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Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica

Husserl (IFP1:60-63) – O empirismo assenta num preconceito

§ 19. A identificação empirista entre experiência e ato doador originário

quarta-feira 13 de outubro de 2021

HUSSERL  , Edmund. Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica: introdução geral à fenomenologia pura. Tr. Márcio Suzuki. Aparecida: Ideias & Letras, 2006, p. 60-63

O naturalismo empirista surge, como temos de reconhecer, de motivos altamente dignos de apreço. Ele é um radicalismo cognitivo-prático, que [61] pretende fazer valer, contra todos os “ídolos”, todos os poderes da tradição e superstição, toda espécie grosseira ou refinada de preconceito, o direito da razão autônoma, como única autoridade em questões de verdade. Formular racional ou cientificamente juízos sobre coisas significa, porém, orientar-se pelas coisas mesmas, isto é, voltar dos discursos e opiniões às coisas mesmas, interrogá-las na doação originária de si e pôr de lado todos os preconceitos estranhos a elas. Seria apenas uma outra maneira de exprimir o mesmo — assim opina o empirista — dizer que toda ciência tem de partir da experiência, que seu conhecimento mediato tem de se fundar na experiência imediata. Ciência autêntica e ciência empírica são, pois, a mesma coisa para o empirista. Que mais seriam as “ideias”, as “essências” em oposição aos fatos — senão entidades escolásticas, fantasmas metafísicos? O maior mérito da moderna ciência da natureza foi justamente ter libertado a humanidade de tais assombrações filosóficas. Toda ciência tem de lidar apenas com o que é efetivamente real, passível de experimentação. O que não é efetividade, é imaginação, e uma ciência de imaginações é justamente ciência imaginária. Imaginações poderão naturalmente ser admitidas como fatos psíquicos, elas fazem parte da psicologia. Mas que de imaginações — como se tentou mostrar no capítulo anterior — mediante uma assim chamada visão de essência nelas fundada devam resultar dados novos, “eidéticos”, objetos que são irreais, isso — assim concluirá o empirista — não passa de “empolgação ideológica”, de “recaída na escolástica” ou naquela espécie de “construções especulativas a priori  ” com que o idealismo da primeira metade do século XIX, alheio à ciência natural, tanto obstruiu a ciência autêntica.

Tudo, porém, que o empirista diz aí repousa sobre mal-entendidos e preconceitos — não obstante o motivo que originalmente o guia ser bom e de boa intenção. O erro de princípio da argumentação empirista reside em que a exigência fundamental de retorno às coisas mesmas é identificada ou confundida com a exigência de fundação de todo conhecimento pela experiência. Com a compreensível restrição naturalista do âmbito das “coisas” cog-noscíveis, é ponto pacífico para ele que a experiência é o único ato que dá as próprias coisas. Não é, entretanto, ponto pacífico que coisas sejam coisas naturais., que, no sentido habitual, efetividade seja efetividade em geral, e que aquele ato doador originário que chamamos experiência se refira somente à efetividade natural. Efetuar identificações e tratá-las como se supostamente fossem óbvias significa, aqui, colocar inconsideradamente de lado diferenças dadas na mais clara evidência. A pergunta é, pois, de que lado estão os preconceitos? A autêntica ausência de preconceitos não exige simplesmente recusa dé “juízos estranhos à experiência”, mas somente quando o sentido próprio [62] dos juízos exija fundação na experiência. Afirmar incontinente que todos os juízos admitem, e mesmo exigem, fundação na experiência, sem ter antes submetido a estudo a essência dos juízos em todas as suas variedades fundamentalmente diferentes e sem ter antes ponderado se essa afirmação não é, afinal, um contra-senso: eis uma “construção especulativa a priori”, que não se tornará melhor porque desta vez provém do lado empirista. Ciência autêntica e autêntica ausência de preconceitos, que lhe é própria, exigem, como alicerce de todas as suas provas, juízos imediatamente válidos como tais, os quais tiram sua validez diretamente de intuições originariamente doadoras. Estas, porém, são tais quais as prescreve o sentido desses juízos, ou melhor, a essência própria dos objetos e do estado-de-coisas submetido ao juízo. As regiões fundamentais de objetos e, correlativamente, os tipos regionais de intuições doadoras, os tipos correspondentes de juízos e, finalmente, as normas noéticas, que exigem, para a fundação de juízos desses tipos, exatamente esta e nenhuma outra espécie de intuição — tudo isso não pode ser postulado ou decretado de cima para baixo, mas apenas constatado com evidência, o que significa mais uma vez: mostrar em intuição doadora originária e fixar por juízos que se ajustam fielmente àquilo que nela é dado. Quer-nos parecer que é assim, e não de outro modo, que se apresenta o procedimento verdadeiramente livre de preconceitos e puramente isento.

O “ver” imediato, não meramente o ver sensível, empírico, mas o ver em geral, como consciência doadora originária, não importa qual seja a sua espécie, é a fonte última de legitimidade de todas as afirmações racionais. Ela só tem função legitimadora, porque é e enquanto é doadora originária. Se vemos um objeto em plena clareza, se efetuamos a explicação e a apreensão conceituai fundados puramente na visão e no âmbito do que se apreende vendo efetivamente, então vemos (numa nova maneira de “ver”) como é a índole do objeto, e o enunciado que o exprime fielmente ganha sua legitimidade. Ao perguntar pelo porquê desta, seria contra-senso não conferir valor algum ao “eu o vejo” — como mais uma vez vemos com clareza. Acrescente-se aqui, para evitar possíveis mal-entendidos, que isso de resto não exclui que, sob certas circunstâncias, uma visão possa conflitar com outra e, igualmente, uma afirmação legítima com outra. Pois não está implícito aí que a visão não seja fundamento de legitimidade, da mesma maneira que o sobrepujamento de uma força por outra não quer dizer que aquela não seja uma força. Mas o que se diz é que talvez numa certa categoria de intuições (e isso diz respeito justamente às intuições da experiência sensível) a visão é, por sua essência, “imperfeita”, que ela pode, por princípio, ser confirmada ou infirmada, e que, assim, uma afirmação que tenha seu fundamento de [63] legitimidade imediato e, por isso, autêntico na experiência, terá no entanto de ser abandonada no curso da experiência, em virtude de uma legitimação contrária que a supere e suprima.


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