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Sempre o Mesmo acerca do Mesmo.

Eudoro de Sousa (HCSM:196-203) – A Religião Grega

Uma resposta ao segundo questionário de Ordep

sábado 9 de outubro de 2021

Nada nos constrange a desistir, por tão óbvia que é, de pensar na extrema complexidade da religião grega. Nem é de estranhar que o seja, onde não existe teologia salvaguardada por uma tradição expressa em documentos escritos, expurgados de toda e qualquer excessividade agressiva, de encontro a um só «Corpo Místico». Na Grécia, nunca houve uma fé, porque esta pressupõe a liberdade de crer ou não crer, liberdade responsável perante um pensar coerente, do sacerdócio de um Deus único, com atributos filosoficamente caracterizados. O sacrifício aos deuses da Pólis liberava os Gregos de qualquer profissão de crença e, portanto, de toda a acusação de heresia. Processos de impiedade são processos «políticos» — religiosos somente, enquanto a Pólis mais se aproxima, por sua natureza, de uma Igreja que de um Estado. Os Gregos não creem [296] em seus deuses; aceitam ou não, a conformidade dos mitos e dos ritos que os consubstanciam, com sistemas cosmológicos e antropológicos a que aderem não se sabe por força de que argumentos, que a uns persuadem e a outros não. Isto acontece desde os primeiros alvores da filosofia. Mas, antes que esta nascesse? Também, então, ninguém poderia dizer que os Gregos acreditavam nos deuses pois, decerto, faltava-lhes a liberdade de não crer, sendo eles, para eles, o próprio fundamento do mundo em que viviam. Os deuses «explicavam» o mundo, os homens e suas respectivas relações; e não eram o mundo e os homens, com as relações estabelecidas entre um e os outros, o que «explicava» os deuses. O mito religioso (não sei se há o que o não seja) sempre foi um prius. Mesmo em relação à filosofia que, queira-o ou não, vive a vida de um mito que só dos outros se distingue, na medida em que, em lugar de uma história sagrada e de um drama   ritual, e como sinal de uma ausência, que marca vincadamente a presença, tenta preencher, com os argumentos de uma razão razoante, o irrazoável silêncio, não só do mito que ainda não foi dito, mas também dos interstícios daqueles que já se disseram.

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A análise, por muito que se prolongasse, não chegaria senão ao ponto já atingido: reconhecer que a religião grega se decompõe (não arbitrariamente) em dois vectores de intensidades e sentidos diversos, cuja resultante, como de outro modo se disse, leva a que, do ponto de vista religioso, nos últimos séculos do paganismo, o fim se reúna ao princípio, fechando um ciclo. Mas, ainda assim, por verificar a existência de duas, não ficamos dispensados de procurar saber o que deve entender-se por uma religião. De princípio temos de compreender que, seja ela o que for, a religião está no centro de irradiação de todas as forças que geram e mantêm a vida de uma cultura. O historicismo pode muitas vezes mostrar-se perturbador para quem visa o que sempre é, tal como é; mas um abuso da história certamente não depõe contra o seu uso; e de somente usá—la, parece resultar a convicção de que, culto e cultura, quanto mais recuamos no tempo ou mais nos afastamos das regiões marginais da corrente cultural dominante, tanto mais identificados nos aparecem. A ilusão positivista, mais rudemente expressa pela «lei» de substituição da teologia pela metafísica e da metafísica pela ciência, passou à história de um passado definitivamente passado, pois no cristianismo, encontra-se toda a razão suficiente para nos apercebermos de que a fé na ciência, mais resolutamente professada desde o século xvii, radica na revelação de que a Natureza fora por Deus submetida ao inteiro arbítrio do Homem. Portanto, mesmo agora, quando mais parece sobressair um ateísmo, que só o é, por negação de determinadas formas de conceber a divindade, ou quando os merecidos sucessos da tecnologia votam a mais prolongado olvido os problemas existenciais que surgem em todas as situações de liminaridade, ainda não é lícito recusar-nos a admitir que a religião permanece no centro de irradiação das forças que mantêm a cultura ecumênica e universalista, que é a do nosso tempo.

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Se a religião grega, considerada em si mesma, ou recolocada em sua ambiência mediterrânea, tem uma história, essa parece situar-se entre uma Fulgurância que desvela o mundo, todo ele, ou o que ele contém de mais valioso, como proveniente e resultante de um deicídio primordial, cuja projecção antropológica se encontraria no regime de vida dos primitivos agricultores de tuberosas (depois, ou simultaneamente, nos de cereais), e outra que revelaria a existência de um mundo que, fenomenologicamente examinado, decerto não é o mesmo, pois, começando pela proposição de um «Senhor dos Animais», com os atributos de uma paternidade indiscutivelmente autocrática e uma figuração que, por vezes, sugere que ele não anda [201] longe de se identificar com o Sol, teria por projecção antropológica o regime de vida dos «caçadores primitivos». Verdadeiramente miraculoso, ou se nem tanto assim, admirável acima de tudo quanto possamos e devamos admirar, é que no sacrifício cruento aos deuses olímpicos se encontrem tantos vestígios da religiosidade fundante deste mundo longínquo e ultrapassado (por exemplo, nas festividades conhecidas por Bufónias — palavra que contém os significantes de «boi» e «matança») que, reunidos, não permitem que os atribuamos ao acaso (K. Meuli), e que outros tantos vestígios se mantenham, com os traços característicos das chamadas «religiões agrárias» (dispensamo-nos de enumerar exemplos, para unicamente chamar a atenção, ou simplesmente lembrar, que, neste ponto se centraliza o horizonte que abraça todos os cultos «misteriosos»). É claro; não é absurdo pensar que cada uma destas Fulgurações ofuscasse os olhos dos Gregos, não lhes permitindo dar-se conta do desvelamento produzido pela outra, de modo que não chega a surpreender-nos o facto, já entrevisto, de que eles mal se apercebessem das contradições inerentes àquela sua religiosidade descrita pela história. E, no entanto, a maior dessas contradições, ou o aspecto mais saliente de todas elas, reside na oposição aparentemente insolúvel, da imanência e da transcendência. Só que já não nos parece de todo legítimo pôr toda a imanência do lado em que, na Grécia, se desenvolveu a cosmobiologia (o núcleo mais primitivo das chamadas religiões «agrárias») dos plantadores, e toda a transcendência no lado oposto, isto é, na interpretatio graeca do término da evolução, ou da série de metamorfoses sofridas pela imagem daquele «Senhor dos Animais», que fascinara os caçadores primitivos.

Embora, nesta última, mais facilmente se insinuasse a concepção de uma transcendência teística, não podemos recusar-nos a admitir certo pendor para a mesma transcendentização quanto à divindade que, assassinada, se transforma em plantas úteis (por exemplo, Perséfone identificada a Hainuwele) ou no todo que é o mundo (por exemplo, a divisão do cadáver de Tiamat, morta por Marduk). Propomos uma hipótese de trabalho: cedendo a semelhante propensão é que teria nascido o politeísmo, e não só o dos Gregos! Se assim não fosse, como se entendería que ao lado dos deuses que, uma vez assassinados, se transformam (ao que parece, definitivamente) no mundo ou em algum ou alguns entes intramundanos, persistissem as imagens desses mesmos deuses, como testemunhas da perenidade de uma existência que, propriamente, já não seria a deles ou, pelo menos, a que só o era antes do princípio. A imagem perpetua o «transformado», junto do resultado definitivo ou intermitente [202], da transformação. Os «ídolos», no étimo sentido da palavra, ou as epifanias antropomórficas, que só mudam superficialmente ao sabor do que possa chamar-se «evolução da plástica», constituem-se como o sinal negativo da imanência. E o mesmo se diga dos deuses que morrem e ressuscitam, pois a ressurreição do deus ou da deusa assassinada contradiz frontalmente a continuidade biológica das epifanias teriomórficas, fitomórficas ou cosmomórficas, na medida que mantém contraditoriamente (ao mito que se poderia dizer «originário») homeomórficas. Tudo isto se dá, tanto na Grécia, quanto em sua ambiência mediterrânea.

E também não é de espantar o incontável número de deuses. Efectivamente, aqui, apresenta-se-nos um «dado» a que terão de atender as mais incisivas exigências de uma explicação, sobretudo, a que não consinta confundir-se com a descrição cingente ao escrito, ao feito, ao figurado só pela mais premente necessidade de comunicação: no Mediterrâneo Oriental, considerado numa amplitude tal que nele se permitam cruzar os caminhos que vão de Gibraltar ao Indo e do Danúbio ao Nilo, convergem de tempos a tempos culturas carreadas por etnias das mais diversas proveniências, atraídas por surtos periódicos de um urbanismo precoce, com a promessa de um bem-estar que anda associado a todos os prenúncios de civilização e mesmo a civilizações já pronunciadamente instauradas. Este movimento não pode confundir-se com a chamada «invasão dos bárbaros», ou se quisermos subordiná-lo a semelhante título, temos de admitir que a «invasão» não é só aquela que pôs termo à unidade política do Ocidente clássico, mas a que se constitui por «infiltrações» que se sucedem através de todas as dezenas de séculos que decorrem desde o neolítico. Não podemos, por conseguinte, afastar, por importuna, a ideia de que a transcendência teística influísse nas origens do politeísmo e, portanto, que, reunido o fim ao princípio, a uma Dea Natura se deem o nome de todas as deusas-mães, apelando-se (Apuleio) para o polimorfismo e a polinímia de uma só divindade: Isis, identificada a Cibele, Reia, Deméter e tantas outras. E justamente o sentido do segundo movimento, que transpõe o politeísmo para um (relativo) monoteísmo, o que se mostra como sinal da anterioridade fenomenológica do primeiro, em que esse monoteísmo (relativo) se teria repartido pelas diversas hipóstases de um Maternalismo transcendente (as Mães não morrem nem ressuscitam). E claro que não estamos desprecavidos contra as muitas objecções que tal modo de conceber a religiosidade mediterrânea em geral, e da grega, em particular, tão facilmente acudirão a uma inteligência bem desperta, pois há, pelo [203] menos, duas que nos impeçam por este caminho. Uma, é por demais evidente: a Dea Natura não anda longe daquele Deus sive Natura do panteísmo espinosista, o que, não sendo, para nós, mui considerável empecilho, dá, todavia, lugar à legítima hesitação, quanto à possibilidade de olhá-la como expressão‘de um «monoteísmo» e, muito mais, se o afectarmos de alguma «nota» de transcendência. E a outra, tão evidente, quanto esta, é que não ficou clara nem obscuramente expresso o facto de que o politeísmo abrange deuses a que, de modo nenhum, se poderão atribuir características cosmobiológicas — deuses, portanto, que não pertencem ao domínio do «misterioso»; que não morrem e não ressuscitam, como exemplaridade de um acontecimento original e primordial, a repetir-se, ou renovar-se em quase todos, se não em todos os «ritos de passagem». No entanto, apenas sobre estes deixamos incidir o influxo do teísmo, para «explicar» a gênese do politeísmo.

Mas, sem recorrer a paralógicos subterfúgios, que deem ares de argumentação ao inargumentado, pode-se lembrar que, pelo menos alguns neoplatónicos (Proclo, por exemplo) nunca pensaram que à Dea Natura não se sobrepusesse o «um», que Plotino   havia posto em situação de absoluta transcendência, relativamente a todas as divindades do paganismo e que nem por subalternos se poderíam considerar. Portanto, o aludido panteísmo converte-se em subproduto do que talvez nem possa chamar-se de monoteísmo, dada a absoluta inefabilidade do «um». Plotino levou até às últimas consequências aquele dito do Platão «místico»: a Ideia do Bem reside epekeina tés ousias, «para além de tudo o que é», e, por conseguinte, de tudo quanto possa dizer-se (observe-se de passagem que só nesta perspectiva entendemos aqueles versos de Fernando Pessoa: «Deus é o Homem de outro Deus maior: / Adam Supremo, também teve Queda»), nada havendo, nada existindo, nada sendo, que predicativamente não possa ser dito. Aqui, nem o progressivo, que nos leva do Nada ao Ser, nem o regressivo, que nos conduz do Ser ao Nada, admite expressão que não seja ostensivamente metafórica. E nesta, diga-se que algures, na linha em que, tanto o princípio (o Ser), quanto o fim (o Nada) ficam além do seu início e aquém do seu término, moram os deuses, cada um deles informando (compondo no Caos Excessivo uma contenção cosmogónica) um mundo ou algum de seus aspectos mais fascinantes. Mas agora, todos os deuses, e não só os que entram em determinada categoria do divino, e numa relação para com o mundo, em que se esvai a oposição da imanência e da transcendência, ou melhor, em que, tanto uma quanto outra só resultam de atitudes mentais opostas, algo que começa a depender [204] só do humano arbítrio. É bem de ver que esta é outra Fulguração: a que desoculta o horizonte da filosofia tradicional. Que os olhos do filósofo, ofuscados pela mesma fulguração, deixem de se aperceber do que ficou nos interstícios de todos os componentes da linguagem mítica; que seus ouvidos, a todo o custo, queiram escutar a significação desse silêncio intersticial; que este mesmo silêncio provoque um falar que não tem mais fim, por incomensuráveis que são as linguagens da mitologia e da filosofia e, por isso, também, que não haja no mito silêncio que qualquer proposição filosófica preencha em sua exacta extensão (e intenção) — tal o elevadíssimo preço a pagar por uma consciência que converteu em «mito», tudo quanto realmente o foi, é e será: um falar que não se detém à superfície do intelecto e da vontade diabólicas, mas penetra, talvez, até a nossa irredutível subjectividade, perpassando por toda a gama de sentimentos e emoções que, necessariamente, tanto e tão bem comprometem a nossa alma com o nosso corpo, que, aí, no diálogo mais directo entre o absoluto que nós somos e o absoluto que a Realidade é, já não se pode distinguir o que em nós é corpo do que em nós é alma ou espírito. Corpo animado ou alma corporificada é o único sujeito que tem por objecto as mensagens cifradas do Secretum, que qualificamos de «religiosas».