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Gadamer (VM): hermenêutica bíblica

quarta-feira 24 de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

A pressuposição da hermenêutica bíblica — na medida em que a hermenêutica bíblica interessa enquanto pré-histórica da hermenêutica moderna das ciências do espírito — é o princípio escriturístico da Reforma. O ponto de vista de Lutero   é mais ou menos o seguinte: a Sagrada Escritura é sui ipsius interpres. Não se tem necessidade da tradição para lograr uma compreensão adequada dela, nem tampouco de uma técnica interpretativa ao estilo da antiga doutrina do quádruplo sentido da Escritura, já que sua literalidade possui um sentido unívoco, que deve ser intermediado por ela própria, o sensus literalis. Em particular, o método alegórico, que até então parecia indispensável para alcançar uma unidade dogmática na doutrina bíblica, só é legítimo quando a intenção alegórica se encontra dada na própria Escritura. Por exemplo, é correto aplicá-la quando se trata de parábolas. Por outro lado, o Antigo Testamento não deve querer ganhar sua relevância especificamente cristã, através de uma interpretação alegórica. Deve ser entendido ao pé da letra, e justamente ao ser entendido assim e ao se reconhecer nele o ponto de apoio da lei, que a ação [179] salvadora de Cristo suspende, é que ele adquire um significado cristão. 951 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 1.

Isso é algo que a interpretação nunca deve perder de vista. Mesmo na interpretação científica do teólogo, tem-se de manter a convicção de que a Sagrada Escritura é a mensagem divina da salvação. Portanto, sua compreensão não pode ser somente a investigação científica de seu sentido. Em certa ocasião, Bultmann   escreveu que "a interpretação dos escritos bíblicos não está submetida a condições diferentes das da   compreensão de qualquer outra literatura". Não obstante, o sentido dessa frase é ambíguo. Do que se trata é de se saber se toda literatura não está submetida a bem outras condições da compreensão das que, de maneira puramente formal   e geral, devem ser satisfeitas face a qualquer texto. O próprio Bultmann destaca que — toda compreensão pressupõe uma relação vital do intérprete com o texto, assim como uma relação prévia com o tema mediado pelo texto. A essa pressuposição hermenêutica é que dá o nome de pré-compreensão, porque evidentemente não é produto do procedimento compreensivo, já que é anterior a ele. Hofmann, a quem Bultmann cita ocasio [337] ocasionalmente, escreve que uma hermenêutica bíblica pressupõe sempre uma relação com o conteúdo da Bíblia. 1805 VERDADE E MÉTODO SEGUNDA PARTE 2.

Antigamente, quando na filosofia se refletia sobre os fundamentos das ciências do espírito, mal se falava de hermenêutica. A hermenêutica era uma simples disciplina auxiliar, um cânon de regras que tinha como objeto o trato com textos. Em todo caso, ainda se diferenciava por levar em conta e contemplar o modo específico de determinados textos, por exemplo, como hermenêutica bíblica. Havia ainda uma disciplina auxiliar um pouco diferente, também chamada hermenêutica, na figura da hermenêutica jurídica. Continha regras para a complementação de lacunas no direito codificado, tendo, portanto, caráter normativo. A problemática filosófica central que se encontrava inserida no factum das ciências do espírito — em analogia   para com as ciências da natureza e sua fundamentação através da filosofia kantiana — era abordada, ao contrário, na teoria do conhecimento. A crítica da razão pura de Kant   justificou os elementos apriorísticos do conhecimento experimental das ciências da natureza. Assim, convinha que se implementasse uma justificação teórica correspondente para o modo de conhecimento das ciências históricas. Em sua Historik, J.G. Droysen projetou uma metodologia das ciências históricas, exercendo grande influência. Essa metodologia visava uma plena correspondência com a tarefa kantiana. Wilhelm Dilthey  , que iria desenvolver a verdadeira filosofia da escola histórica, perseguiu desde o princípio e conscientemente a tarefa de uma crítica da razão histórica. Nesse sentido, também sua autoconcepção possuía um cunho epistemológico. Sabe-se que para ele o fundamento epistemológico das chamadas ciências do espírito repousava em uma psicologia "descritiva e analítica", purificada da alienação das ciências da natureza. Na execução dessa tarefa, Dilthey acabou superando seu originário ponto de partida epistemológico, tendo sido ele a fazer surgir o momento filosófico da hermenêutica. É verdade que nunca renunciou ao fundamento epistemológico buscado na psicologia. A base sobre a qual procurou erigir o edifício do universo histórico das ciências do espírito continuou sendo o fato de as vivências serem caracterizadas pelo tomar consciência de si mesmas, de modo que ali não surge nenhum problema a respeito do conhecimento do outro, do não-eu, como acontece na base do questionamento kantiano. O universo histórico, porém, não é um nexo de vivências nos [388] moldes da autobiografia, onde a historia se apresenta em função da interioridade da subjetividade. Por fim, o nexo histórico deve ser compreendido como um nexo de sentido que supera fundamentalmente o horizonte vivencial do indivíduo. E como um texto grande e estranho, para cuja decifração precisa da ajuda de uma hermenêutica. É assim que Dilthey procura a passagem da psicologia para a hermenêutica, a partir da constringência da própria coisa em questão. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.

A afirmação de que a hermenêutica jurídica pertence ao nexo de problemas de uma hermenêutica geral não é evidente por si. De fato, nela não está em questão uma reflexão de caráter metodológico, como é o caso da filologia e da hermenêutica bíblica. Ela trata propriamente de um princípio jurídico subsidiário. Sua tarefa não é compreender enunciados jurídicos vigentes, mas encontrar o direito, isto é, interpretar as leis de tal modo que a ordem do direito impregne toda a realidade. Visto que a interpretação tem aqui uma função normativa, um autor como Betti pode separá-la totalmente da interpretação filológica, e mesmo daquela compreensão histórica, cujo objeto é de natureza jurídica (constituições, leis etc). Não se pode discutir o fato de a interpretação da lei, no sentido jurídico, acabar sendo uma atividade criadora de direito. Os diversos princípios que devem ser aplicados no fazer — como, por exemplo, o princípio da analogia, o princípio da complementação de lacunas da lei ou finalmente o princípio produtivo, implicado ele próprio na sentença jurídica, isto é, [400] dependente do caso jurídico concreto — não representam apenas problemas metodológicos, mas penetram profundamente e atingem a própria matéria do direito. VERDADE E MÉTODO II ANEXOS 27.