ideias “claras” e “distintas”, julgou-se Descartes apto a “afirmar” a “realidade” das coisas-em-si, do mundo-em-si. Colocamos o termo “afirmar” entre aspas porque não se refere mais a uma afirmação real. De fato, o “objeto” desta “afirmação” é o mundo-em-si e este é, como realidade bruta, um “mundo não afirmado”. Ora, que “afirmação” será a de um mundo não afirmado ?
Malgrado as dificuldades inerentes ao cartesianismo, o “espírito” de Descartes tornou-se um bem comum, tanto da filosofia como da vida cotidiana. O sujeito foi apartado do mundo e este posto como separado do sujeito. A fenomenologia existencial nega os exageros do materialismo e do espiritualismo. A resistência contra esses dois extremismos, entretanto, inclui também a negação do “espírito” de Descartes .