Página inicial > Fenomenologia > Jaspers: § 2. A Questão da Essência do Homem (e)

Jaspers: § 2. A Questão da Essência do Homem (e)

quarta-feira 23 de março de 2022

Psicopatologia Geral
Psicologia Compreensiva, Explicativa e Fenomenologia
Karl Jaspers  
Trad. Dr. Samuel Penna Reis
Atheneu. 1979

§ 2. A Questão da Essência do Homem

e) Resumindo em poucas palavras nossas discussões:

I. Princípios relativos ao existir humano

1. O homem não é, apenas, uma espécie animal, nem uma espécie de criatura puramente espiritual que não conhecemos e que, em tempos passados, se julgava angélica. Antes, pelo contrário, é único, participando da série dos entes vivos e da série dos anjos, pertencente a ambas e de ambas diverso. Tem sua posição própria que a teologia e a filosofia sempre afirmaram e que só nos tempos modernos se negaram. Nas manifestações de sua existência, vai até a animalidade; na base de sua essência, até a divindade, como transcendência pela qual se sabe dado em liberdade.

2. O homem é o abrangente que nós somos: existência, consciência em geral, mente — razão e existência. E é a via que leva à unidade de todas as modalidades desses abrangentes.

3. O homem é possibilidade aberta, incompleta e incompletável. Daí ser sempre mais alguma coisa e outra coisa que não aquilo que realizou por si.

4. O homem realiza-se em determinados fenômenos, atos, pensamentos, símbolos; e volta-se sempre, por sua vez, contra cada um destes fenômenos que se tornaram determinados, contra suas próprias determinações. Quando já não rompe as formas fixadas, passa a nivelar-se a uma espécie de medianidade e abandona o rumo do existir humano.

5. Opõem-se à ascensão do homem, em seu íntimo, três formas de resistência: 1. A matéria que lhe é interior, sentimentos, estados, instintos, alguma coisa dada que tende a subjugá-lo. 2. Um processo permanente de encobrimento e distorção de tudo quanto sente, pensa, quer. 3. Uma vacuidade da não-realização. — Contra estes três tipos de resistência ele luta: Como material, submete-se a um trabalho interno, conformando, disciplinando, praticando* habituando-se. Ao processo de ocultamento e distorção opõe o esclarecimento, a claridade e luminosidade interna. Procura esquivar-se à vacuidade pela ação interna, isto é, estabelecendo para si mesmo bases da decisão, que, repetindo-se, pode fixar-se, mesmo em tempos difíceis.

II. Princípios relativos ao sentido e à possibilidade do conhecimento do existir humano

1. O que o homem é mostra-se em três níveis: a) Nos rumos de sua investigabilidade objetiva, como criatura que aparece no mundo, mostra-se como realidade empírica, b) Nas modalidades do abrangente, esclarece-se pelas suas origens, c) Na unidade — procurando e falhando ¦— torna-se consciente de onde provém t para onde vai. Só no primeiro nível é que é acessível à investigação científica.

2. Para fins de investigação empírica, o homem é construída, teoricamente, em fatores, partes, elementos, componentes, funções, forças, nas quais consiste. Se, além disso, é possível um esclarecimento filosófico do existir humano, pode o mesmo constituir um fundo para aquele conhecimento sempre particular do existir humano empírico, sem ser, porém, conhecimento em si mesmo. Tratar as ideias esclarecedoras como conhecimento objetivo é distorção básica da filosofia em pseudo  -ciência.

3. Ao passo que em parte alguma do mundo há para o nosso conhecimento um existir em si, o homem está certo de si mesmo. Diversamente do cosmo inorgânico, cujo conhecimento ainda paira, em princípio, tanto quanto a psicologia do homem (embora mais unitário e mais sistemático do que esta última, sob o ponto de vista metodológico), o homem tem sempre consciência de si mesmo, ultrapassando qualquer conhecimento que adquira de si. Ao passo que o conhecimento esbarra em limites de todos os lados, limites nos quais já coisa alguma se pode apreender, dá-se que, quando nos conhecemos a nós mesmos, esbarramos em limites nos quais, com base noutra origem, alguma coisa é acessível, que será a realidade ignorada.

4. Quando investigamos o homem, não somos apenas espectadores de alguma coisa que nos é estranha, mas seres humano mesmos. Somos nós próprios que investigamos, quando investigamos o outro. Não interessa somente saber de umas tantas coisas, mas o fato é que só ficamos sabendo pelo nosso próprio existir humano. A existência em si do homem está sensivelmente presente quando chegamos ao limite da cognoscibilidade, tanto naquele que conhece quanto naquele que é conhecido.

O limite entre o saber científico e o esclarecimento filosófico está naquele ponto em que o objeto já não se menta como realidade psicológica, e sim torna-se meio de uma transcendência pare o inobjetivo. É, por exemplo, o limite entre a psicologia compreensiva e o esclarecimento existencial.

5. O homem como todo nunca se torna objeto do conhecimento. Não há sistema do existir humano. Seja qual for a totalidade em que pensemos apreender o homem, este nos escapa.

Todo conhecimento do homem ocorre em aspectos particulares; de cada vez, mostra uma realidade, não, porém, a realidade do homem; é flutuante, não definitivo.

6. O homem é sempre mais do que sabe e pode saber de si « do que qualquer outro sabe dele.

7. Homem algum se pode abranger inteiramente; não há um só de que se possa fazer juízo definitivo total. O que é indispensável, praticamente, no trato com os indivíduos e para fins sociais, porque se tem de tomar decisões, vale em tais situações, em tais relações de autoridade; vale para fins de responsabilidade, ma« por si só não representa base que valha para o conhecimento. Por exemplo: eu não posso passar um traço, digamos assim, em baixo de um indivíduo e fazer a soma que me permita conhecê-lo tal qual é. Encarar um ser humano como se fosse um objeto, apreendê-lo no todo pelo conhecimento científico equivale a prejulgar. Daí dizermos: "Prouvera a nós não perder a consciência da inexaustibilidade e da misteriosidade de cada indivíduo psicótico particular, mesmo em relação aos casos que pareçam os mais corriqueiros." [Z Neur., vol. 1, pág. 568 (1910)].


Ver online : Karl Jaspers