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Eu Sou a Verdade

Henry (ESV:27-29) – Tempo

Excertos dos capítulos I e II

segunda-feira 13 de setembro de 2021

HENRY, Michel. Eu Sou a Verdade. Por uma filosofia do cristianismo. Tr. Carlos Nougué. São Paulo: É Realizações, 2015

A autoexteriorização da exterioridade do “lá fora”, a que chamamos mundo, não é uma afirmação metafísica ou especulativa de natureza que deixe o leitor incerto ou duvidoso a seu respeito. Dizer que o mundo é verdade é dizer que ele torna manifesto. Como torna ele manifesto, como se cumpre esta pura manifestação, é o que sabemos agora. Ora, acontece que esta autoexteriorização da exterioridade em que se forma o horizonte de visibilidade do mundo, seu “lá fora”, tem outro nome, que conhecemos ainda melhor: [29] chama-se TEMPO. TEMPO e mundo são idênticos, designam este único processo em que o “lá fora” se autoexterioriza constantemente. Tal processo deve ser situado em dois níveis: em si mesmo, ali onde ele é não literalmente senão a formação de um “mundo”, a vinda lá fora deste horizonte na tela do qual todas as coisas se mostram a nós. Segundo a experiência irrefletida mas constante que temos dele, este horizonte se descobre como o do TEMPO. Sem cessar se abre diante de nós um “futuro” em que tomam lugar as coisas e os acontecimentos para os quais nós nos projetamos: ir ao trabalho, à estação, etc.; um “presente” em que se encontra nosso meio imediato: o quarto, a mesa sobre a qual escrevemos; um “passado” para o qual enfim desliza tudo o que acaba de estar presente para nós: esses pensamentos que acabamos de ter ao escrever. O horizonte do mundo se desdobra assim diante de nós em forma de três dimensões temporais; ele é constituído por elas. Essas plagas de exterioridade, a que Heidegger chama três “ek-stases” temporais, não são fixas, mas deslizam umas para as outras, do futuro para o presente e para o passado, constituindo assim um fluxo contínuo que é o do decorrer do TEMPO. É este horizonte tridimensional do TEMPO o que modela a visibilidade do mundo, sua verdade. É sobre o fundo deste horizonte que se torna visível, como temporal, tudo o que se mostra a nós. MHESV I

Esta vinda ao aparecer como vinda ao mundo que, segundo a fenomenologia, devia conferir o ser a tudo o que se mostra, eis que lho retira, fazendo desse ser seu contrário, uma espécie de nada de si mesmo, privando cada coisa de sua substância para no-la entregar, mas em forma de um aparecimento estranho à realidade e antes de tudo a essa realidade que devia ser a sua e que ela só pode fazer ver destruindo-a. Esse fazer ver que destrói, que consiste no aniquilamento de tudo o que ele exibe, não o deixando subsistir senão com o aspecto de um aparecimento vazio, é o TEMPO. O TEMPO é a passagem, o deslizamento em forma de deslizamento para o nada. Mas o TEMPO não é esse aniquilamento incessante por efeito de uma propriedade que deveríamos sofrer sem compreender, ao modo de uma fatalidade misteriosa. E porque a vinda à aparência é aqui a vinda lá fora que, lançando cada coisa fora de si e arrancando-a de si mesma, ela o precipita no nada. E a maneira de fazer aparecer enquanto extrai sua essência do “fora de si” que é o aniquilamento. Como o TEMPO passa! Já chegou o outono! Meu candeeiro já se apagou! Mas o TEMPO não é verdadeiramente um deslizamento do presente para o passado, segundo análises célebres que se unem ao senso comum. No TEMPO não há presente, nunca houve e nunca haverá. No TEMPO as coisas veem à aparência, mas, na medida em que este aparecimento consiste na ida ao lá fora, as coisas não surgem na luz desse “fora” senão arrancadas de si mesmas, esvaziadas de seu ser, já mortas. E porque seu poder de tornar manifesto reside no “fora de si” que o TEMPO aniquila tudo o que ele exibe. Mas o modo de tornar manifesto do TEMPO é o do mundo. E o modo de fazer ver do mundo, é a verdade do mundo que destrói. [31] MHESV I

A “verdade do mundo” não designa, pois, nenhum julgamento feito do alto a respeito do mundo e de tudo o que se mostra nele, a respeito do curso das coisas. Porque a verdade do mundo é sua maneira de fazer aparecer cada coisa, ela habita esta como seu modo de aparecer precisamente e de se perfilar em nossa experiência, de se dar a nós e de nos tocar. A verdade do mundo é a lei do aparecimento das coisas. Segundo esta lei, dando-se as coisas fora de si mesmas, despojando-se de si mesmas, esvaziando-se de si mesmas em seu próprio aparecimento, não dão nunca sua própria realidade, mas somente a imagem dessa realidade que se aniquila no momento em que elas se dão. Elas se dão de tal modo que seu aparecimento é seu desaparecimento, o aniquilamento incessante de sua realidade na imagem desta. Eis porque não há presente no TEMPO: porque essa vinda ao aparecimento que define o próprio presente enquanto presente fenomenológico, enquanto apresentação da coisa, destrói a realidade dessa coisa nessa própria apresentação, fazendo dela um presente-imagem homogêneo tanto à imagem do futuro quanto à imagem do passado. A vinda ao presente como vinda de um futuro que desliza para o passado não é, assim, nada além da modalização de um Imaginário – essa modalização da imagem do mundo que é o próprio TEMPO enquanto TEMPO do mundo, enquanto esse desdobramento do “fora de si” que é a verdade do mundo. MHESV I

Dizíamos que a verdade do mundo é indiferente ao que ela ilumina: nuvens, rostos, sorrisos, manuscritos, acontecimentos de uma história. Do aparecimento do mundo, com efeito, nunca se pode deduzir o que aparece a cada vez nele. Mas o aparecer no mundo confere a tudo o que desse modo aparece o ser lançado fora de si, esvaziado de sua realidade, reduzido a uma imagem – uma vez que é este modo de ser lançado fora de si o que constitui aqui o aparecimento como tal. Tudo o que aparece no mundo é submetido a um processo de desrealização principiai, o qual não marca a passagem de um estado primitivo de realidade à abolição desse estado, mas coloca a priori tudo que desse modo aparece num estado de irrealidade [32] original. Não há inicialmente uma coisa que estivesse presente e que depois, a seguir, passasse. Desde o início esta coisa passava. Quando ela ainda não era senão futuro, já atravessava as fases sucessivas desta existência futura; através delas, sem fazer parada no presente, ela se propulsava para seu nada no passado. Em nenhum momento ela cessou de ser esse nada. Se tudo nos aparecesse desse modo, se não existisse outra verdade além da do mundo, não haveria realidade em parte alguma, mas somente, em todas as partes, a morte. Destruição e morte não são obra do TEMPO a exercer-se posteriormente sobre alguma realidade preexistente a seu golpe; elas atingem a priori tudo o que aparece no TEMPO, como a própria lei de seu aparecimento – tudo o que se mostra na verdade do mundo, como a lei mesma desta verdade. É esta conexão essencial que liga destruição e morte ao próprio aparecimento do mundo, ao que ele chama sua figura, que tem em vista o Apóstolo neste resumo fulgurante: “Pois passa a figura deste mundo” (1 Coríntios 7,31). Toda forma de verdade, salvo a verdade do cristianismo. É a ela que se trata de elucidar e de compreender agora, em sua estranheza radical com respeito a tudo a que o senso comum, a filosofia ou a ciência chamam e continuam a chamar “verdade”. [33] MHESV I

Aliás, quando em nossa primeira aproximação ao cristianismo essas questões sobre a verdade histórica dos acontecimentos relatados nos Evangelhos ou, tendo desaparecido esses acontecimentos, sobre a autenticidade dos textos que os relatam foram evocadas de modo sucinto, não apareceu que a verdade de uns e de outros, dos acontecimentos e dos textos, remetia imediatamente a essa essência mais original da verdade do mundo e à natureza desta verdade? E porque no TEMPO do mundo toda realidade particular se apaga e desaparece, é porque a linguagem por sua vez deixa fora de si essa realidade e, assim como o TEMPO, só se edifica sobre sua negação, que a verdade do cristianismo aparecia tão precária e como que desvanecida. Afinal, não são os fatos, as coisas que são precárias, fugidias como os anos, mas seu modo de aparecimento. E a verdade fenomenológica pura que, enquanto verdade do mundo, determina toda forma particular de verdade para nós, a da história, por exemplo, ou a da linguagem, como uma espécie de aparecimento evanescente, roído pelo nada. MHESV II


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