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Eu Sou a Verdade

Henry (ESV) – O Arquifilho

A autogeração da Vida como geração do Primeiro Vivente

domingo 12 de setembro de 2021

HENRY, Michel. Eu Sou a Verdade. Por uma filosofia do cristianismo. Tr. Carlos Nougué. São Paulo: É Realizações, 2015

Dado que o processo de autogeração da Vida não pode cumprir-se sem gerar em si esse Filho como o modo mesmo segundo o qual esse processo se cumpre, o Filho é tão antigo quanto o Pai; como ele, o Filho se encontra no começo. Essa é a razão por que nós chamamos a este Filho ARQUIFILHO, não apenas Filho originário – não aquele que, como numa família humana, veio em primeiro lugar, [86] antes de seus irmãos e irmãs, mas Aquele que habita a Origem, o Começo mesmo – Aquele que é engendrado no próprio processo pelo qual o Pai se engendra a si mesmo. Dado que o processo de autogeração da Vida é o de sua autorrevelação, então o modo segundo o qual esta se fenomenaliza em sua Ipseidade essencial, a saber, o Filho, é a própria revelação de Deus mesmo, seu Logos – não o Logos grego cuja fenomenalidade é a do mundo, mas o Logos da Vida cuja fenomenalidade é a substância fenomenológica desta própria vida, seu estreitamento patético, sua fruição. Dado que não há senão uma só Vida e que assim o processo em que ela se engendra eternamente a si mesma é único, único também é o que é engendrado nela como o modo deste autoengendramento, Único o Filho como o Verbo a que é idêntico, na medida em que o autoengendramento da Vida é sua autorrevelação. MHESV IV


Que o processo de autorrevelação da Vida engendre em si o Primeiro Vivente enquanto Arquifilho, aí está o que nos põe diante do conceito de um Arquinascimento. Trata-se de um nascimento que não se produz no interior de uma vida preexistente, mas que pertence a título de elemento coconstituinte ao surgimento desta própria vida, no processo, dizemos nós, de sua autogeração. A geração do Arquifilho no processo de autogeração da Vida absoluta, aí está o que designa seu Arquinascimento – um nascimento contemporâneo do surgimento da própria vida, implicado nela, um com ela. A este Arquifilho, a seu Arquinascimento e, igualmente, ao processo de autogeração da Vida absoluta, damos ademais o qualificativo de “transcendental”, e isso para dissociá-los definitivamente de todo processo natural ou mundano. A razão positiva desta qualificação, todavia, só aparecerá mais tarde. O conceito de Arquinascimento transcendental não convém senão ao Arquifilho, e só se aplica com todo o rigor a ele. Seu poder de inteligibilidade repercute, no entanto, bem além de sua esfera inicial de pertença. Do conceito de Arquifilho e do de seu Arquinascimento, o conceito de nascimento recebe uma significação imprevista e, todavia, a única [87] verídica – significação que vem subverter o conceito corrente de nascimento a ponto de relegá-lo à insignificância. MHESV IV
Estranho à história e mais geralmente à verdade do mundo, o “conteúdo” do cristianismo consiste numa rede de relações transcendentais, acósmicas, pois, e invisíveis, que podemos formular como se segue: relação entre a Vida absoluta e o Primeiro Vivente – entre o Pai e o Filho, entre Deus e Cristo; relação entre a Vida absoluta e todos os viventes – entre o Pai e os filhos, entre Deus e os “homens”; relação entre o Filho e os filhos, entre o Cristo e os viventes; relação [90] dos filhos, dos viventes, dos homens entre si – o que em filosofia se chama intersubjetividade. Um critério decisivo para o exame rigoroso dessas relações é o de sua eventual reversibilidade. Assim, a entre o Pai e o Arquifilho é reversível, mas a entre o Pai ou o Arquifilho e os filhos não o é. No plano da intersubjetividade, da relação dos filhos entre si, esta questão não tem sentido. Todas essas relações, no entanto, apresentam um traço comum, maciço, que as arranca das representações habituais e as determina de alto a baixo: são todas relações não intencionais. Positivamente: todas põem a Vida em jogo. Não só os termos dessas relações implicam, a cada vez, a Vida na medida em que se trata da relação da vida com o vivente ou dos viventes entre si. Mas é a própria relação constituída enquanto relação pela Vida que extrai sua essência dela. MHESV IV
Quem é aquele então cujas palavras sobre si mesmo, em ruptura com tudo o que sabemos do mundo, permanecem inconcebíveis sob a luz deste último? Uma única resposta: é com a condição de escapar, com efeito, às estruturas fenomenológicas do mundo que Cristo pode dizer de si tudo o que diz. Só sua condição de Arquifilho transcendental cogerado na autogeração da Vida absoluta é suscetível de legitimar asserções que não convêm com todo o rigor senão a Deus. E é exatamente isso o que temos sob os olhos, notadamente em João. A autodesignação de Cristo como o Filho de Deus não faz, com efeito, senão comentar sua condição de Arquifilho tal como uma fenomenologia radical da vida pode estabelecer, ao passo que, aplicada a um homem deste mundo e vindo dele, ela aparece simplesmente absurda e demencial, como de fato apareceu aos olhos dos religiosos de seu tempo e como apareceria ainda mais aos homens de hoje se porventura lhes ocorresse a ideia de lhe prestar atenção. A que ponto a autodesignação de Cristo como Arquifilho não é senão a transcrição imediata de sua condição é o que é possível estabelecer, ponto por ponto. Surge então uma série de tautologias fundamentais, as tautologias fundadoras da vida a que chamaremos também implicações decisivas do cristianismo e que se trata aqui de colocar na ordem que as torna compreensíveis. Ei-las: [94] “Nasci” (João 18,37). Se, como estabeleceu a fenomenologia do nascimento, este só é possível na vida e em nenhum outro lugar, Cristo, nesta última declaração a Pilatos, já situou o gênero de verdade onde se cumpre seu Aparecimento original. Esta verdade é a da vida. Vir à vida, no entanto, como a fenomenologia do nascimento o mostrou igualmente, não significa inicialmente vir à vida na condição de vivente, mas vir à vida a partir dela e deste modo somente. Em outras palavras: vir à vida a partir deste autoengendramento da Vida absoluta que é o Pai. Nos dizeres de Cristo sobre si mesmo está a afirmação mais forte, mais categórica, a que será reiterada sem cessar, com afinco: “Saí de Deus e dele venho” (João 8,42). MHESV IV
Se, pois, afinal de contas, somente Cristo pode testemunhar sobre si mesmo, não o pode fazer enquanto homem, mas somente enquanto sabe de onde veio – em seu Arquinascimento transcendental. É o Arquifilho transcendental que dá testemunho sobre si mesmo, sobre sua condição de Arquifilho, e ele só o pode fazer em função dessa condição que é a sua – que é de trazer Deus permanentemente em si. Assim, a estrutura do testemunho que Cristo dá sobre si mesmo é tripla: como testemunho que provém do Arquifilho, que é dado sobre o Arquifilho, e cuja possibilidade reside na condição de Arquifilho. MHESV IV
“Testemunho” no contexto joanino quer dizer a mesma coisa que “verdade”. Dar testemunho da verdade que é a Verdade que dá testemunho de si mesma. E ela o faz enquanto é a Vida e enquanto a Vida é autorrevelação, o que se revela originariamente a si – em linguagem joanina diríamos: o que testemunha sobre si. Nas palavras de Cristo sobre si mesmo, não é, é verdade, da autorrevelação da Vida absoluta que se trata, ao que parece, mas do testemunho de Cristo sobre si mesmo – testemunho do Arquifilho, dizemos nós, sobre sua condição de Arquifilho, e tornada possível por esta. Esta condição: a de ser gerado na autogeração da Vida absoluta como o Primeiro Vivente na Ipseidade essencial da qual a vida se autoengendra eternamente – de modo tal, que esta geração do Primeiro Vivente não é diferente da autogeração da Vida eterna, de sua autorrevelação como revelação de Deus mesmo, como sua Verdade, como seu testemunho. “Nasci […] para dar testemunho da verdade” (João 18-37). MHESV IV

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