O homem é, em sua essência, a “memória do ser”, ele é o momento fundamental do evento de desvelamento do ser, e, para Heidegger, só se pode falar de linguagem, no sentido estrito da palavra, aí onde o ser se desvela, se abre, ou seja, no homem [1]. A questão da linguagem, portanto, está vinculada à questão central de seu pensamento. No entanto, a linguagem é um fenômeno pluridimensional que contém diferentes níveis, pesquisados por diferentes ciências [2]. O homem, ser histórico, quando pergunta, já o faz dentro [201] de uma tradição cultural específica: nós, ocidentais, quando tratamos da linguagem, já o fazemos dentro de uma concepção que se elaborou na metafísica clássica, transferiu-se mais tarde para as ciências da linguagem, chegando hoje à concepção tecnocientífica da linguagem.
O Ocidente entende linguagem a partir do dualismo originário [3] que caracteriza a metafísica ocidental: a linguagem é vista, em última análise, como expressão, isto é, trata-se da efetivação de uma essência ideal (razão, sentido), que ocorre na medida em que a razão humana se utiliza de uma matéria (no caso de um som) e a articula e transforma de tal maneira que ela possa ser veículo de sua manifestação [4]. Linguagem, nessa perspectiva, é exteriorização da razão, do sentido. Algo sensível se faz manifestação, exteriorização, objetivação do inteligível. Ora, o que faz, portanto, o som produzido pelo homem linguagem [202] é que ele é expressão do pensamento, da razão, da consciência. É a espiritualização do som que o torna linguagem humana, essencialmente distinta da linguagem animal. A linguagem é, então, a expressão na vida humana em que o pensamento se exterioriza.
Hoje, na modernidade, o homem experimenta o real como objeto, isto é, como o manipulável, o dominável por ele, como aquilo que se pode pôr à disposição do homem. Nesse contexto, a linguagem é reduzida à informação [5], como processo por meio do qual o homem toma conhecimento dos entes, a fim de poder exercer sobre eles o domínio. Essa concepção, hoje universalmente vigente, é o que, para Heidegger, caracteriza a essência da técnica, que é um modo de desvelar uma fórmula, portanto de ver uma forma de verdade [6]. A técnica revela o real em seu caráter de manipulável. Nessa perspectiva, a informação é o modo como a natureza se revela por meio da técnica. Não a natureza como ela é em si mesma, mas a natureza enquanto submetida às perguntas do homem, enquanto relacionada a ele, enquanto manipulável por ele. Nesse sentido, a categoria informação se transforma para Heidegger numa das características da civilização contemporânea [7], pois o que constitui nossa epocal idade é a predominância dessa forma de desvelamento do real: a informação é a mediação do saber necessário à manipulação [8].
Ora, a primazia dessa concepção de linguagem revela-se hoje mais claramente no desenvolvimento do computador [9], e a própria essência do homem [10], aquilo que o homem é, determina-se hoje a [203] partir da máquina. O problema de nossa epocalidade não é ter descoberto a linguagem como informação, mas, antes, ter absolutizado a dimensão instrumental da linguagem humana: linguagem se reduz a um puro instrumento por meio do qual se entra em contato com os outros. Já que ela é puro instrumento, o ideal é tornar esse instrumental o menos complicado possível e de fácil utilização. Nesse contexto, está a mania atual das simples reduções, abreviações que para Heidegger [11] não são coisas inocentes, mas manifestam que fazemos das palavras apenas sinais de designação das coisas com as quais podemos dizer tudo, porque, no fundo, elas não dizem nada.
Isso aponta para um problema muito sério de nosso processo civilizatório, o processo de massificação do homem: os conteúdos mais profundos são afastados da linguagem para facilitar seu manuseio, mas também porque o homem inautêntico não tem mais acesso à profundidade de sua vida. A linguagem tornou-se um fenômeno de superfície que toca apenas a superfície da vida humana. E essa experiência da linguagem enquanto informação que faz com que o homem de hoje perca a abertura para outros tipos de linguagem, como por exemplo a linguagem da poesia, que lhe parece uma linguagem vaga, imprecisa, sem vinculação com a vida.
Para cumprir sua função como instrumento, a linguagem precisa ser formalizada, o que ocorre por meio da criação de linguagens artificiais que são cálculos lógicos. Heidegger, de nenhum modo, condena a pesquisa contemporânea sobre a linguagem, especificamente a construção de “metalinguagens”. Essa pesquisa tem seu direito específico e conserva seu peso próprio. Ela fornece, sempre, a seu modo, algo útil para aprender [12]. O que importa para Heidegger é que ela é apenas um dos possíveis modos de revelação da linguagem. Ela é a linguagem que se revela enquanto vinculada à subjetividade [13], à experiência do real a partir da subjetividade que comunica e se comunica; em suma, é portanto a revelação da linguagem como obra da subjetividade [14]. Ora, a grande questão que o homem contemporâneo pode [204] levantar é: o caráter instrumental da linguagem diz-nos tudo sobre a linguagem? Será que o processo contemporâneo, tecnocientífico, de racionalização da linguagem esgota todas as experiências humanas com a linguagem? [15]
A experiência da linguagem como informação se faz a partir de determinado paradigma: o paradigma da subjetividade, da consciência, que encontrou sua realização plena na atual fase de nossa civilização. Não é possível experimentar a linguagem desde outro paradigma, para além da relação sujeito-objeto, consciência-mundo? Em suma, para Heidegger, a manifestação epocal da linguagem como informação pressupõe o paradigma das teorias da consciência e da representação. Todo o seu esforço filosófico consiste em mostrar as bases de outro paradigma de pensamento, a partir de onde é não só possível um outro tipo de experiência com a linguagem, mas onde a linguagem constitui momento fundamental para toda experiência do real. Ora, o que Heidegger pretende, não negando o valor do caráter instrumental da linguagem, é fazer o “passo para trás”, a fim de poder pensar a relação originária do homem com a linguagem [16] que, para ele, não constitui uma pesquisa a mais ao lado das ciências e da filosofia da tradição, mas é uma descida a seus “fundamentos”, pois é essa relação originária que é sempre pressuposta em toda ciência e filosofia [17].
O primeiro passo nessa nova experiência consiste em superar a postura objetivante na consideração da linguagem: a linguagem não é [205] simplesmente um objeto presente que está diante de nós, mas todo pensar já se movimenta no seio da linguagem, ou seja, se articula numa abertura, num espaço linguisticamente mediado, no qual se abrem para nós perspectivas para a experiência do mundo e das coisas. Quando falamos da linguagem, diz Heidegger, nunca abandonamos a linguagem, mas sempre falamos a partir dela [18]. Nosso ser-no-mundo é, portanto, sempre linguisticamente mediado, de tal maneira que é por meio da linguagem que ocorre a manifestação dos entes a nós [19].
Essa abertura não é obra da subjetividade, antes estamos nela inseridos: só onde existe linguagem o ente pode revelar-se como ente. Toda a reflexão de Heidegger, portanto, faz-se no sentido de mostrar que o originário não é que falamos uma linguagem e dela nos utilizamos para poder manipular o real, mas, antes, que a linguagem nos marca, nos determina, e nela se dá a revelação dos entes a nós, o que só é possível porque, em sua dimensão última, a linguagem é o evento de desvelamento do sentido do ser [20].