Pinto Ribeiro
«A verdadeira vida está ausente.» Mas nós estamos no mundo. A metafísica surge e mantém-se neste álibi. Está voltada para o «outro lado», para o «doutro modo», para o «outro». Sob a forma mais geral, que revestiu na história do pensamento, ela aparece, de facto, como um movimento que parte de um mundo que nos é familiar — sejam quais forem as terras ainda desconhecidas que o marginem ou que ele esconda —, de uma «nossa casa» que habitamos, para um fora-de-si estrangeiro, para um além.
O termo desse movimento — o outro lado ou o outro — é denominado outro num sentido eminente. Nenhuma viagem, nenhuma mudança de clima e de ambiente podem satisfazer o desejo que para lá tende. O Outro metafisicamente desejado não é «outro» como o pão que como, como o país em que habito, como a paisagem que contemplo, como, por vezes, eu para mim próprio, este «eu», esse «outro». Dessas realidades, posso «alimentar-me» e, em grande medida, satisfazer-me, como se elas simplesmente me tivessem faltado. Por isso mesmo, a sua alteridade incorpora-se na minha identidade de pensante ou de possuidor. O desejo metafísico tende para uma coisa inteiramente diversa, para o absolutamente outro. A análise habitual do desejo não pode triunfar da sua singular pretensão. Na base do desejo comummente interpretado encontrar-se-ia a necessidade; o desejo marcaria um ser indigente e incompleto ou decaído da sua antiga grandeza. Coincidiria com a consciência do que foi perdido e seria essencialmente nostalgia e saudade. Mas desse modo nem sequer suspeitaria o que é o verdadeiramente outro.
O desejo metafísico não aspira ao retorno, porque é desejo de uma terra onde de modo nenhum nascemos. De uma terra estranha a toda a natureza, que não foi nossa pátria e para onde nunca iremos. O desejo metafísico não assenta em nenhum parentesco prévio; é desejo que não poderemos satisfazer. Fala-se de ânimo leve de desejos satisfeitos ou de necessidades sexuais ou, ainda, de necessidades morais e religiosas. O próprio amor é assim considerado como a satisfação de uma fome sublime. Se tal linguagem é possível, é porque a maioria dos nossos desejos não são puros e o amor também não. Os desejos que podemos satisfazer só se assemelham ao desejo metafísico nas decepções da satisfação ou na exasperação da não-satisfação e do desejo, que constitui a própria volúpia. O desejo metafísico tem uma outra intenção — deseja o que está para além de tudo o que pode simplesmente completá-lo. É como a bondade — o Desejado não o cumula, antes lhe abre o apetite.
Generosidade alimentada pelo Desejado e, neste sentido, relação que não é desaparecimento da distância, que não é aproximação ou, para captar de mais perto a essência da generosidade e da bondade, relação cuja positividade vem do afastamento, da separação, porque se alimenta, poderia dizer-se, da sua fome. Afastamento que só seria radical se o desejo não fosse a possibilidade de antecipar o desejável, se não o pensasse previamente, se se dirigisse em direcção a ele ao acaso, ou seja, como que para uma alteridade absoluta, não antecipável, tal como se vai ao encontro da morte. O desejo é absoluto se o ser que deseja é mortal e o Desejado, invisível. A invisibilidade não indica uma ausência de relações; implica relações com o que não é dado e do qual não temos ideia. A visão é uma adequação entre a ideia e a coisa: compreensão que engloba. A inadequação não designa uma simples negação ou uma obscuridade da ideia, mas, fora da luz e do escuro, fora do conhecimento que mede seres, a desmedida do Desejo. O Desejo é desejo do absolutamente Outro. Para além da fome que se satisfaz, da sede que se mata e dos sentidos que se apaziguam, a metafísica deseja o Outro para além das satisfações, sem que da parte do corpo seja possível qualquer gesto para diminuir a aspiração, sem que seja possível esboçar qualquer carícia conhecida, nem inventar qualquer nova carícia Desejo sem satisfação que, precisamente, entende o afastamento, a alteridade e a exterioridade do Outro. Para o Desejo, a alteridade, inadequada à ideia, tem um sentido. É entendida como alteridade de Outrem e como a do Altíssimo. A própria dimensão da altura [1] é aberta pelo Desejo metafísico. O facto de essa altura já não ser o céu, mas o Invisível, constitui a própria elevação da altura e a sua nobreza. Morrer pelo invisível — eis a metafísica. Mas isso não quer dizer que o desejo possa dispensar os actos. Só que tais actos não são nem consumo, nem carícia, nem liturgia.
Louca aspiração ao invisível quando uma experiência pungente do humano ensina, no século XX, que os pensamentos dos homens são conduzidos pelas necessidades, as quais explicam sociedade e história; que a fome e o medo podem vencer toda a resistência humana e toda a liberdade. Não se trata de duvidar da miséria humana — do domínio que as coisas e os maus exercem sobre o homem — da animalidade. Mas ser homem é saber que é assim. A liberdade consiste em saber que a liberdade está em perigo. Mas saber ou ter consciência é ter tempo para evitar e prevenir o momento da inumanidade. É o adiamento perpétuo da hora da traição — ínfima diferença entre o homem e o não-homem — que supõe o desinteresse da bondade, o desejo do absolutamente Outro ou a nobreza, a dimensão da metafísica.
Original
« La vraie vie est absente. » Mais nous sommes au monde. La métaphysique surgit et se maintient dans cet alibi. Elle est tournée vers l’« ailleurs », et l’« autrement », et l’« autre ». Sous la forme la plus générale qu’elle a revêtue dans l’histoire de la pensée, elle apparaît, en effet, comme un mouvement partant d’un monde qui nous est familier quelles que soient les terres encore inconnues qui le bordent ou qu’il cache d’un « chez soi » que nous habitons, vers un hors-de-soi étranger, vers un là-bas.
Le terme de ce mouvement Tailleurs ou l’autre est dit autre dans un sens éminent. Aucun voyage, aucun changement de climat et de décor ne sauraient satisfaire le désir qui y tend. L’Autre métaphysiquement désiré n’est pas « autre » comme le pain que je mange, comme le pays que j’habite, comme le paysage que je contemple, comme, parfois, moi-même à moi-même, ce « je », cet « autre ». De ces réalités, je peux « me repaître » et, dans une très large mesure, me satisfaire, comme si elles m’avaient simplement manqué. Par là même, leur altérité se résorbe dans mon identité de pensant ou de possédant. Le désir métaphysique tend vers tout autre chose, vers l’absolument autre. L’analyse habituelle du désir ne saurait avoir raison de sa singulière prétention. A la base du désir communément interprété, se trouverait le besoin; le désir marquerait un être indigent et incomplet ou déchu de sa grandeur passée. Il coïnciderait avec la conscience de ce qui a été perdu. H serait essentiellement nostalgie, mal du retour. Mais ainsi il ne soupçonnerait même pas ce qui est le véritablement autre.
Le désir métaphysique n’aspire pas au retour, car il est désir d’un pays où nous ne naquîmes point. D’un pays étranger à toute nature, qui n’a pas été notre patrie et où nous ne nous transporterons jamais. Le désir métaphysique ne repose sur aucune parenté préalable. Désir qu’on ne saurait satisfaire. Car on parle à la légère de désirs satisfaits ou de besoins sexuels ou, encore, de besoins moraux et religieux. L’amour, lui-même, est ainsi considéré comme la satisfaction d’une faim sublime. Si ce langage est possible, c’est que la plupart de nos désirs ne sont pas purs et l’amour non plus. Les désirs que l’on peut satisfaire, ne ressemblent au désir métaphysique que dans les déceptions de la satisfaction ou dans l’exaspération de la non-satisfaction et du désir, qui constitue la volupté même. Le désir métaphysique a une autre intention il désire l’au-delà de tout ce qui peut simplement le compléter. Il est comme la bonté le Désiré ne le comble pas, mais le creuse.
Générosité nourrie par le Désiré et, dans ce sens, relation qui n’est pas disparition de la distance, qui n’est pas rapprochement, ou, pour serrer de plus près l’essence de la générosité et de la bonté, rapport dont la positivité vient de l’éloignement, de la séparation, car elle se nourrit, pourrait-on dire, de sa faim. Eloignement qui n’est radical que si le désir n’est pas la possibilité d’anticiper le désirable, s’il ne le pense pas au préalable, s’il va vers lui à l’aventure, c’est-à-dire comme vers une altérité absolue, inanticipable, comme on va à la mort. Le désir est absolu, si l’être désirant est mortel et le Désiré, invisible. L’invisibilité n’indique pas une absence de rapport; elle implique des rapports avec ce qui n’est pas donné, dont il n’y a pas idée. La vision est une adéquation entre l’idée et la chose : compréhension qui englobe. L’inadéquation ne désigne pas une simple négation ou une obscurité de l’idée, mais en dehors de la lumière et de la nuit, en dehors de la connaissance mesurant des êtres, la démesure du Désir. Le Désir est désir de l’absolument Autre. En dehors de la faim qu’on satisfait, de la soif qu’on étanche et des sens qu’on apaise, la métaphysique désire l’Autre par-delà les satisfactions, sans que, par le corps aucun geste soit possible pour diminuer l’aspiration, sans qu’il soit possible d’esquisser aucune caresse connue, ni inventer aucune caresse nouvelle. Désir sans satisfaction qui, précisément, entend l’éloignement, l’altérité et l’extériorité de l’Autre. Pour le Désir, cette altérité, inadéquate à l’idée, a un sens. Elle est entendue comme altérité d’Autrui et comme celle du Très-Haut. La dimension même de la hauteur [2] est ouverte par le Désir métaphysique. Que cette hauteur ne soit plus le ciel, mais l’invisible, est l’élévation même de la hauteur et sa noblesse. Mourir pour l’invisible voilà la métaphysique. Mais cela ne veut pas dire que le désir puisse se passer d’actes. Seulement ces actes ne sont ni consommation, ni caresse, ni liturgie.
Folle prétention à l’invisible alors qu’une expérience aiguë de l’humain enseigne, au vingtième siècle, que les pensées des hommes sont portées par les besoins, lesquels expliquent société et histoire; que la faim et la peur peuvent avoir raison de toute résistance humaine et de toute liberté. De cette misère humaine de cet empire que les choses et les méchants exercent sur l’homme de cette animalité il ne s’agit pas de douter. Mais être homme, c’est savoir qu’il en est ainsi. La liberté consiste à savoir que la liberté est en péril. Mais savoir ou avoir conscience, c’est avoir du temps pour éviter et prévenir l’instant de l’inhumanité. C’est cet ajournement perpétuel de l’heure de la trahison infime différence entre l’homme et le non-homme qui suppose le désintéressement de la bonté, le désir de l’absolument Autre ou la noblesse, la dimension de la métaphysique.