Heidegger, fenomenologia, hermenêutica, existência

Dasein descerra sua estrutura fundamental, ser-em-o-mundo, como uma clareira do AÍ, EM QUE coisas e outros comparecem, COM QUE são compreendidos, DE QUE são constituidos.

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surpresa

quarta-feira 13 de dezembro de 2023

Auffallen  , Auffälligkeit

À cotidianidade de ser-no-mundo pertencem modos de ocupação que permitem o encontro com o ente de que se ocupa, de tal maneira que apareça a determinação mundana dos entes intramundanos. Na ocupação, o ente que está mais imediatamente à mão pode ser encontrado como algo que não é passível de ser empregado ou como algo que não se acha em condições de cumprir seu emprego específico. O utensílio se apresenta danificado, o material inadequado. Em todo caso, um instrumento está aqui à mão. Mas o que a impossibilidade de emprego descobre não é a constatação visual de propriedades e sim a circunvisão da lida no uso. Nessa descoberta da impossibilidade de emprego, o instrumento surpreende. A SURPRESA proporciona o instrumento num determinado modo de não estar à mão. Entretanto, aí se acha o seguinte: o que não pode ser usado está simplesmente aí – mostra-se como coisa-instrumento, dotada de tal e tal configuração, e que, em sua manualidade, é sempre simplesmente dada nessa configuração. O puro ser simplesmente dado anuncia-se no instrumento de modo a, contudo, recolher-se novamente à manualidade do que se acha em ocupação, ou seja, do que se encontra na possibilidade de se pôr de novo em condições. Esse ser simplesmente dado do que não pode ser usado não carece, todavia inteiramente de manualidade. O instrumento assim simplesmente dado ainda não é uma coisa que aparece em algum lugar. A danificação do instrumento também ainda não é sua transformação em simples coisa ou uma mera troca de características de algo simplesmente dado. STMSC: §16

Os modos de SURPRESA [Modi   der Auffälligkeit], importunidade [Aufdringlichkeit  ] e impertinência [Aufsässigkeit  ] possuem a função de mostrar o caráter de algo simplesmente dado do manual. Com isso, porém, não se considera ou encara meramente o manual como algo simplesmente dado. O ser simplesmente dado aqui anunciado ainda está ligado à manualidade do instrumento. Ele ainda não está entranhado como simples coisa. O instrumento torna-se instrumento no sentido de um “troço” do qual gostaríamos de nos desembaraçar; nessa tendência de desembaraço, contudo, o manual se mostra como o que é sempre manual no incontornável de seu ser simplesmente dado. STMSC: §16

Na SURPRESA, importunidade e impertinência, o manual perde, de certo modo, a sua manualidade. No modo de lidar com o que está à mão, porém, sempre se compreende a manualidade, se bem que de maneira não temática. Ela não desaparece, mas se despede, por assim dizer, na SURPRESA do que não pode ser empregado. A manualidade se mostra mais uma vez, mostrando também a determinação mundana do manual. STMSC: §16

A singularidade do caráter instrumental do sinal evidencia-se em sua “instauração de sinal”. Cria-se o sinal numa previsão cuidadosa própria da circunvisão e a partir dela. É uma previsão cuidadosa que necessita da possibilidade manual de, a cada passo, fazer anunciar o mundo circundante para a circunvisão, mediante o que está à mão. O caráter acima descrito de não sobressair e nem deter-se em si mesmo pertence ao ser do que está mais imediatamente à mão dentro do mundo. Por isso o modo de lidar da circunvisão no mundo circundante necessita de um instrumento à mão que assuma, em seu próprio caráter instrumental, a “obra” de causar SURPRESA de um manual. Por isso a produção desses instrumentos (dos sinais) deve visar à sua SURPRESA. Com isso, todavia, eles não se tornam seres simples e arbitrariamente dados. Ao contrário, os sinais são “instalados” de determinado modo, na intenção de um fácil acesso. STMSC: §17

No modo de lidar cotidiano, a manualidade do sinal e a sua SURPRESA, que pode ser produzida segundo várias intenções e modos, documentam não apenas a não-SURPRESA constitutiva do que mais imediatamente está à mão. Também indicam que é o próprio sinal que retira a sua SURPRESA da não-SURPRESA do todo instrumental, à mão na cotidianidade de modo “evidente” como, por exemplo, o costume de se dar um “nó no lenço” como marca de lembrança. O que ele mostra é que há sempre algo com que se ocupar na circunvisão da cotidianidade. Esse sinal pode mostrar muitas coisas e das mais diversas espécies. A envergadura do que se pode mostrar nesse sinal corresponde à limitação do uso e da compreensão. Na maior parte das vezes, enquanto sinal, ele não apenas está à mão somente para o seu “inventor” como, mesmo para ele, pode tornar-se inacessível, de tal maneira que um segundo sinal se faz necessário para o emprego possível do primeiro pela circunvisão. Embora não podendo ser usado como sinal, o nó não perde o seu caráter de sinal, adquirindo uma importunidade inquietante. STMSC: §17

A manualidade prévia de cada região possui um sentido ainda mais originário do que o ser do manual, a saber, o caráter de familiaridade que não causa SURPRESA. Ela mesma só se torna visível no modo da SURPRESA, numa descoberta do que está à mão, guiada pela circunvisão segundo os modos deficientes de ocupação. A região do lugar, muitas vezes, torna-se explicitamente acessível como tal pela primeira vez quando alguma coisa não se encontra em seu lugar. O espaço que, no ser-no-mundo da circunvisão, descobre-se como espacialidade do todo instrumental, pertence sempre ao próprio ente como o seu lugar. O mero espaço ainda se acha velado. O espaço está fragmentado CH: não, justamente uma unidade dos locais, especial e não fragmentada em lugares. Essa espacialidade, no entanto, dispõe de sua própria unidade através da totalidade conjuntural mundana do que está à mão no espaço. O “mundo circundante” não se orienta num espaço previamente dado, mas a sua manualidade específica articula, na significância, o contexto conjuntural de uma totalidade específica de lugares referidos à circunvisão. Cada mundo sempre descobre a espacialidade do espaço que lhe pertence. Do ponto de vista ôntico, a possibilidade de encontro com um manual em seu espaço circundante só é possível porque a própria presença [Dasein  ] é “espacial”, no tocante a seu ser-no-mundo. STMSC: §22

O deixar e fazer vir ao encontro, constitutivo do ser-no-mundo dos entes intramundanos, é um “dar-espaço”. Esse “dar-espaço”, que também denominamos de arrumar , consiste na liberação do que está à mão para a sua espacialidade. É este arrumar como doação preliminar que descobre um conjunto possível de lugares determinados pela conjuntura e que possibilita a orientação fática de cada passo. Enquanto ocupação com o mundo numa circunvisão, a presença [Dasein] pode tanto “arrumar” como desarrumar e mudar a arrumação, e isso porque o arrumar, entendido como existencial, pertence a seu ser-no-mundo. Contudo, nem a região previamente descoberta a cada vez e nem mesmo a espacialidade de cada passo são explicitamente visíveis. Em si mesma, ela está presente à circunvisão na não SURPRESA do manual a cuja ocupação se entrega a circunvisão. Com o ser-no-mundo, o espaço se descobre, de início, nessa espacialidade. Com base na espacialidade assim descoberta, o espaço em si torna-se acessível ao conhecimento. STMSC: §24

“Ocupar-se” da alimentação e vestuário, tratar do corpo doente é também preocupação. Numa simetria com a ocupação, entendemos essa expressão como termo de um existencial. A “preocupação”, no sentido de instituição social fática, por exemplo, funda-se na constituição de ser da presença [Dasein] enquanto ser-com. Sua urgência provém de, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, a presença [Dasein] manter-se nos modos deficientes de preocupação. O ser por um outro, contra um outro, sem os outros, o passar ao lado um do outro, o não sentir-se tocado pelos outros são modos possíveis de preocupação. E precisamente estes modos, que mencionamos por último, de deficiência e indiferença, caracterizam a convivência cotidiana e mediana de um com outro. Também esses modos de ser apresentam o caráter de não SURPRESA e evidência que convém tanto a co-presença [Dasein] intramundana cotidiana dos outros como a manualidade do instrumento de que se ocupa no dia-a-dia. Esses modos indiferentes da convivência recíproca facilmente desviam a interpretação ontológica para um entendimento imediato desse ser como ser simplesmente dado de muitos sujeitos. Embora pareçam apenas nuanças insignificantes do mesmo modo de ser, subsiste ontologicamente uma diferença essencial entre a ocorrência “indiferente” de coisas quaisquer e o não sentir-se tocado dos entes que convivem uns com os outros. STMSC: §26

Nas ocupações do que se faz com, contra ou a favor dos outros, sempre se cuida de uma diferença com os outros, seja apenas para nivelar as diferenças, seja para a presença [Dasein], estando aquém dos outros, esforçar-se por chegar até eles, seja ainda para a presença [Dasein], na precedência sobre os outros, querer subjugá-los. Embora sem o perceber, a convivência é inquietada pelo cuidado em estabelecer esse intervalo. Em termos existenciais, a presença [Dasein] possui o caráter de afastamento (Abständigkeit  ). Quanta mais este modo de ser não causar SURPRESA para a própria presença [Dasein] cotidiana, mais persistente e originária será sua ação e influência. STMSC: §27

Neste afastamento constitutivo do ser-com reside, porém: a presença [Dasein], enquanto convivência cotidiana, está sob a tutela dos outros. Não é ela mesma que é, os outros lhe tomam o ser. O arbítrio dos outros dispõe sobre as possibilidades cotidianas de ser da presença [Dasein]. Mas os outros não estão determinados. Ao contrário, qualquer outro pode representá-los. O decisivo é apenas o domínio dos outros que, sem SURPRESA, é assumido sem que a presença [Dasein], enquanto ser-com, disso se de conta. O impessoal pertence aos outros e consolida seu poder. “Os outros”, assim chamados para encobrir que se pertence essencialmente a eles, são aqueles que, numa primeira aproximação e na maior parte das vezes, são “co-pre-sentes” [»da sind«] na convivência cotidiana. O quem não é este ou aquele, nem o si mesmo do impessoal, nem alguns e muito menos a soma de todos. O “quem” e o neutro, o impessoal. STMSC: §27

O impessoal desenvolve sua própria ditadura nesta falta de SURPRESA e de possibilidade de constatação. Assim nos divertimos e entretemos como impessoalmente se faz; lemos, vemos e julgamos sobre a literatura e a arte como impessoalmente se vê e julga; também nos retiramos das “grandes multidões” como impessoalmente se retira; achamos “revoltante” o que impessoalmente se considera revoltante. O impessoal, que não é nada determinado, mas que todos são, embora não como soma, prescreve o modo de ser da cotidianidade. STMSC: §27

A atualização que aguarda e retém constitui a familiaridade, segundo a qual a presença [Dasein], entendida como convivência, “se reconhece” no mundo circundante público. Compreendemos existencialmente o deixar e fazer em conjunto como um deixar-”ser”. É baseado nele que o manual, enquanto o ente que é, pode vir ao encontro numa circunvisão. Por isso, pode-se esclarecer ainda mais a temporalidade da ocupação com o exame dos modos de deixar vir ao encontro numa circunvisão, já caracterizados como SURPRESA [Auffälligkeit], importunidade e impertinência. No tocante ao seu “verdadeiro em si”, o instrumento à mão vem ao encontro não como percepção temática de coisas, mas na não-SURPRESA do que é dado preliminarmente de forma “objetiva” e “evidente”. Mas se, no todo deste ente, algo surpreende, então aí reside a possibilidade de que o todo instrumental também venha a se impor como tal. Do ponto de vista existencial, como se deve estruturar o deixar e fazer em conjunto a fim de que algo surpreendente possa vir ao encontro? A questão não visa agora às condições fatuais que dirigem a atenção para algo preliminarmente dado, mas ao sentido ontológico da possibilidade como tal desse encaminhamento. STMSC: §69