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TRANSCENDÊNCIA DO MUNDO

Ferreira da Silva (2010:121-125) – o "ser" in-fuso

Diálogo, São Paulo, n. 3, mar. 1956, p. 29-34

domingo 10 de outubro de 2021

[FERREIRA DA SILVA  , Vicente. Transcendência do Mundo. São Paulo: É Realizações, 2010, p. 121-125]

Por vezes o pensamento se aconchegou ao conceito de que muito acima do particularismo ciumento e excludente das coisas finitas se elevaria o princípio imparcial e majestático do Ser. O Ser seria a justiça por sobre a injustiça cavilosa e mal-querente dos entes individuais. O Ser seria efusão e não infusão. Uma vontade que se quisesse unicamente a si mesma, uma paixão de si, não seria qualidade atribuível ao fundo secreto das coisas. Não poderíamos, entretanto, abandonando uma certa representação moralizante do Ser, pensá-lo também como Ser-para-si, como um querer-si-mesmo, como Ser in-fusivo ou, como diria Hegel  , “um todo refletido em si mesmo”? Com efeito, eis como o grande filósofo define a norma de uma tal realidade: – “o Ser-para-si mantém um comportamento polêmico e negativo em relação ao outro limitante e através dessa Negação constitui-se num todo refletido em si mesmo”. Existe, portanto, nessa modalidade de ser um infinito impulso de superação da alteridade, uma intro-versão do outro, uma atração de tudo para o seu próprio campo. Discutindo esse tema alude Hegel à monadologia de Leibniz  , na qual comparece cada mônada como um exemplo desse ser-para-si mesmo. Nesse sistema, a alteridade é superada. Se cada mônada constitui uma força de representação autônoma e negadora [121] da alteridade, Leibniz vê-se compelido a mitigar a introvertência desses pontos metafísicos para explicar a harmonia das representações existentes entre as diversas mônadas. E ao ser-para-si da consciência representativa deve-se adicionar a ideia de uma Mônada Monadorum. De um modo absoluto, na unidade sobrecolhedora do ser-para-si, o Outro só pode se manifestar como “outro superado”, como outro negado, como o momento já assimilado e transformado no interior de uma realidade fechada. A capacidade interna de negação de um modo refletido em-si-mesmo deve ser infinita e ilimitada. Qualquer limite ou alteridade é imediatamente ultrapassado e transformado na própria norma inerente ao sistema e, em consequência, posto em relação com a unidade fechada em si mesma.

Podemos relacionar essas ideias da Lógica com uma passagem da Fenomenologia onde Hegel estuda a construção do mundo físico. O projeto instituidor de um universo de forças naturais não significa uma relação da consciência com o mundo já pronto e do qual ela seria uma simples cópia. O conhecimento é criador e põe unicamente fora de si o seu próprio esboço do mundo, exteriorizando-o num cosmo: “No processo de explicação da consciência encontramo-la justamente numa enorme satisfação de si mesma, porque a consciência, por assim dizer, está em colóquio imediato consigo mesma e frui a sua própria realidade; à primeira vista parece que está em relação com algo de diverso, mas de fato ela está consagrada a si mesma e consigo mesma ocupada”. A exterioridade do mundo é simplesmente uma cisão ou duplicação do igual, da consciência, ou melhor, da nossa consciência que se objetiva e se distingue de si mesma. Essa exterioridade do Universo é, portanto, uma interioridade que se desconhece a si mesma, uma interioridade invertida e posta diante de nós, um desdobramento da interioridade da consciência. Segundo a linguagem característica de Hegel, quando levantamos o véu que encobre esses fenômenos e procuramos observar o que constitui o interior das coisas, essa observação se transforma naquele ato “pelo qual o Interior olha para o Interior”. O mundo objetivo, [122] as leis objetivas dos fenômenos são delineadas pelo nosso próprio espírito, constituindo aquela alteridade superável, aquela diversidade negada e interiorizada que agora se apresenta na figura de um compreensível e dominado. No fundo, a representação das coisas é uma fase da autorrepresentação do sujeito, um olhar para si mesmo no espelho do mundo, espelho que segundo Nietzsche   nos devolve sempre a nossa própria imagem. O “fora” do mundo é portanto um “dentro”, um “dentro” que se esqueceu a si mesmo e se põe como um “fora” independente. É justamente esse autoestranhamento que constitui a ideia de uma natureza, de uma representação naturalística do Universo, da sociedade e da cultura. Perdemos de vista que o conhecimento de uma alteridade natural, seja ela de natureza física ou social, é um aspecto da “interioridade” à qual pertencemos, uma afirmação de nós mesmos no outro.

Um exemplo marcante de uma Unidade interna e refletida em si mesma é a ideia de Mundo, elaborada por Heidegger. Nessa linha de pensamento, o conceito de humano não denota um conjunto numerável ou inumerável de coisas ou entes, ou um espaço finito ou infinito onde essas coisas possam existir. O mundo é para Heidegger aquele horizonte projetivo, aquela “abertura” (Offenheit  ), onde as coisas podem se manifestar. Mas as coisas só se podem manifestar enquanto descobertas ou abertas pelo projeto de um mundo. Para as coisas intramundanas vale o adágio escolástico: non iluminat nisi iluminata. [1] Portanto, para que o ente oferecido se ofereça à nossa consciência é mister uma iluminação que desenhe e ponha a descoberto o manifestável. Iluminar, projetar ou descobrir são conceitos análogos que designam justamente o que Heidegger denomina a fundação do mundo. Vemos, portanto, que o conceito de mundo é transcendente a todos os entes intramundanos, é um puro ímpeto que inaugura o reino do manifestado e que se identifica com esse “abrir”. Em seu livro sobre Kant  , Heidegger nos mostra como esse horizonte unitário do mundo é uma Unidade unificante, um sistema unitário [123] de relações, que só permite que se manifeste o que se compagina com o conjunto do oferecido. A unidade do todo é anterior e condicionadora da parte e a própria parte é o todo numa espécie de concentração pontual. O ente é projetado em seu conjunto e esse conjunto é uma interioridade, um Fürsichsein, um Ser-para-si, uma negação projetiva da alteridade. A interioridade unitiva do mundo une, ao reduzir o diverso à sua própria pauta, ao ver-se a si mesma em todas as coisas, ao aplicar a tudo as suas próprias medidas interpretativas. Em consequência, o mundo é uma unidade interna de relações que só liberta o que se mostra relacionado com o conjunto. Isso se dá no processo infinito de unificação que vai reduzindo o não unificado ao unificado, que vai superando e pondo à disposição um ente homogêneo e concordante com o sistema total.

A interioridade do mundo existe na modalidade do Ser-para-si e mantém, portanto, segundo as palavras de Hegel, “uma atitude polêmica e negadora contra qualquer alteridade limitante”. O outro só se pode manifestar nesse Ser-refletido-em-si-mesmo como outro-superado, como Aufgehobene andere   [2], e esse outro-superado nada mais é do que o ente descoberto segundo a luz do mundo em questão. Essa luz é uma iluminação para dentro, uma luz polêmica, uma luz que ao iluminar, escurece e que ao descobrir, oculta. O oculto é negado e suplantado pelo poder ciumento dessa luz, dessa Fascinação que alça um determinado mundo sobre os escombros de uma iluminação anterior. O mundo é a vitória de um princípio com a exclusão de todos os demais, é o domínio de uma interioridade, como na sequência das gerações divinas da Teogonia de Hesíodo  . Mas o símile vai mais longe e é mais que um símile; é uma descrição da forma original do acontecer.

A Fascinação instituidora do mundo se expressa no poder próprio da mitologia. O Ser-para-si dá luz própria ao mito, é um fenômeno que se manifesta sempre como escolha do mundo, como abertura de uma esfera de possibilidades historiáveis. [124] Aquilo de que não nos damos conta é que nós, homens, na singularidade de nossas características e de nossos poderes, também representamos algo de subordinado a uma interioridade mítica, ou ainda, pertencemos também à progenitura de uma geração divina. A nossa maneira de ver as coisas, a imagem que possuímos das coisas e de nós mesmos é condicionada em tudo e por tudo pela figura específica do universo ao qual pertencemos. O “fora” que examinamos é, no fundo, um “dentro”; a objetividade com a qual concordam os enunciados do nosso conhecimento representa uma esfera previamente “aberta” pela luz do mito. O ente não pode vir a nós e iluminar a nossa consciência cognitiva se não previamente iluminado, isto é, descoberto e projetado por uma transcendência divina. Já tivemos ocasião de demonstrar como a representação do universo físico, regido por leis universais, pode ser deduzida das premissas da concepção cristã da vida. Só pode existir uma natureza enquanto natureza dentro da experiência própria da revelação cristã. A independência da natureza, em toda a sua extensão e infinitude, é também nesse caso um “dentro”, expressando o fechamento de um mitologema, a escolha exclusiva de uma certa representação das coisas, concordante com as finalidades supremas delineadas pela imaginação prototípica.


Ver online : Vicente Ferreira da Silva


[1Em linhas gerais, “não iluminam, mas são iluminadas”. (N. O.)

[2O outro-superado. (N. O.)